Amor que fica

Movimento reduzido, poucos fregueses, como é comum acontecer perto das onze da noite num botequim situado numa rua de pouco movimento na Tijuca, em pleno dia de semana.

Na única mesa que está ocupada, estão Paulo Sérgio e Renato. Os dois têm cerca de 30 anos e estão ligeiramente embriagados. Sobre a mesa há várias garrafas de cerveja vazias e um prato raso engordurado e vazio.

- A Ana me ama. Ela não sabe viver sem mim. Ela vai voltar, você vai ver.

- É...

Paulo Sérgio olha para Renato, a lembrança de Ana doendo no coração.

- Você sabe disso, não sabe?

- É. São cinco anos de namoro. Um relacionamento assim não termina de uma hora pra outra sem deixar uma marca.

Paulo Sérgio faz uma expressão amargurada.

- Eu fui o primeiro homem da Ana, já te falei isso, né? Fui eu – bate no peito. - O primeiro. Por isso que ela nunca vai me esquecer. Sabe aquele ditado, amor de pica...

- Sei.

- A gente sempre brigou e sempre fez as pazes. Dessa vez... sei lá... Eu pensei que...

Renato encolhe os ombros, constrangido. Bebe um gole.

- Não posso nem pensar que a Ana está com outro. Ainda mais com o Marcelo. Acho que se vir os dois, eu... sei lá... sou capaz de fazer uma besteira.

- Esquece isso. Sai pra outra, cara. Não fica alimentando revolta. Isso não faz bem.

- Eu fiquei esse tempo todo esperando que ela voltasse... Como sempre. Tá entendendo? Passou uma semana, outra, outra... e eu esperando... e nada. Quando resolvi procurar por ela pra fazer as pazes, ela vai e diz que está namorando outro... E logo o Marcelo!

Os dois ficam em silêncio. Bebem. Paulo Sérgio sacode a cabeça, inconformado. Renato olha as horas no relógio de pulso. Depois, torna a encher os copos, esvaziando a garrafa.

- E agora, o que eu faço? O que eu posso fazer pra Ana voltar pra mim? Me fala. Vou matar o Marcelo. Quem mandou esse cara se meter na minha parada com a Ana?

- E você acha que assim ela vai voltar pra você?

- Então o que eu faço?

- Esquece, porra.

- E você acha que eu consigo? Não consigo, Renato. Não consigo.

- Paulo, a Ana se encheu, cara. Esse negócio de ficar toda hora brigando, isso destrói qualquer relacionamento. Agora acabou. Ser o primeirão hoje em dia não garante mais nada, não. Acabou. Se conforma com isso. Acabou.

- Não me conformo, não me conformo. Não adianta. Não vou me conformar nunca.

- Então, meu amigo, só tem um jeito.

Renato aponta para um cartaz de propaganda que está pregado no poste que fica em frente à porta do bar. É um desses anúncios de cartomante. Madame Nadja traz a amada de volta em três dias.

- Só Madame Nadja pode te ajudar.

- Ah! Não fode, porra!

Renato ri. Bebe um último gole, levanta, pega dinheiro na carteira.

- Tenho que ir embora, Paulo. Amanhã é dia de trabalho.

Paulo Sérgio também levanta. Pega dinheiro no bolso. Renato se dirige ao balcão.

Paulo Sérgio olha para o anúncio da cartomante colado no poste.

Dois dias depois. Paulo Sérgio pára diante de uma casa modesta de uma rua sossegada. Ele confere alguma anotação num pedaço de papel. Toca a campainha.

Penumbra. Uma mulher alta e forte o conduz por um estreito corredor. Ela usa um turbante branco na cabeça e tem um aspecto estranho. Parece um travesti, pensa Paulo Sérgio, com repulsa.

Ela aponta para um pequeno sofá de dois lugares.

- Madame Nadja já vem.

Ela sai.

Paulo Sérgio senta. Está pouco à vontade. Olha em volta, observa a decoração. Cortinas pesadas em todas as paredes, um santuário ecumênico com vários quadros e imagens, uma mesa redonda com quatro cadeiras.

Mais alguns minutos. Paulo Sérgio circula pelo local. Está tenso, pára diante do santuário e se debruça para olhar as imagens. Santos, entidades, quadros, búzios, cruzes...

Ele suspira, com enfado. Sente um vento frio. Ao virar, depara-se com a mulher de turbante, olhando-o.

- Ah! Oi. Que susto... Eu estava aqui olhando...

A mulher aponta para a mesa, onde madame Nadja está sentada.

- Madame Nadja está pronta. Sente-se, por favor.

Paulo Sérgio olha para Madame Nadja, intrigado. Ela parece estar em transe. Aparenta ser uma menina de quinze anos. É miúda e frágil. Na mesa, diante dela, há um copo com água. Em suas mãos, um colar de contas.

Ele puxa a cadeira e senta, ressabiado. Mulher de turbante fica de pé ao lado de madame Nadja.

- E agora, o que eu faço? – pergunta. - Ela está me ouvindo?

- Lógico que sim.

Paulo Sérgio hesita, puxa um pigarro.

- É minha mulher... quer dizer, minha noiva, a Ana... Nós brigamos e... Quer dizer... Nós já brigamos várias vezes ao longo dos anos, mas sempre acabamos voltando e... Bom, dessa vez, ela parece que arranjou outro e... Olha, pra dizer a verdade eu nem acredito em vidente, em cartomante, em nada disso. Só vim aqui mesmo porque...

- Senhor! Isso é um insulto! – interrompeu a mulher.

- Desculpe a franqueza, mas é verdade.

- Se o senhor não acredita não devia ter vindo.

Madame Nadja toca a mão da mulher.

- Madame, ele está dizendo que somos vigaristas.

Madame Nadja acalma sua ajudante. Depois fixa o olhar em Paulo Sérgio e sorri.

- O senhor diz palavras duras para as pessoas. Isso às vezes machuca.

- Desculpe. Não quis ofender.

- Não estou falando de mim. Estou falando justamente do seu problema com sua noiva. Chega uma hora que um pedido de desculpa não resolve mais.

- Olha, eu amo essa mulher. Eu a quero de volta. Não importa quanto isso vai me custar.

- Eu sei que o senhor pode pagar, mas o que eu vejo não é nada bom. O senhor magoou demais sua noiva, contrariou o desejo mais íntimo da vida dela. Agora é tarde.

- Como assim, tarde? A senhora não pode fazê-la voltar pra mim? Eu pago. Eu pago quanto for preciso.

- O que eu vejo não é bom. Não é nada bom mesmo.

Paulo Sérgio passa a mão pelo rosto. Depois sorri, com ar de deboche.

- Sei. O meu caso é difícil, né? Eu já esperava por isso. Quanto vai me custar? Quanto a senhora quer pra me trazer a Ana de volta?

- O senhor, por favor, me respeite. Isso aqui não é um balcão de negócios. O moço vai pagar o preço que eu pedir sim, mas vai tratar disso depois com a minha secretária.

Mulher encara Paulo Sérgio fixamente.

- Pode esperar que sua noiva vai procurar pelo senhor.

- Vai? Quando?

- Se prepare. Ela vai aparecer.

- A senhora promete?

- E o senhor acreditaria na promessa de uma vidente?

Paulo Sérgio volta para casa. Acende a luz, vai direto ao telefone e confere os recados da secretária eletrônica, enquanto abre a camisa e descalça os sapatos.

Voz de homem: - Qual é, Paulo! É o Mauro. Futebolzinho sábado de manhã, hein! Vai lustrando a ferradura... quer dizer, a chuteira... he-he-he.

Voz da mãe: - Paulinho, só liguei pra deixar um beijo, viu? Está tudo bem, filho?

Não há mais recados. Paulo Sérgio desaba no sofá, passa as mãos pelo rosto, desanimado.

No outro dia, Paulo Sérgio chega do trabalho, cumprimenta o porteiro, chama o elevador. Abre a porta, entra, acende a luz e vai para o telefone conferir os recados, ansioso.

Voz da mãe: - Oi, filho. Sou eu. Tudo bem? Olha...

Paulo Sérgio suspira. Começa a tirar a camisa, enquanto a secretária continua transmitindo o recado. Ao virar-se, encontra Ana de pé, no meio da sala.

- Ana?

- Te assustei?

- Não, não. Eu estava mesmo te esperando, eu sabia que você ia vir.

- Paulo, eu preciso te contar uma coisa.

Paulo Sérgio anda na direção dela, embaraçado.

- Ana, nós precisamos conversar. Eu andei pensando muito durante esse tempo e...

- Paulo, eu estou grávida.

- Ãhn? Como assim?... Grávida?

- É. Eu estou esperando um filho... Um filho teu.

- Meu? Você deve estar brincando, só pode ser.

- Paulo...

- Não vem, não, Ana. Nós não transamos há mais de um mês... você sabe disso. E o remédio? Você não toma o remédio todo dia?

- Parei de tomar faz três meses.

- Parou de tomar? Por quê? Por que você parou de tomar o remédio? Tá maluca?

- Você sabe que eu sempre quis ter um filho, achei que só assim ia fazer você casar comigo.

- E como é que eu vou saber se esse filho é meu? E se for do teu amiguinho... o Marcelo?

- Pelo tempo, não pode ser dele. É teu. Eu tenho certeza.

- Ah! Você acha que eu vou cair nessa? Sou macaco velho, minha filha.

- Paulo...

- Que foi? Você acha que eu sou trouxa, Ana? Eu sei muito bem o que aconteceu. Teu namoradinho te engravidou e não quis assumir. Vai dizer que não foi isso? Por isso que você veio correndo pra mim, pra ver se eu aceito ser pai do filho dele. Pode parar. Não caio nessa, não. Quem mandou sair dando pra qualquer um? Problema teu, minha filha. Não quero nem saber.

- Não... Eu juro...

- Some da minha frente, Ana! Você veio aqui pra isso? Vai enganar outro! Ou então vai ter o teu filho sozinha, pra quando ele crescer ficar logo sabendo que a mãe dele era uma vagabunda que deu logo pro primeiro cara que apareceu.

Ele vai para o quarto. Cobre o rosto com as mãos, massageia a nuca, suspira. Dois minutos depois, volta para a sala.

Não há mais ninguém. A porta ainda está aberta.

Paulo Sérgio olha para fora, vai até o corredor. Depois entra e fecha a porta.

Manhã de sol. Paulo Sérgio, com um revólver na mão, avança furiosamente por uma alameda junto ao campo de futebol, enquanto Renato tenta detê-lo. Algumas pessoas se afastam, assustadas.

- Que isso, Paulo? Tá maluco?

- Cadê aquele moleque? Safado! Covarde!

- Espera, Paulo!

- Me deixa! Vou fazer esse moleque assumir as merdas que faz! Cadê ele?

- O Marcelo não taí. Ele viajou. Foi pra Porto Alegre. Vai morar lá.

- Viajou? E a Ana, foi com ele?

- Não sei. Acho que não, acho que ele foi sozinho.

- Sozinho?

- É. Ninguém sabe direito o que aconteceu. Parece que ele foi transferido, não sei.

- Canalha!... Então eu estava certo. Ela só me procurou porque o viadinho correu.

- Do quê que você está falando?

Paulo Sérgio não responde. Baixa a cabeça. Renato tira a arma de sua mão e embrulha na camisa que tem na mão.

Mais tarde, em casa. Paulo Sérgio desliga o telefone, decepcionado. Depois volta-se para Renato, que está sentado ao lado dele no sofá.

- Nada. Está desligado.

- E aí? Vai fazer o quê?

- Não sei. Eu preciso falar com a Ana de qualquer maneira. Tô arrependido, cara. Não devia ter feito aquilo. Coitada.

- Você tá achando que o filho realmente pode ser teu?

- Mesmo que não seja. Eu amo essa mulher. Mesmo que o filho seja do Marcelo, se ela quiser, eu assumo.

Renato olha para Paulo Sérgio, admirado.

- Vou ligar pra Sílvia. Ela deve saber onde a Ana tá.

Paulo Sérgio pega o caderno de telefones, procura o número e faz a ligação. Renato levanta, anda até a janela, afasta a cortina, olha a rua.

- Sílvia? Paulo Sérgio. (PAUSA) Pois é... Você tem notícias da Ana? Eu preciso muito falar com ela... (PAUSA) Ãhn? Não é possível! Você tá brincando comigo.

Renato volta para o sofá, intrigado. Paulo Sérgio está de pé, tenso.

- Você tem certeza? (PAUSA) Jura? (PAUSA) Meu Deus!... (PAUSA) Não... Não... (PAUSA) Ai, meu Deus!...

Paulo Sérgio fica com o telefone na mão. Está pálido, absolutamente perplexo.

- Que foi?

Paulo Sérgio não responde. Desliga o telefone e une as palmas das mãos, como quem reza.

- Que cara é essa?

- Você não vai acreditar.

- Que foi?

- A Sílvia falou que a Ana morreu, cara.

- Que isso!

- A Ana morreu. A Sílvia falou que ela foi fazer um aborto... e morreu.

Renato cobre a boca com as mãos, chocado.

- Aborto?

- Foi o que a Sílvia disse. Mas só que tem uma coisa... Pelo que ela falou, a Ana morreu há uma semana.

- Ãhn? Mas... Você não falou que... Como é que pode?

Um vento frio sacode a cortina. Paulo Sérgio olha em volta e sente todos os pelos se eriçarem.