Suspeita

George Luiz - Suspeita

O carro estacionou ao lado do portão de ferro batido. Na rua pouco ilumi-nada, duas pessoas saltaram. A mulher, cabelos louros e lisos sobre os ombros, era mais alta que o homem. Ele segurou-a quase rudemente por um braço e juntos entraram na casa. Seguiram pelo caminho calçado de pedrisco e logo desapareceram em seu interior. Chovia fino.

Os amigos de Jonas Furtado costumavam dizer que ele tinha um cérebro frio e competente. Aos quarenta e seis anos, ele bem poderia se conside-rar um homem vitorioso, realizado.Tinha trilhado sua carreira de financis-ta com inteligência e a dose certa de audácia. E numa área profissional onde tantos podem ser acusados de pouco honestos e indiferentes à sor-te dos menos favorecidos, ele criara uma imagem inatacável.

Jonas tinha se casado cedo. Espera-se que um financista seja um homem de família bem constituída. Porque a idéia de solidez está implícita num casamento bem articulado. Mas a morte colhera sua jovem esposa num acidente de automóvel aos dois anos de casamento, antes que ela tivesse sequer um filho. A tristeza, a amargura do financista foram profundas. Os parentes, os amigos mais chegados, fizeram tudo para o consolar. O tem-po, pensavam, o tempo resolveria o problema. Ele chegou aos quarenta anos sem uma ligação amorosa permanente. Não parecia se entusiasmar com as mulheres que lhe surgiam a frente.Tornou-se quase um jogo entre seus amigos e amigas, encontrar-lhe a parceira certa. E então,num jantar informal, a que ele não queria inicialmente ir, conheceu Marta.

O namoro foi quase instantâneo. Marta era uma jovem mulher de muitos encantos. Moderna, de classe media alta,era formada em historia da arte. Suas opiniões sobre os quadros e esculturas que ornamentavam a casa onde se realizava o jantar, acabaram de seduzir Jonas, colecionador seletivo e entusiasmado. Sua admiração por ela cresceu ainda mais quando uma amiga o informou que ela perdera os pais aos dezessete anos e começara imediatamente a trabalhar, custeando seus próprios estudos.

As mulheres que se interessavam pelo financista foram implacáveis. Um homem de quarenta e seis anos, apaixonado por uma quase garota de vinte e três, só podia ser uma interesseira, uma oportunista determinada a capturar uma presa valiosa.

Esses comentários,naturalmente, foram entreouvidos por Marta. Ela os repetia, com malícia, para Jonas.

- Sabe o que ouvi dizer o outro dia no clube?

- O que, meu amor?

- Que eu não passo de uma golpista, louca pelo seu dinheiro...

- É mesmo? E o que você acha que devo fazer?

- Me dar um beijo bem gostoso de despedida na boca e nunca mais falar comigo...

- Quanto ao beijo, é para já. Quanto a nunca mais falar com você...

- Resolva logo para eu começar a procurar outro namorado.

- Outro namorado? Não me provoque ! Está querendo que eu ponha você sobre meus joelhos e lhe dê umas boas palmadas aqui, na frente de todos?

- Que proposta tentadora ! Vai querer que eu tire minha calcinha para você me espancar melhor?

- Minha garotinha safada ! Sabe que eu te amo mais a cada dia? Quando vamos nos casar? Não agüento mais de vontade de carregar você para casa e não deixar mais você sair.

- Bom...deixa eu pensar..........Quando começa a temporada de esqui em Saint Moritz?

- Ora ! Nossa lua de mel não vai ser mais na Oceania?

- No momento estou mais para o expressionismo nórdico que para Gau-guin.

- Fale sério, minha paixão ! Vamos marcar logo a data.

- Está bem. Mas primeiro quero suas palmadas em minha bundinha.E quero aqui, agora !

- Te adoro !

O tempo se encarregou de mostrar que as previsões das mulheres in-vejosas estava errada. Jonas e Marta pareciam constituir o casal per-feito. As pessoas, a família e os amigos, já não conseguiam imaginar um deles sem o outro. Marta, apesar de tão jovem, tinha o senso da medida justa em seu relacionamento com o marido. Ele a consultava sobre as aquisições de arte. Ela terminou seu mestrado em educação artística, comemorado com um jantar maravilhoso que Jonas fez quês-tão de oferecer a ela e todos os amigos no melhor restaurante. Como dois namorados, eles se beijavam com freqüência, caminhavam de mãos dadas. À mesa, quando eram colocados em lugares separados, trocavam olhares intensos e apaixonados. Viver assim era muito bom.

Jonas queria filhos. Marta também. Contudo, dois anos se passaram sem que isso acontecesse. É verdade que Marta se dedicara a termi-nar seu mestrado. Agora, livre desse compromisso, a hora para a gra- videz parecia ter chegado.

Mas o que chegou foi uma estranha série de telefonemas e cartas anônimas. O primeiro foi logo após uma reunião de trabalho no escritório de Jonas. A secretária atendera alguém que mencionara um amigo íntimo do financista. Ele atendeu. Era uma voz de homem, rouca, quase abafada. Sim, era um amigo de Tarcisio Oliveira e queria alertar Jonas para algo estranho e perigoso, algo relacionado com Marta.

- Por favor, esclareça logo do que se trata.

- Calma ! É muito íntimo e comprometedor para dizer ao telefone.

- Escute aqui ! Não sei quem é o senhor e vou desligar.

- Não faça isso, doutor Jonas. Vai se arrepender depois...Estou falando com a melhor das intenções.

- Não volte a me ligar!

Passou-se uma semana. Jonas conversava com Tarcisio Oliveira no clube.

- Imagine que um safado qualquer usou seu nome como referencia e tentou me ameaçar no telefone.

- Que coisa ! Estamos vivendo mesmo tempos difíceis. Um chantagista barato, com certeza.

- De qualquer jeito, vou ficar alerta. Até falei sobre isso com o Renato.

- Fez bem. Nunca se sabe com tantos seqüestros e roubos por aí. Eu já pensei em mandar blindar meu carro depois do que aconteceu com o Augusto, da Transcontinental.

- É verdade ! Ele escapou de morrer por muito pouco.

- Morrer, todos morremos. Mas nas mãos de bandidos impiedosos é um absurdo. Olhe ! Sua Marta está vindo aí.

- Oi, meu amor ! Como foi sua aula?

- Acho que foi bem. Pelo menos já aprendi de que lado fica a cabeça do meu cavalo...

- Boba ! A Lucia me disse que você está indo muito bem.

- Estou morta de fome ! Vou tomar um chuveiro e depois,espero que vo-cê me ofereça um bom almoço. Quero um steak au poivre com batatas fritas. Mal passado, quase sangrento.

- O Que você acha, Tarcisio? Tenho uma mulher carnívora.

- Sorte dela.Eu tenho que me contentar com verduras,legumes e frutas. Meu médico é um sádico.

- Pegue uma mesa para nós,querido. Volto logo.

Na semana seguinte, um envelope comprido, cinzento, chegou na resi- dencia do casal.Vinha endereçado a Jonas e trazia um aviso de Muito Confidencial carimbado. Mais um artifício publicitário, pensou o financista. O conteúdo era uma única folha de papel. Trazia uma mensagem escrita e impressa em computador. O texto era sucinto:

- “Sua mulher não é uma pessoa confiável. Procure investigar sua ori-gem e seu passado recente. Acontecimentos bem próximos irão pro-var que ela é uma aventureira perigosa, uma prostituta de alto nível “

A carta não trazia assinatura. O remetente era visivelmente uma firma

fictícia. Uma consulta ao catálogo telefônico, mostrou que o número

constante do endereço não existia na rua indicada. Jonas escondeu o

envelope rapidamente.

- E aí, Renato? O que podemos fazer? Tenho medo que minha mulher acabe recebendo uma carta ou um telefonema desses. Não quero que isso aconteça.

- Francamente, receio que minha investigação leve algum tempo. Esses casos são sempre difíceis. Mandei periciar o envelope e o seu conteú-do. Nada. Nenhum indício, nenhuma pista. Com a sua permissão, vou monitorar os telefonemas dirigidos a seu escritório. Quanto aos seus telefones residenciais, melhor não fazer isso,pelo menos já.

- Vamos ter que ficar a disposição desse marginal?

- Calma! Não nos adianta ficarmos irritados. Confie em mim. O homem vai fazer alguma exigência, dar um passo errado, e vamos pega-lo.

- Espero que você tenha razão.

Marta costumava ir sempre ao mesmo salão de cabeleireiro. Usava um corte muito simples. Seus cabelos eram lisos mas não excessivamente finos. Ela gostava de mantê-los pouco abaixo da linha de seus ombros. Raramente os usava presos.Numa quinta feira, uma amiga comentou no salão que ela tinha sido vista num bairro da periferia da cidade.

- Periferia? Acho que a pessoa se enganou, Bia.

- Como assim? Ela me disse que você estava com um homem num au-tomovel preto..

- Não era eu. Sua amiga deve andar vendo filmes de mistério.

- Será mesmo? Ela falou com muita convicção.

- E eu estou negando com convicção também. E ponto final.

- Calma ! Não fique tão nervosa...

- Não estou nervosa. Apenas não gosto que ponham em dúvida o que eu digo. Você está sendo desagradável. Bem. Vou andando. Até mais.

O salão não estava cheio naquele momento. Mas Bia sentiu-se pouco a vontade diante das pessoas que a olharam com curiosidade.

- Nossa jovem socialite ficou meio agitada com o que eu disse.

- Francamente,Bia, acho que ela teve uma certa razão em não gostar da sua insistência.

- Não vejo por que, Bete. O que ela tem a esconder?

- Nada, querida. Apenas você levantou a hipótese dela estar com outro homem num carro. Ela é casada e muito bem casada, lembra?

- Ora, ela não deve ser nenhuma santinha.E são vinte e poucos anos, segundo consta, a diferença de idade entre ela e o marido. E ela é bonitinha.

- Bonitinha? Que é isso, Bete ? Ela é uma mulher muito bonita !

- Para quem gosta do tipo loura sem sal.

- Qual, Bete ! Você tem ciúme dela !

- Eu? Está me confundindo com alguma amiga lésbica ?

- Ciúme do sucesso dela, querida. Você entendeu muito bem o que eu quis dizer.

- Francamente, estou me lixando para o que ela faz ou deixa de fazer. Uma típica nova-rica deslumbrada com a situação que alcançou...

- E que a grande maioria das mulheres que você e eu conhecemos ado-raria ter... Bom, vou andando.

No quarto pouco iluminado a figura da mulher parecia encolhida sobre a cama. O homem perto dela tinha uma fisionomia embrutecida.

- Parece que sua irmã não quer ajudar você.

- Deixe minha irmã em paz !

- Deixo, assim que ela cooperar comigo.

- Ela está fazendo o que é possível.

- Que nada ! O marido dela é milionário.Ela vai arrumar o dinheiro direi-tinho.

- Crápula !

- Não seja idiota. Você depende de mim para viver.

- Posso arranjar um trabalho quando eu quiser.

- Mas não quer, não é ? Gosta de viver bem sem fazer muita força.

- Esse seu plano não vai dar certo.

- Vai sim, você vai ver.

Jonas desligou o telefone. A ameaça tinha sido bem clara. Trezentos mil dólares em dinheiro vivo, ou a revelação do caso que sua mulher mantinha com outro homem.

A nova carta vinha num envelope maior. Continha três fotos em preto e branco, tiradas num quarto pouco iluminado. A mulher das fotos estava nua, as poses eram bem explícitas. Jonas olhou-as assombrado. Não era possível ! Marta ! A sua Marta ! Telefonou para Renato.

- Estou lhe dizendo, Renato. São fotos dela. Nua, sobre uma cama de casal !

- Espere ! Não tire conclusões precipitadas. Estou indo para aí. Não toque nesse assunto com sua mulher !

As três fotos estavam sobre a mesa. Os dois homens as examinavam com atenção. Realmente tudo indicava que eram fotos de Marta.

- E agora, Renato? O que vou fazer? Não quero, não posso perder a mulher que eu amo tanto. Tenho que falar com ela sobre isso.

- Não ! Não fale nada por enquanto. Vamos esperar pelo próximo passo desse chantagista desgraçado.

O interfone tocou.

-Doutor Jonas, sua esposa no telefone...

- Sim, querida. Sei que estou atrasado, mas já estou indo para casa, me desculpe.

- Olha só, Jonas. Sua voz estava artificial falando com Marta agora, no telefone. Tenha muito cuidado ou ela vai notar que você está diferente. -- Está bem. Mas como vou me controlar com esta situação?

- Vai ter que dar um jeito,amigo. Lembre-se que só temos três fotos que podem ser uma montagem muito bem realizada !

- As fotos são dela, Renato ! Meu Deus ! Que coisa terrível !

Quatro dias se passaram. Por mais que Jonas procurasse parecer o mesmo, Marta não se deixara enganar. O sábado chegou.

Na piscina em casa, Marta exibia seu corpo impecável. Jonas a observava preocupado. E então, uma luz reveladora atravessou seu pensamento. A pinta, a pequena pinta que aparecia sob um dos seios da mulher numa das três fotos. Claro que Renato não tivera razão para nota-la. Nunca vira Marta nua. Mas para ele, Jonas, era muito importante. Marta estava usando um biquíni bem reduzido. O sutiã apenas cobria apenas parte dos seios. E abaixo deles não havia nenhuma pinta. Como podia não ter percebido isso ! As fotos eram de outra mulher !

- Meu amor...

- Sim, meu querido...

- Você confia realmente em mim?

- Claro ! Que pergunta !

- Pois eu tenho uma suspeita sobre você...

- Suspeita? Posso saber sobre o que?

- Que tal você se abrir comigo?

- E por acaso não vivo abertinha para você? Quase nunca fecho para balanço...

- Fale com seriedade, amorzinho. Você está sendo chantageada também?

Marta olhou para seu marido e não conseguiu mais conter as lágrimas.

- É isso aí, meu amigo. Marta me confessou tudo.

- Não se preocupe mais. Com as informações prestadas por ela, já identificamos e vamos agarrar esse marginal hoje ainda.

- Mas...e a irmã dela? Não quero que seja acusada de nada. Marta ficaria arrasada. E também não quero a imprensa metida nisso.

- Você é quem manda. Ainda acho que essa irmã merece um corretivo bem severo. Quanto à mídia, não se preocupe. Vamos fazer uma operação limpa e discretíssima.

- Você não está pensando em eliminar esse bandido, não é?

- Claro que não ! Não sou propriamente um assassino...Tenho uma solução bem melhor. Esse cara é gringo, procurado em mais de um país da América do Sul. Vou simplesmente entrega-lo, de mão beijada, a um velho amigo meu, da polícia chilena. Meu amigo não vai se meter no nosso assunto e ainda vai me agradecer muito. Na verdade ele vai saborear a prisão desse crápula como se a tivesse realizado por conta própria !

- Olhe, Renato, não sei como te agradecer. Disponha de mim,seja para o que for.

- Deixe de bobagem, meu caro. Meu pagamento está na sensação de um dever cumprido. E na chance de ajudar um excelente amigo. Mas ainda acho quase incrível que um mesmo ventre possa gerar duas irmãs gêmeas tão idênticas fisicamente e tão diametralmente opostas em termos de caráter.

- Pois é. Mas como dizem, toda família tem uma ovelha negra...

Na pista do clube hípico, Marta realizou com Thor, seu castanho ágil e muito bonito, o último salto do pequeno percurso de treinamento. Lucia, sua professora, voltou-se para Jonas.

- Que tal ? Para quem monta há oito meses apenas, acho que ela está ótima ! Viu com que confiança e tranqüilidade ela e Thor ultrapassa-ram todos os obstáculos ?

- Ela é a minha deusa, Lucia ! Para uma mulher assim, ultrapassar obstáculos é quase uma brincadeira...

- Acho que já está na hora de preparar esses dois para percursos mais sérios. Quem sabe a prova de iniciantes no próximo concurso de verão?

- Se você acha isso, só posso concordar e apoiar. Só quero acrescentar uma coisa...

- O que?

- Se ela entrar nessa prova com a determinação com que encara a própria vida, os adversários dela que se cuidem...

- Que confiança você tem em sua mulher !

- Absoluta, Lucia ! Entre nós dois nunca houve lugar para sequer uma sombra de desconfiança!

- Não é a toa que vocês dois passam essa impressão de uma cumplici-dade permanente.

- Cumplicidade ! Você usou a palavra perfeita para definir nosso casamento.

A amazona e sua montada aproximaram-se deles.

-Querido !

- Já sei, meu amor. Você está mortinha de fome.

- Que percepção adorável a sua. E...

- E...vou pegar uma mesa para nós e adiantar seu pedido habitual de um filé mal passado, quase sangrento. Que tal convidarmos a Lucia?

- Ótima idéia,amorzinho ! É sempre bom ter uma testemunha quando a gente exerce nossa compulsão carnívora ! Mas antes...

- Sei, antes o seu chuveiro para lavar o corpo e a alma de todas as culpas possíveis e imagináveis...

- De todas, meu amor ! Nem ouso pensar na hipótese de alguém me olhar com um fio de suspeita !

George Luiz
Enviado por George Luiz em 10/05/2007
Código do texto: T481845