Amor em jogo

Marcelo encontrava-se de pé, debruçado sobre a escrivaninha amarela, encarando uma pilha de papéis que ultimamente crescia cada vez mais, enquanto sua esposa o observava da cama, envolta em lençóis.

— Marcelo, vem dormir, já é tarde. — Ela disse com a voz sonolenta e suas pálpebras quase se fechando contra sua vontade

Mal havia se sentado e logo levantou-se para pegar um copo grande de café preto e fumegante. Na volta, deu um beijo na face de sua esposa que já descansava tranquilamente, e voltou ao trabalho. Vinha sendo pressionado pelo editor há semanas para que o enviasse logo os capítulos finais do seu livro, intitulado “Meus demônios”

Amassou todas as folhas escritas e as atirou uma a uma na lixeira ao lado. Virou a madrugada escrevendo, se envolvera tanto com a escrita que quase se atrasara para o “trabalho de verdade” como muitos dizem. O trabalho de escritor era paralelo ao de advogado que era a carreira que seu pai, seu Antônio, homem simples, mas realista, sempre sonhara que ele seguisse. Seu Antônio sabia que vida de escritor não é pra qualquer um, mas nada do que ele dissesse faria com que Marcelo, que desde bem pequeno almejava tornar-se contador de histórias, desistisse do que queria e, para não criar mal estar com o pai a quem tanto amava, Marcelo decidiu que seguiria as duas carreiras, se assim fosse possível. E era.

Marcelo casara-se cedo com Marcia que sempre admirara a coragem e determinação do amado para ir à busca do que queria, mas atualmente, já estava ficando cansada de noites em claro, da ausência do marido e de datas esquecidas.

“É só até eu terminar o livro amor, e tudo isso vai mudar, eu prometo” Era o que Marcelo dizia, mas terminar esse livro parecia-lhe uma tarefa impossível.•.

Na manhã seguinte, saiu às pressas, deixou apenas um bilhete para a esposa que ressonava profunda e tranquilamente:

“Querida, me desculpe, prometo que não farei novamente, de agora em diante, passaremos todas as noites juntos, e, numa noite dessas ainda vou te compensar! Eu te amo meu amor.”

Durante o trabalho passou o dia pensando em seu livro e em sua esposa simultaneamente, precisava terminar o livro e prometera a esposa que passaria as noites com ela, mas como? Como faria para conciliar as coisas que mais amava na vida? Não achou uma resposta.

Nesse dia Marcelo chegou tarde do trabalho, já era quase madrugada. Entrou em casa sem fazer um mísero ruído, a ultima coisa que gostaria era acordar Marcia que dormia tão tranquilamente, seria quase um crime interromper um sono que parecia tão bom.

Ele sussurrou-lhe no ouvido: “desculpa meu amor”! E deitou-se para dormir. No dia seguinte, saiu mais cedo, a fim de evitar hora extra no expediente, poderia escrever um ou dois capítulos do livro e quem sabe levaria Marcia para jantar. Estava animado. Chegou novamente tarde da noite, dessa vez, quase madrugada. Seu chefe prendera-lhe no trabalho, queria que adiantasse relatórios e mais relatórios. Marcelo estava estressado, chateado, cansado e triste por não estar dando a Marcia a vida que a havia prometido e a merecida atenção. Ao chegar em casa, Marcia novamente encontrava-se dormindo, virada para o lado oposto ao dele.

“Querida, eu entendo que esteja chateada, mas isso em breve acabará e poderei lhe dar a vida que prometi!. Boa noite, amor.” — Ele sussurrou-lhe.

Na manhã seguinte Marcelo novamente saíra mais cedo e estava decidido, diria a seu chefe que estava impossibilitado de fazer horas extras, precisava descansar e cuidar da família, ainda que esta fosse composta apenas por ele e sua esposa. Não deu certo, seu chefe ameaçou-lhe, indiretamente, de demissão. Não teve jeito, teria de fazer as coisas como o homem queria ou iriam para debaixo de um viaduto, e isso ele não deixaria acontecer a Marcia, nunca. Ela trabalhava, mas o que ganhava era suficiente apenas para pagar contas como água e luz. Ele não podia deixar que isso acontecesse, já bastava a vida “solitária” que ela levava, ele a amava demais para deixar que isso acontecesse.

Na manhã seguinte, quando se levantou sonolento e dolorido para mais um dia em que sentiria saudades da esposa e da vida que levava antes, sentiu, ao pisar no chão, algo estranhamente liso e macio tocar-lhe a sola dos pés. Abaixou-se com a visão ainda turva pela recente esfregada nos olhos e viu que tinha em mãos um envelope amarelo, sem nada escrito na frente. Olhou da esposa, demorando-se um pouco nessa, para o envelope e o abriu:

“Ma, lembra-se de quando nos conhecemos? Eu o achava a pessoa mais incrível do mundo e fazia de tudo para estar ao seu lado, e ainda acho. Eu o amo mais do que qualquer coisa ou pessoa que você possa imaginar, por isso fiz o que fiz. Não suporto mais viver sem a sua presença, sinto muito a sua falta, e eu sei que isso não vai acabar agora, por isso, te libero do nosso compromisso.

Espero que você consiga terminar os seus livros e encontre alguém que possa acompanha-lo nessa jornada. Eu te amo Marcelo!” 22/08/2014

3 dias atrás. Ele olhava aturdido e confuso do envelope para a esposa. Ele a chamou, sacudiu, gritou e por fim sentou-se, e chorou. Sentia-se culpado pelo que acontecera, e realmente o era. Turbilhões de pensamentos invadiam sua mente numa velocidade inimaginável. Seu coração parecia estar sendo dilacerado aos poucos, como se uma faca estivesse sendo fincada lenta e cruelmente no órgão, fazendo-o sentir uma dor que nem se quer, imaginava existir.

Não havia outra coisa a se fazer, precisava acabar com aquilo.

Aquela dor... Ninguém merecia sentir algo como aquilo. Ainda confuso, mas ainda assim decidido, Marcelo foi até a cozinha, pegou uma garrafa de álcool e uma pequena caixa de fósforos, espalhou todo o álcool em cada canto da casa, e em seguida deitou-se ao lado de sua esposa, Acendeu um fosforo e jogou num canto qualquer, e ali, ele esperou que as chamas o consumissem e o levassem para junto da pessoa que mais amou nesse mundo.

Nada restou da casa, nem uma se quer pista do amor que ali havia existido. A perícia declarou incêndio criminoso, Marcelo havia matado a esposa e em seguida se matara colocando fogo na casa.

— Mas ele parecia um homem tão bom... — Dizia um dos vizinhos.

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