A Casa que Chora

Faz tempo que ela está ali, velha e acabada, a dois quarteirões da minha casa. Consegue-se ver de longe. Mas, ninguém tem coragem de entrar naquela casa e foi enquanto minha mãe conversava com uma vizinha que eu soube o porquê.

- Um menino de três anos foi morto ali.

- Verdade? - disse minha mãe, pasma.

Também não fazia um ano que nos mudamos para aquela cidade, aquele bairro.

- Sim. O garoto foi morto pela própria mãe!

- Credo! - ela colocou a mão na boca.

- Para você ver até que ponto chega a maldade humana. - suspirou a vizinha.

Quando menos espero, sinto um puxão na minha orelha.

- O que você está fazendo aqui, menino? Ouvindo a conversa dos outros? Não te ensinei a ser enxerido!

- E os pesadelos, Gabriel? Está livre deles? - brincou a vizinha.

Não gostei nenhum pouco daquela intimidade. Minha mãe com certeza já tinha contado dos meus sonhos para aquela chata. Mas, como resposta: eu tenho só sete anos e muito bem feitos para o seu governo, minha senhora!

Porém, aquela conversa me deixou intrigado e tinha algo a ver com aquela casa abandonada do outro lado da rua. Toda vida que eu passava em frente a casa, morria de curiosidade. Segundo diziam: existia o fantasma de uma criança ali e muitos já escutaram choros e gritos por várias horas e quando vão ver, não tem nada nem ninguém. Estranho.

Por sorte, tenho amigos com quem posso contar. Lucas, meu melhor amigo, curte uma aventura, sempre que dá jogamos no seu videogame um survival horror.

- Você ficou maluco? - exclamou Lucas quando lhe dei a noticia.

- Está com medinho? - provoquei.

- Claro que não! Mas, esse negócio não é fictício como um jogo.

- Claro que não.

- Isso é real!

- Sim.

- Eu gosto mais do fictício!

- Já devia saber, tu é um covarde que nem o Mário.

- Não sou não! - impostou a voz

Se havia uma coisa em todo o mundo que Lucas mais odiava era ser comparado com Mário, menino alto e magro, dentuço e loiro. E ainda tinha a Carmen, a garota com óculos fundo de garrafa, para gostar de tal criatura.

- Reúna o restante da turma e vamos hoje. Que tal?

Nos despedimos na porta de casa. E ao entrar bateu uma fome...

- Gabriel! - chamou minha mãe.

Cheguei na porta da cozinha.

- Para onde a senhora vai?

- Vou na casa de sua avó, ela está doente.

Olhando direitinho, minha mãe era uma bela mulher, morena com longos cabelos escuros e um sorriso que derretia qualquer um. Não passava pela minha cabeça o motivo que meu pai pediu divórcio.

- Estou com fome! - segurei a barriga.

- Tem bolo na geladeira... Mas! Nada de sobremesa antes do jantar, ouviu?

Um sorriso largo de orelha a orelha tomou conta do meu rosto.

Tudo parecia colaborar com o plano para esta noite. Antes de sair, ela me deu um beijo no rosto que ficou a marca do batom. Nada contra, mas é pegajoso aquela baba na bochecha!

Jantei um pouco, um prato com um bocado de arroz, feijão e galinha, mas quando abri a geladeira e vi aquela paisagem de chocolate... Comi três fatias bem generosas!

O relógio na parede marcou nove horas e eu não conseguia nem andar direito de tão cheio. Porém, seriam o combustível suficiente para uma hora de aventura. Peguei minha mochila e coloquei lanterna, corda, minha pistola d'água e outras bugigangas.

A campainha toca.

Lucas, Marcos, Matheus, Vitor, Carmen e Alex.

- Que lugar nós vamos hoje? - perguntou Vitor. Ele era do meu tamanho, inteligente do tipo nerd, usava óculos quadrado.

- Aquela casa da esquina. - respondi.

- A casa que chora? - olhou Alex.

- O que?

- Minha mãe diz que aquele chorinhos são da casa.

- Está com medinho?

- Mulherzinha! Mulherzinha! - Matheus e Marcos riam.

- Que é? Está me estranhando? - Alex bateu no peito de Matheus.

- Vocês não estão com nada, sabia disso? - desafiou Lucas. Era o mais velho da turma, dez anos, seus cabelos finos caiam sobre os olhos.

- Em vez de ficarmos aqui perdendo tempo, por que não provamos essa coragem toda lá? - provocou Carmen.

- E cadê o Mario? - perguntei.

A mãe dele disse que estava doente - explicou Alex.

Fomos caminhando pela calçada. A noite, o bairro não era tão movimentado, principalmente perto da casa. A iluminação era boa, mas ninguém ousava se encostar na calçada da casa abandonada por medo de escutar os famosos murmúrios.

Passamos a pista. As paredes dos muros estavam pichadas e uma das frases dizia "CAIAM FORA!", na certa para espantar curiosos. O portão estava enferrujado, fizemos força para movê-lo, quando escutamos um rangido, enfim a pequena abertura foi suficiente para passar um de cada vez.

Árvores com galhos que pareciam mãos, folhas secas caídas no chão, arbustos altos davam a impressão de um antigo jardim. A luz da varanda estava acesa.

- Uma criança que morava aqui foi maltratada pela própria mãe. - disse Lucas.

- Sério? - olhou Alex - Essa parte eu não sabia.

- Dizem que a mãe do menino tinha problemas mentais e quando dava banho em seu filho também esfoliava seu corpo...

- Vai ver que a criança era sujinha - brincou Vitor.

- Ela esfolava mesmo! Não esfoliava!

- O corpo de uma criança de três anos é bem diferente do nosso, é super sensível!

- Lucas tem razão! - comentei.

- E ele morreu por causa disso? - perguntou Carmen. A única mulher do grupo, pequena e invocada.

- Não - disse Lucas pausadamente - A criança morreu porque sua mãe esfolava seu corpo com um ralador. O marido da mulher batia muito nela e ela descontava na criança.

- O quê? - Marcos e Matheus ficaram perplexos.

- Credo! - exclamou Carmen.

A história deixou todos mais receosos. Entrar ou não entrar, passar da porta ou não... Alguns quiseram voltar, porém Lucas e eu convencemos o restante. Abrimos a porta, a casa era pequena e um pouco escura, iluminada apenas pela luz de fora; a sala só tinha um sofá velho e rasgado, uma mesinha e um abajur quebrado. Lucas comenta que são dez e meia da noite.

- Loucura! - murmurou Marcos.

- Está com medo, mulherzinha? - Alex deu uma risadinha, satisfeito de ter pago com a mesma moeda.

- Cala a boca!

Um vento forte e frio tomou conta da casa. Grande foi o arrepio que me subiu a espinha!

- Foi só o vento - acalmou Lucas.

Além da sala, tinha mais dois cômodos. Liguei a lanterna para enxergar melhor: um quarto com um berço de madeira e uma banheira azul ao lado no chão. Um cheiro podre subiu.

- Meu irmão... - Matheus tapou o nariz.

- Que serviço do inferno foi esse? - Marcos subiu a camisa.

Escutou-se um pequeno e imperceptível choro infantil. Ainda sim continuamos no quarto.

- Olhem! - Vitor agachou-se perto da banheira e viu tiras de pele apodrecidas. O cheiro devia vir da água.

De repente, um grito de criança ecoou por toda a casa. Olhares... Correria.

Saímos do quarto desesperados, atropelando um e outro querendo ser o primeiro a escapar. Mas, eu os interrompi no meio do caminho mesmo com o coração acelerado:

- Calma gente!

- Calma? - disse Vitor tomando folego.

- Você não ouviu aquilo? - retrucou Alex.

- Talvez não fosse aqui!

- Talvez você leve um soco na cara se não sair da frente! - ameaçou Matheus.

- Gabriel, são onze e meia - comentou Lucas. Embora disfarçasse bem, ele também estava se borrando de medo.

Lembrei da minha mãe.

- Melhor deixarmos o desfecho dessa aventura para outra hora. - continuou ele.

- Está bem. Amanhã voltamos!

- Só se for você - riu Alex.

Todos se retiraram, mas antes que Alex fechasse a porta, ele viu uma criança com o corpo todo ferido e marcado, sentada no sofá, olhando para ele.

Só escutamos os gritos de Alex. Ele se aproximou de nós bem pálido.

- Eu vi a criança! Ela olhou para mim! Ela estava sangrando! - respondeu com dificuldade. Suas mãos e lábios tremiam.

Todos caímos na risada. Mas, seus olhos arregalados não mentiam. Por dentro, senti o receio.

- Mas a gente escutou aquele grito. - disse Carmen.

- Verdade - disse Matheus

- Eu lembro - retrucou Marcos.

Quando cheguei em casa encontrei minha mãe, ao pé da porta, com um cinto na mão. É hoje, pensei.

- Muleque! - vociferou.

- Mãe - engoli seco. Agora eu estava tremendo de medo.

- Eu devia acabar com tua raça! - apontou o cinto na minha direção - Onde você se meteu?

Ela acabou me abraçando.

Suspirei.

- Na casa assombrada.

- O QUÊ???

- Calma... Eu p-posso explicar...

- Fiquei tão preocupada, meu filho! Pensei que alguém tinha te sequestrado! Até chamei a policia! Não saia sem avisar! - e entramos em casa.

Escutamos o som da sirene.

Minha mãe teve que explicar o mal entendido e levou uma bronca dos policiais que disseram para ter mais cuidado com o próprio filho. O medo de me perder foi maior do que o medo de ser presa por me bater.

Na manhã seguinte, na hora do intervalo, discutimos sobre a noite passada. Umas meninas da turma da Carmen vieram fazer mil e uma perguntas e as dispensamos logo. Vitor comentou que tinha visto uma criança na banheira na hora que corremos. Era um fantasma que estava em vários lugares ao mesmo tempo. Confesso que eu fiquei arrepiado só de lembrar daquele grito. Todos viram alguma coisa, mas eu não vi nada, eu queria ver e estava decidido a voltar naquela casa.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 29/07/2014
Reeditado em 25/03/2021
Código do texto: T4901182
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