COSTUMES

A mãe, um menino de dois anos agarrado à saia, outro, abandonado ao colo abanando as mãozinhas, como estivesse afogando e pedisse proteção.

Não tinha mais forças para manter-se em pé, os olhos secos, negros e profundos emoldurados por uma tez amarelada, sobressaíam neste quadro onde se podia adivinhar cada reentrância dos ossos sob a pele escassa.

O pai, um pouco afastado, sentado num banquinho que balançava com o peso de seu corpo, possuía a cara enrugada, não pela idade, mas pelo sofrimento de ver, ano após ano, a família passar fome e sofrer humilhações. Vivia fazendo biscates

Os sulcos, na sua face, representavam uma resposta negativa a um pedido de emprego, um olhar de desilusão vislumbrado no semblante dos filhos quando voltava para casa sem o pedaço de pão e cristalino punhado de açúcar para cada um, único sabor doce em vidas tão amargas, a vergonha de ser pego roubando um litro de leite para o filho menor, a acusação de fracasso observada nas entrelinhas das conversas familiares.

Ao anoitecer, na pequena peça escura, ao canto, jazia pequena cabecinha loura que não resistira a uma pneumonia. De seu pequeno corpo transparente emanava uma luz, proveniente da única vela acesa no local ou, talvez, da paz que este estado de inércia proporcionava ao outrora, volátil ser, impedido, agora de voar nas brincadeiras infantis terrestres.

O homem, constatando que já era hora, a pedido da mulher havia prorrogado o prazo da cerimônia, levanta-se e caminha cambaleante em direção ao catre que servia de cama para toda família, segura um cobertor roto e encardido e envolve o anjo adormecido. Segue em direção à porta, pára no limiar, pensativo, tenta lembrar o lugar preferido do filho no quintal minúsculo e enlameado pela chuva miúda que caía desde a véspera.

O ponto escolhido, de aparência inóspita, aparenta contrariedade em receber, nas suas entranhas, o inesperado hóspede. Forma-se um temporal, o fluxo de água se intensifica. Trovões esbravejam e raios faíscam no céu, entoando estranha sinfonia e inusitados fogos de artifício.

O pai, perplexo e amedrontado, sente-se aliviado, terá de adiar a bizarra tarefa até que a terra fique mais consistente e acolhedora. Poderá ficar mais tempo com seu menino.

Passada a tempestade e já amanhecendo é chegada a hora de executar o planejado. De acordo com costume, quase obrigatório no local, devido às circunstâncias, a maioria dos vizinhos já passou por situação semelhante por mais de uma vez.

Encontra o local escolhido que lhe parece o mais aconchegante. Não existe por perto uma árvore para servir de abrigo ou mesmo sinalizar o lugar que, para a família, ficará santificado.

Começa a cavar e a água teima em invadir os sete palmos abaixo do chão, continua a revolver a terra, agora, com raiva, com as mãos, sem forças, de joelhos, enlameado até a alma. Não encontrando outra solução, deposita o invólucro no buraco, temendo provável devolução.

Mas, à medida que afunda, morosamente, na escuridão, desaparece aos olhos do pai, que com as mãos, em movimentos lentos, vai empurrando a mistura de areia e terra que sobraram à volta .

Com a visão turva pelo sofrimento, pega um graveto para marcar a extremidade onde estaria localizada a cabeça – mais tarde faria uma cruz - olha ao redor, desesperado, procurando algo mais original , ação que delimitaria a dor e o tormento pelo que havia feito.

Encontra uma lâmina de lata de óleo comestível, desamassa-a e escreve, com um prego, o nome “Michael”, colocando-a encostada no galho de árvore com o que já havia marcado o local.

Depois do incidente, passou dias lembrando do nascimento e da infância dos filhos. Quando sua mulher escolheu um nome estrangeiro para colocar no menino, pensaram ser um bom presságio, a maioria dos que se dão bem na vida tem nome complicado.

Não conseguia dormir, matutando sobre sua própria sorte, o que poderia ainda fazer para mudar a situação na qual se encontrava. Continuava trabalhando em alguma coisa aqui, outra ali e no final do dia voltava para casa, acabrunhado e triste, olhava para o marco da miséria no fundo do quintal e o arrependimento aniquilava-lhe a mente e a disposição para qualquer atividade.

Estava difícil viver com este peso no coração. Sentia muito a perda, mas acima de tudo, assombrava-o a idéia de que não fora capaz de proporcionar um enterro decente para o filho.

A morte ia devorando a vida, aos poucos, primeiro a energia, depois braços e pernas, coração, fígado, rins e finalmente o cérebro. Não suportou mais a realidade, transportou-se para um lugar fantástico. Quando a mulher ia visitá-lo, encontrava-o com um graveto na mão, gesticulando, como se cada gesto pudesse apagar-lhe as lembranças malditas..

Atravessando o tempo, a situação continua a mesma. Mais um rebento adoeceu e a semelhança com o primeiro episódio torna-se eminente, inundando a mente do pobre pai de imagens assustadoras que o levariam, junto com a família para um eterno pesadelo.

No verão, não chovia mais, ao contrário, a terra estava ressecada. Começou a cavar com muita dificuldade. O solo árido recebia as gotas de suor da face descarnada e regozijava-se exibindo pequenos pontos mais escuros que, aos olhos do atormentado, formavam olhos e bocas que sorriam diante do seu sofrimento.

Ao abrir a cova do tamanho certo, não parou, continuou rasgando o chão até não ter mais forças.

Ao abrir a porta que dava para o quintal, a mulher avistou, ao lado da palavra “Michael” apenas as duas mãos do marido, acima da terra, descobertas, e gritou!

Inalva Froes
Enviado por Inalva Froes em 14/08/2014
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