QUADROS INSANOS

Louco. Aquele à minha direita e com o emoldurado metálico, cor prata, bem desgastado, é o quadro de nosso tipo louco. Difícil de compreender sua trajetória. Por isso, nunca falamos muito dele. À esquerda, com espelho embaçado e plano de fundo pouco curvado, manchas e fios de poeira sobre as bordas, é o retrato de nossa tia Fyndra. Ainda era jovem quando faleceu. Em seus vinte e poucos anos, jamais teve sorte. Foi uma comida vencida que a intoxicou. O dia de sua partida foi dos mais tristes. Não apareceram muitos amigos e o enterro ocorreu sem lágrimas. Lá ao fundo, sobre um pequeno lavado, tem mais um quadro. É o da tia Karen. Se chamava Antônia mas, não se sabe o porquê da transmutação. Muitas vezes, em ocasiões não oficiais, chegava a assinar papeis com este nome. A nossa pobre tia Karen namora uma meia idade do mesmo sexo e elas brigam muito. Mas, não estamos autorizados a nos envolver. Nem mesmo quando as brigas tomam proporções desastrosas. Nunca podemos nos meter com elas. Certa vez, depois de muita discussão e xingamentos, quebraram alguns elétrons do quarto em que ficam. Um copo escapou pela janela e atingiu meu irmão Pedro, fazendo um pequeno corte no couro cabeludo. Somente nesta ocasião meu pai interveio.

Sobre a mesa da sala ainda há outros quadros que foram retirados para limpeza. Já faz algum tempo e minha mãe se pergunta quando retornarão ao lugar devido. Há paredes suficientes na casa e, ela não se conforma com a falta de zelo de meu pai. Ele responde que ainda está providenciando uma restauração eficiente e permanente. Mas é somente isso.

Éramos uma família feliz. Nossa vó Catarina conta que isso mudou depois que o quadro de Midra, minha irmã que seria a mais velha, caiu da parede. Era um domingo e todos comemoravam o casamento de Nauber e Frida. Os noivos se foram, após as felicitações. Todos também tomaram rumos. Naquela tarde de festa, outros pares aproveitaram para reviver as suas ocasiões festivas. Mas, a mãe ficou só em casa. Contam que meu pai não estava quando ela gritou muito e não pode controlar-se. Os policiais chegaram e ela já estava ao chão, sobre uma pilha de quadros. Alguns retratos, de parentes distantes, jamais foram encontrados. As manchas, em alguns, dizem que é de sangue da minha mãe. Não foi possível limpá-los bem. O sangue impregna e fica a marca, fica o cheiro e modifica a realidade da coisa em si. O sangue que nos dá vida, deixa também, a sensação da morte. Das duas uma: é a vida que traz a morte, ou, é a morte que traz a vida. Ou ainda: elas estão mancomunadas, de concluiu, contubérnio. Morte e vida em camaradagem contra minha mãe.

Após se passarem alguns anos, a perícia criminal apresentou um resultado para os exames feitos com a coleta de sangue que minha mãe deixara nos quadros. Não era seu. O sangue nos quadros não era de minha mãe. E é por isso que meu pai não quer retorná-los às paredes. Aqueles quadros insanos tem outros mistérios que não conhecemos bem. E, aquele que está entre os adultos, com um olhar assustado, sou eu. E aquela marca, ao fundo, de recorte, contam que é o espaço de minha irmã. Contam que meu pai recortou. Contam que ele estava enfurecido. Contam que ele chorou muito aquele dia. Contam que minha vó o acalmou. Contam outras coisas também, a respeito de meu pai. Mas nunca contam nada sobre Midra.