392-PROCESSADO DEPOIS DE MORTO

— Pois é. Uma desgraça nunca vem só. Agora, está correndo um processo. — Dolores, ainda desconsolada pela morte súbita do marido, desabafa com sua melhor amiga.

— Processo? Mas...que processo? — Albertina se surpreende.

— Recebi ontem uma convocação. Vou ter de comparecer em juízo para prestar declarações.

— Uai, Dô! Que coisa mais esquisita.

— O doutor Murta, cê conhece, o nosso médico, me falou pra contratar um advogado. Diz que posso até perder minha casa. A família de dona Filomena quer indenização pela morte da velhinha. Como se o Eudes fosse culpado do que aconteceu.

Dona Filomena volta da missa. Como faz todas as tardes, passou na padaria e vem carregando uma sacola com pães e um litro de leite. Com ela mora a neta Diana, que estuda em faculdade no bairro e que passou a lhe fazer companhia desde que ficara viúva. Ao passar defronte o edifício de apartamento, se lembra:

Tenho de telefonar para Dolores. Será que o marido melhorou? Coitado. Eles foram tão bons para mim, quando fiquei viúva.

Eudes era funcionário do Banco Alfa-BHC. Ficou desempregado quando houve a fusão do antigo Banco Alfa com um importante grupo Alemão, BHCBank e as demissões aconteceram por atacado. Com quase trinta anos de trabalho, prestes a se aposentar, sentiu a demissão como uma navalhada na própria carne.

Procurou outro trabalho, ao mesmo tempo em que entrou na justiça contra o banco. Há um ano corria de lá pra cá, fornecendo documentos, prestando declarações e indo de um cartório a outro. Não conseguia sucesso em nenhuma tentativa — nem novo emprego nem reintegração no antigo trabalho.

Os amigos brincavam com ele, que estava ficando obcecado pelos seus problemas.

— E aí, Eudes? Quando voltar ao emprego, já estará aposentado. Vai ser engraçado.

Por isso, passara a evitar os amigos. Pouco conversava com a mulher. Tratava mal os filhos, quando estes o visitavam. Quando não estava na rua, “tratando de seus interesses”, como dizia, enfurnava-se no quarto, onde permanecia horas e horas sentado numa poltrona.

Em uma das visitas do amigo e médico doutor Murta, este o preveniu, bem como à esposa:

— Se continuar assim,vai entrar em depressão. Vamos, homem, reaja! Saia, procure se distrair.

Em uma dessas visitas, dispensou o conselheiro e velho amigo.

— Fala assim porque não é com o senhor! Ponha-se no meu lugar. Se for pra me aborrecer com estes conselhos, melhor não vir mais.

Aconteceu o previsto. Entrou em depressão. A apatia geral chegou rapidamente, provocando em Eudes a sensação de inutilidade e de não dar nenhum valor à vida. Daí a pensar em suicídio foi coisa de pouco tempo.

Do pensamento à ação não levou uma semana. Decidiu-se que dali mesmo, no edifício, poderia levar a cabo o seu intento. Morador em apartamento do 14o. andar, já estivera por diversas vezes na laje superior, dois andares acima, quando fora síndico. Com a consciência desperta pelo desejo de morrer, sabia até do vão de onde saltaria.

Dona Filomena, preocupada em chegar logo em casa, que ficava no final da quadra, aperta o passo.

Tenho de andar ligeiro. Diana está quase chegando da faculdade. Quero lhe preparar o lanche....

Com passinhos miúdos e espertos, olhando por onde pisa, pois a calçada é irregular, não nota o corpo que, despencando do alto do edifício, a atinge em cheio, provocando sua morte instantânea.

ANTÔNIO GOBBO –

Bhte, 7 de março de 2006

Conto # 392 da série Milistórias -

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 31/08/2014
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