455-O BEIJO DA MORTE

— Vida e morte, amor e ódio, matar ou morrer... fazem parte da mesma realidade e estão tão próximos entre si que se pode passar de um lado para o outro sem querer ou mesmo sem sequer perceber. — Jean-Pierre fazia seu habitual discurso filosófico para uma pequena platéia, em torno de uma mesa de um bistrô na avenida Champs Elisées. — Não existe uma linha, um limite entre os extremos, que se tocam constantemente.

Camille de Roux escutava com certo enfado. Apesar de ser sua namorada há alguns anos, e mantivessem relações estreitas em um romance sem perspectiva, ultimamente vinha desdenhando os rompantes filosóficos de Jean-Pierre. Principalmente depois que descobrira que ele a estava traindo. As discussões em torno das idéias de Schopenhauer, Nietzche e Sartre pareciam a ela mais um disfarce para a vagabundagem do namorado, que abandonara os estudos e atualmente se declarara niilista. Era mais um daqueles bon-vivants que nos idos dos anos 60, infestavam Paris e aborreciam os amigos com digressões filosóficas sem-fim e pequenos pedidos de dinheiro.

Sim, ele tem razão. — Pensava Camille, enquanto tomava o café amargo, como gostava de saborear. — Não tolero mais esta situação. O meu amor acabou e já estou sentindo desprezo por ele.

Aos sentimentos confusos de Camille misturavam-se a profunda sensação de fracasso no relacionamento, com a raiva pela constatação de que estava sendo friamente enganada.

Como tudo era diferente no tempo em que iniciaram o relacionamento.

— Jamais te deixarei — ele afirmava. — Antes morrer do que te perder.

Noutra ocasião, num arroubo de paixão, propôs:

— Vamos fazer um pacto de amor. Nunca a trairei e você também jamais me trairá. Se algum dia houver traição, o traidor terá de morrer.

Ela não respondeu, apenas sorriu de modo enigmático. Sabia como são esses desatinos de amantes e apaixonados.

E agora ali estava ela, escutando pela enésima vez as parlapatices de Jean-Paul.

Tem razão. O que sinto por ele agora é raiva, ódio. E como ele é o traidor, segundo seu próprio compromisso, ele tem de morrer.

Camille estava no último período da Faculdade de Farmácia da Universidade de Paris. Por sua aplicação, inteligência e interesse na matéria, conseguira excelente emprego de meio expediente (apenas 3 horas diárias) em um laboratório farmacêutico de renome.

O romantismo da mocinha que era, quando iniciara o romance com Jean-Paul, transformara-se em raiva contida ao ter a constatação da traição perpetrada por ele. A fina linha entre amor e ódio havia sido rompida.

Guardou consigo todo o desgosto, esperando a hora de cumprir o que Jean-Pierre havia proposto: a morte do traidor na relação entre os dois. Manteve a mesma disposição, tratando-o com falso carinho. Quem os visse juntos, jamais poderia notar que o romance havia findado.

Um beijo. Um beijo selará a o destino desse desgraçado. E será tudo tão perfeito que ninguém nunca descobrirá.

Certa tarde, no local de costume onde se encontravam os amigos, ao redor da mesa de café, ela ardilosamente indagou de Jean-Paul:

— E o suicídio, Jean? Que me diz da pessoa que se suicida?

A armadilha armada, o laço colocado justamente onde ele pisaria.

— É o rompimento consciente da linha da vida e da morte. É o querer terminar com esta existência de modo racional, limpo, claro e quando convier. — E prosseguiu na dissertação, mostrando-se totalmente favorável ao suicídio. — .... principalmente quando a pessoa está lúcida, sem qualquer motivo aparente para por fim à própria vida.

Todos escutaram com aparente atenção, as palavras afundando-se no inconsciente de cada um como pedras atiradas num lago de águas profundas.

Camille disfarçadamente tirou da bolsa uma minúscula cápsula de plástico, que colocou na própria boca, num movimento de mão que escondia um bocejo. Em seguida, virando-se para Jean-Paul, abraçou-o com força e foi beijando a face, os olhos, a boca. Ambas se abriram para um beijo apaixonado, cálido, úmido, demorado. A cápsula passou de uma boca a outra, imperceptivelmente para Jean-Paul. O beijo demorado foi observado pelos presentes.

— Ulalá! — falou alguém, em voz alta.

Camille manteve a boca do namorado ocupada por bons minutos, a fim de que houvesse saliva bastante para que ele deglutisse a cápsula sem perceber.

A reunião continuou por mais uma meia hora, quando todos se despediram. Camille ainda tinha uma aula à noite e dirigiu-se para a faculdade. Jean-Paul disse que iria para seu apartamento. Todos deixaram o bistrô ao mesmo tempo.

Foi acordada na manhã seguinte, pelas oito horas, com batidas à porta de seu apartamento. Atendeu, entreabrindo a porta.

— Police, madam! — O homem exibiu um distintivo e perguntou: Podemos entrar?

Embora ainda de pijama, escancarou a porta.

— Mademoiselle Camille?

— Oui. O que aconteceu?

— Seu amigo Jean-Pierre Lucat. Foi encontrado morto hoje de manhã.

— Morto? Mas...como? Onde?

— No apartamento. Sozinho. Envenenado.

— Envenenado?

— Sim. Envenenado. Precisamos de sua presença na delegacia, para escla-recimentos. A senhorita foi a última pessoa que teve contato...físico com ele.

— Ontem à noite? Sim, estivemos juntos no bistrô Clemenceau. — Deu-se conta de que estava em roupas de dormir. — Preciso me trocar.

Na delegacia estavam diversos dos amigos que na véspera haviam se encontrado no bistrô.

— Morreu envenenado com arsênico. — Informou Claire. — Todos somos suspeitos.

— Mas nos despedimos no bistrô. Cada qual foi pro seu lado. Jean-Pierre foi sozinho para seu apartamento.

Dos depoimentos prestados pelos amigos e companheiros da véspera, ficou claro que Jean-Pierre estava bem disposto e alegre quando se despedira. Não houve suspeita sobre ninguém. Todos foram unânimes em destacar a cena de amor demonstrada por ele e Camille.

Claire fez menção da apologia a respeito do suicídio, exaltado por Jean, e a polícia incluiu esta possibilidade na linha de investigação.

Exames técnicos no bistrô nada evidenciaram. Bem como no apartamento de Jean Pierre. Sobre Camille houve uma suspeita, pois ela trabalhava com produtos que poderiam causar a morte. Mas nunca houve uma prova, sequer circunstancial, que pudesse indiciá-la efetivamente.

Em todas as declarações dos amigos, foi destacado o comportamento de Jean-Pierre, suas idéias nihilistas e o seu elogio ao suicídio, justamente no último encontro que tivera com os amigos.

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A diretora do Laboratório Saint-Germain assistia pela TV-France-Press a uma conferência científica sobre o suicídio, um tema que se tornara sua obsessão ao longo de sua carreira profissional. Os cabelos grisalhos, curtos, e a face com ligeiras rugas transmitiam um ar de bondade e tranqüilidade, não revelavam os sessenta e dois anos de existência.

Quando a tela ficou completamente vazia de imagens, os pensamentos de Camille de Roux voltaram-se para trinta anos atrás, quando a morte por envenenamento de Jean-Pierre Lucat (ela se lembrava bem...) foi levada à conta de suicídio e o caso arquivado pela polícia de Paris.

ANTÔNIO GOBBO

Conto # 455 da Série Milistórias –

BH, 13 de outubro de 2007

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 22/10/2014
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