461-QUEDA NA COVA -Contos do cemitério

QUEDA NA COVA

Prefacio ou primeiro conto para o Volume 8.

= Onde estou? Ai, ai, que dor!

Pensamentos e sensações atropelavam-se na cabeça da velhinha, ao acordar do ligeiro desmaio. Os olhos entreabriram-se ligeiramente. Havia ainda no ar uma poeira levantada pela queda da mulher na cova.

= Minha Nossa Senhora Aparecida, me acode!

Está deitada de costas no fundo do buraco. Qualquer movimento acirra as dores pelo corpo todo. Abre bem os olhos.

=Já está escurecendo. Ou não estou vendo direito.

Levanta o braço esquerdo, tocando a parede de terra. O terreno está duro e liso. Tenta sentar-se.

=Ai, ai, ai! Parece que estou toda quebrada.

Em seguida, tomada pelo pânico, grita:

= Socorro! Socorro!

A voz débil não vai muito além da cova onde jaz a senhora. Em silêncio, aguarda inutilmente uma resposta.

= Não adianta. Já está anoitecendo. O cemitério já deve estar fechado.

Uma onda de desespero toma conta de sua mente. Tenta arrastar-se para mais próximo da parede da cova. Com esforço e muita dor, consegue encostar-se à parede.

= Se pelo menos puder me sentar. Ai, ai! Estou toda quebrada.

A prática de muitos anos do exercício de enfermagem faz com que ela tome consciência de qual parte do corpo está, de fato, quebrada.

= Ai! Parece que quebre a bacia. Não consigo me sentar.

Cansada devido ao pequeno esforço e à dor constante, causada pela provável fratura da bacia e pelas escoriações, deixa-se ficar deitada. Olhando para o céu.

=Já tem uma estrelinha piscando. Minha Nossa Senhora Aparecida, agora sim,ninguém virá me acudir. Vou ter que passar a noite aqui.

O desespero aumenta.

=Socorro! Me acudam! Aqui! Dentro da cova!

Sente-se exausta. Lembra os últimos momentos antes do desmaio.

=Estava passando ao lado da cova aberta hoje de tarde. Para o enterro de dona Eufrozina. Acho que tropecei no monte de terra.

Evita fazer qualquer movimento, para não sentir dores. Uma sonolência vai tomando conta, as pálpebras teimam em se fechar.

=Tenho de permanecer acordada. Se dormir, posso nem acordar mais.

Ela conhece o perigo da sonolência após uma queda. Desesperadamente, se põe a distrair o pensamento a fim de se conservar acordada.

Lembranças. Lembranças e mais lembranças acodem-lhe à mente, desordenadamente. À recordação dos últimos momentos antes da queda misturam-se à da coroa que terminara antes de sair da flora. Flashes de momentos recentes misturam-se aos de eventos antigos. O esforço de concatenar as lembranças faz com que permaneça acordada.

Então, as lembranças vão desfilando numa ordem lógica, o que lhe proporciona certo conforto.

O nascimento e a morte foram, desde que se entendia por gente, a motivação da sua existência. A mãe, viúva, ganhava a vida lavando roupa para fora, isto é, para as famílias ricas do centro da cidade. Isto fazia para a sobrevivência própria e da filha, Carolina Beatriz. A sua aptidão, o seu dom era mesmo ser parteira e lava-defuntos. Duas atividades aparentemente opostas, uma no começo e outra no fim da existência, mas que Dona Tereza exercia com o mesmo carinho, desvelo e — a verdade seja dita — com amor.

Na pequena cidade de São Roque da Serra, Dona Terê era chamada para assistir a quase todos os partos. E atendia prontamente quando era requisitada para preparar defuntos, que não era uma profissão tão digna quanto à de parteira, mas igualmente necessária, no seu tempo. Lavava e trocava o morto ou a falecida com o mesmo respeito. E ajudava até na decoração da sala do velório ou no caixão para o enterro.

Carolina Beatriz acompanhava a mãe desde tenra idade. Quando se tornou mocinha, passou a ajudar nos nascimentos, correndo com bacias de água quente, lençóis e toalhas limpas; a mãe, por mero respeito, não permitia a presença da filha na delicada e misteriosa sessão de lavar e trocar a roupa dos defuntos. Entretanto, a menina estava sempre presente nos velórios, ajeitando as flores ou arrumando as velas nos castiçais. Por iniciativa própria, elaborava pequenas coroas de flores e ramos, as quais colocava aos pés do defunto.

Carol começou a trabalhar assim que saiu do grupo escolar. Era bem desenvolvida, magra e alta, ágil e bem disposta, e começou como faxineira do hospital. Foi numa época de boas relações trabalhistas, as pessoas pobres conseguiam engajar num trabalho honesto e aprender um oficio ainda na meninice. De faxineira, passou a ajudar em pequenas tarefas na enfermaria e, ao completar quinze anos, fez uma surpresa à mãe:

— Mamãe, consegui! Fui “promovida”! Agora sou enfermeira!

No hospital, pelo trato delicado com os doentes e pelo espírito sempre alegre, jovial, e também pela competência, foi conquistando a simpatia dos doentes e o reconhecimento dos médicos. Ia além da sua obrigação profissional ao ajudar os familiares dos falecidos, confortando-os e orando no velório e acompanhando o enterro.

Carol não se casara. Ao morrer a mãe, ficou só, mas jamais solitária. Ao se aposentar, não se permitiu um dia sequer de descanso. Tratou logo de por em prática uma idéia que há muito lhe ocorrera. Montou uma loja de flores e especializou-se na confecção de coroas para funerais.

A Flora Dona Carol foi, durante muitos anos, a única da cidade. Situada estrategicamente na Praça da Saudade, defronte ao portão de entrada do cemitério, era a única fornecedora de flores e coroas para os velórios, que, então, já eram feitos nas salas especiais construídas no campo santo.

E pelo profundo sentimento de compaixão para com os mortos, Carol não só acompanhava-os até a última morada, como visitava todos os dias a necrópole, lembrando-se dos mais chegados e orando por todos.

Não havia morto enterrado no cemitério municipal cuja história fosse desconhecida de Carol. Pois ao confeccionar as coroas, ia lembrando da vida dos conhecidos, ou se enfronhando nos detalhes das mortes dos desconhecidos.

Com o passar do tempo, passeava entre os túmulos, carneiros e mausoléus como qualquer pessoa caminhasse pelas ruas da cidade, cumprimentando a todos, acenando para os amigos e se lembrando de cada um. Para ela, a morte era tão natural como o nascimento fora para a mãe.

— A cada um, a coroa de seu merecimento. — Ela filosofava, ao entrelaçar ramos, flores e fitas. — Há os que recebem muitas coroas, há os que não recebem nenhuma. Nesta vida, não há igualdade. Isto é só depois que se atravessa o Portal da Eternidade.

É claro que alguns poucos não recebiam coroas, mas nem por isso Carol os ignorava. Visitava-os e dirigia-lhes a mesma atenção.

Carol foi vendo o tempo passar, a morte ceifando cada vez mais.

— ”Ela” tem andado muito ocupada. — Dizia Carol. — A humanidade não pára de crescer. Se não fosse Ela, já não tinha lugar pra mais ninguém aqui em baixo.

O tempo cobrava de Carol as noites insones, o excesso de trabalho e a falta de repouso. Perdera a agilidade, as costas arquearam-se e a vista diminuíra. Na suas andanças dentro do cemitério, caminhava com dificuldade e cansava-se com facilidade.

Na tarde enevoada e gelada de julho, Carol parou diversas vezes para descansar. O sol já sumira por trás da fileira de esguias e altas árvores. A tarde estava sem luz devido à névoa. Sentiu-se desorientada.

Zanzando, foi de um lado a outro, chegando até onde algumas covas tinham sido escavadas naquele dia. Tropeçou em uma ferramenta abandona, resvalou por um monte de terra, perdeu o equilíbrio e tombou. Rolando pela terra solta, emitiu um grito fraco enquanto despencou pela cova recém-aberta.

No dia seguinte, o coveiro encontrou o corpo. Gelado. Os olhos escancarados evidenciavam o terror dos últimos momentos de vida da velhinha.

Poucas pessoas compareceram ao velório abreviado por condições óbvias. O enterro foi feito debaixo de fina garoa na manhã cinzenta e fria.

E Carol, que havia elaborado centenas de coroas não teve uma coroa, sequer um ramo de flores para ornamentar a sua sepultura.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 12 de novembro de 2007

Conto # 461 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/10/2014
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