A morte erra o alvo

George Luiz – A morte erra o alvo

Nos últimos tempos, as roupas do delegado Afrânio Moreira pareciam ter sempre acabado de sair da lavanderia. Seus colegas da Secretaria de Se-gurança, a principio estranharam essa sua elegância. Mas logo perceberam que esse era o resultado dele estar casado com uma mulher bonita, fina e cuidadosa. Na delegacia de homicídios seus colaboradores, principalmente Janete e Vanda, respectivamente, delegada substituta e detetive, tinham, primeiro se admirado por ele ter perdido mais de dez quilos e depois por ele não usar mais suas gravatas tortas e frouxas no colarinho. Só o inspetor Gonçalves conhecia de perto a razão daquilo tudo, sabia da admiração que seu chefe tinha por dona Teresa, a esposa.

- Você viu a gravata que o doutor Afrânio está usando hoje, Vanda ?

- E então não vi ? Aposto que é italiana.

- Ah, dê um jeitinho de saber quanto custou. Quero muito dar uma de presente ao meu namorado no aniversário dele.

- Só se pusermos o Gonçalves na jogada. A ele o doutor Afrânio é capaz de dizer. Bem, meu turno de trabalho terminou. Vou para casa.

No meio da manhã, duas amigas caminhavam em ritmo acelerado pelo cal-çadão da Vieira Souto. Vestiam malhas idênticas e calçavam tênis importa-dos, especiais para esse tipo de exercício. Corpos sarados e bonitos, eram dois exemplares típicos da alta classe media da zona sul do Rio.

Vivem-se tempos difíceis na cidade maravilhosa. As gangues de traficantes já não se limitam a uma atuação dentro do perímetro geográfico que circun-da as favelas. Fortemente armadas, elas se aventuram cada vez mais. E a-lém dos traficantes, o Rio está entregue a assaltantes e toda a sorte de cri-minosos. Parado junto a um quiosque, um homem jovem bebia uma cerveja enlatada. Embora estivesse vestido casualmente, bermuda, camiseta e tênis, uma observação mais apurada sugeria que a praia de Ipanema e suas cercanias, não eram seu habitat natural. Quando as duas moças estavam a uns seis metros dele, sua postura mudou. Ele agiu rapidamente. Em sua mão direita, surgiu uma arma, uma pistola automática. Ele mirou a moça que caminhava mais perto da rua e atirou duas vezes. Com o impacto das balas, ela girou sobre si mesma e desabou sobre a calçada. Num segundo o assassino estava atravessando a avenida, movendo-se arriscadamente no meio do transito. Um carro parecia enguiçado na pista em sentido contra-rio, mas seu motorista baixou, num segundo o capô do motor e pulou para o assento. O assassino contornou o carro e sentou-se no lugar do carona. O carro partiu em velocidade em direção ao Leblon.

Na calçada, a cena era estarrecedora. A moça atingida pelos tiros ainda parecia estar viva. Ajoelhada no solo, sua amiga tentava sem qualquer su-cesso uma respiração boca a boca. Uma nódoa escura, de sangue, ia se espalhando sobre a malha da vítima. Os curiosos já formavam um círculo mórbido em torno dela. Um medico que corria pelo calçadão aproximou-se e examinou cuidadosamente a moça. Balançou negativamente a cabeça. Constatara que ela estava morta.

O inspetor Gonçalves entrou na sala de seu chefe que acabara há pouco de almoçar.

- E aí, chefe ? O filé de badejo estava caprichado ?

- Estava muito bom. Só não entendo por que o restaurante faz umas ba-tatas noisettes tão duras. Essas de hoje serviriam para jogar gude.

- Qual, doutor Afrânio, só o senhor para pensar numa coisa dessas...

- E não me venha dizer que é minha mulher que está me transformando num gourmet. Me diga, Gonçalves, algum fato novo importante ?

- Acho que sim, chefe. Uma moça foi baleada e morta esta manhã no calçadão da praia de Ipanema.

- É mesmo ? Em que circunstancias ?

- Segundo testemunhas, ela estava caminhando com uma amiga quando foi alvejada por um desconhecido. Morreu quase na mesma hora.

- E o assassino ?

- Esse tinha a fuga preparada. Um cúmplice simulou um enguiço no car-ro, na pista do outro lado. O cara atravessou correndo a rua, entrou no lugar do carona e ambos fugiram.

- Bem planejado, temos que reconhecer. E a amiga dela ?

- A amiga tentou até uma respiração boca a boca. Mas ela tinha toma-do dois tiros, no peito, não havia mais como salva-la.

- O corpo já foi periciado ?

- Está no IML, chefe. O delegado titular do Leblon, ligou para cá e pediu a nossa ajuda.

- Ah, o Cláudio. Ótimo profissional. Por que será que está querendo nos-as intervenção no caso ?

- Ele me disse que conversou com a amiga da vítima e ficou com uma impressão estranha, quer conversar com o senhor.

- Uma impressão estranha...interessante. Ligue para ele, Gonçalves, va-mps ver logo o que é isso.

O delegado Cláudio Taranto fitou seu colega da delegacia de homicídios com simpatia. Conheciam-se já de longa data. Mais de uma vez tinham colaborado um com o outro em casos complicados. Não havia, portanto entre os dois , quaisquer desejos de ofuscar a atuação do outro.

- Então, Cláudio, qual é a sua estranheza quanto as declarações da ami-ga da moça assassinada ?

- Você vai me achar um tanto tolo quando eu lhe disser.

- Tolo, você ? Vamos, não tente me enrolar...

- Bem, Afrânio, sei lá. Pode ser um excesso de confiança em meu faro, mas sinto que há alguma coisa que não se encaixa nesse crime cruel.

- Alguma coisa em relação a algum detalhe ?

- É, alguma coisa em relação à vítima.

- Esclareça isso melhor para mim, Cláudio.

- Não sei, sinto que a vítima não se encaixa nesse assassinato.

- Por que ?

- Bem, não foi um latrocínio. A intenção do assassino não era roubar. A moça que morreu, Janice Silveira tinha um perfil discreto, 21 anos, solteira, pai oficial da marinha de guerra, mãe professora. Tinha dois irmãos mais velhos também solteiros. Estava quase se formando em letras. Saia pouco a noite. Tinha um namorado que está em Buenos Ai-res, a trabalho. Não há nada, Afrânio, nada a meu ver que a indicasse como uma possível vítima de um assassino profissional.

- É, você tem um ponto a seu favor aí. E a amiga dela ?

- Sabia que você me perguntaria isso. A amiga, chama-se Arlete Marins, está muito abalada.

- É natural...

- Sim, mas a impressão que ela me passou quando conversei com ela, foi de que, de uma forma estranha, ela se acha culpada pelo que hou-ve. E está com muito medo.

- Isso já é bem mais interessante. Gostaria de interroga-la.

- E vai poder fazer isso amanhã, meu amigo. Eu pedi que ela voltasse a-qui para esclarecer mais alguns pontos. Se você quiser venha com seu inseparável inspetor Gonçalves. Ela virá as onze horas.

- Claro que virei. E depois iremos almoçar no Degrau, que é aqui perto e serve uma comida honesta, além do chope ( que Teresa não me ouça ) muito bem tirado.

- Ah, sua mulher toma conta direitinho de você, pelo que vejo...

- Acho que direitinho demais , já perdi doze quilos e várias roupas nos dez meses em que estamos casados.

- Ela faz bem, Afrânio, você está parecendo uns dez anos mais jovem...

- Bem, vou trabalhar. Nos veremos amanhã as onze.

A noite foi encontrar Afrânio e Teresa conversando após jantarem em casa.

- Nossa, Teresa ! Você quer me transformar em faquir com essas sopas e saladas.

- Você deveria me agradecer, querido. Aliás, estou trabalhando contra mim mesma.

- Como assim ?

- Não se faça de bobo, Afrânio, pensa que eu sou cega ? Tenho visto muito bem o interesse com que algumas mulheres que se dizem mi –nhas amigas, andam olhando para você.

- Que absurdo !

- Mas isso não é importante. Queria falar com você sobre outra coisa.

- Ah é ? Que coisa ?

- É sobre esse assassinato bárbaro na praia, Afrânio. A mãe da pobre moça foi minha colega na escola.

- Eu não sabia disso.

- Pois é. Ela me ligou hoje a tarde, sabendo que sou sua mulher. Pediu para conversar com você. Está ainda quase em estado de choque, a coitada, mas me afirmou com muita convicção que não entende, que não havia razão para a filha dela ter sido morta desse jeito.

- Isso é muito interessante, Teresa. Está de acordo com uma idéia que o delegado Cláudio me expôs hoje.

- É mesmo ?

- É sim. Por enquanto diga a sua ex-colega que vou conversar com a ou-tra moça, a Arlete, que estava correndo na praia com a filha dela no momento do crime. Depois, então, conversarei com ela, está bem ?

- Tudo bem, meu amor. Agora vamos ver o filme sobre o qual lhe falei ?

Peguei o DVD na locadora. Você vai adorar.

- Espero que seja uma comédia romântica.

- Imagine ! É um filme de terror. Um engenheiro aparentemente tranqui-lo começa a matar garotas virgens e depois de esquarteja-las vai guar-dando seus corpo numa câmara frigorífica que mandou construir em sua própria casa.

- Pelo amor de Deus, Teresa.

- Não seja bobo ! Venha ! depois do filme a gente faz um amorzinho bem safado e gostoso...

O dia amanheceu sombrio e abafado. Felizmente a sala do delegado Cláudio Taranto tinha ar condicionado. Ali, as onze horas, ele, o delegado Afrânio Moreira e o inspetor Gonçalves, conversavam com uma jovem bonita e bem vestida.

- Pois é, dona Arlete. Eu convidei meu colega , o doutor Afrânio Moreira e seu auxiliar direto, o Inspetor Gonçalves, para estar aqui conosco hoje. O doutor Afrânio é o delegado titular de Homicidios e este caso iria, mais cedo ou mais tarde, parar nas mãos dele.

- Fique tranqüila, senhorita Arlete. O doutor Cláudio já me passou quase todas as informações que obteve com a senhorita.Só quero esclarecer mais alguns detalhes.

- Tudo bem, doutor. Direi tudo o que souber.

- Tenho a certeza disso.

Diga-me uma coisa...a senhorita e a vítima freqüentavam o mesmo salão de beleza ?

- Como ?

- Não se surpreenda. Depois lhe direi o porque de minhas perguntas.

- Sim, freqüentávamos.

- Eram amigas há bastante tempo, não ?

- Mais de um ano, nos dávamos muito bem. Ela era uma pessoa muito boa, educada, sincera, difícil achar alguém como ela.

- Ela tinha um namorado, não é ?

- Tinha sim, um pianista clássico, concertista. Estava em Buenos Aires no dia do...

- Ia dizer acidente ?

- Não, claro, não foi um acidente, foi um crime horrível !

- Em sua opinião, por favor pense bem antes de me responder, por que acha que Janice Silveira foi assassinada ?

- Eu...eu francamente não sei. Ninguém poderia querer mal a ela.

- Nas últimas vezes em que estiveram juntas, antes do crime, ela lhe pareceu nervosa ? Preocupada ?

- Não. Ela estava ansiosa apenas para que Gerson, seu namorado, vol- tasse ao Brasil. Estava muito apaixonada por ele.

- E ele pr ela ?

- Ah, sim, com toda a certeza.

- Só mais uma pergunta. Se, ao invés dela, a senhorita tivesse sido a vi-tima, alguém teria motivo para mata-la ?

A cor subiu às faces de Arlete. Ela pareceu hesitar, mas acabou responden-do em voz firme:

- Não, não sei quem poderia querer me matar.

O interrogatório estava terminado. Após a saída de Arlete, os três policiais ainda ficaram na sala.

- Meu amigo Cláudio, quero lhe cumprimentar por sua sagacidade.

- Como assim, Afrânio ?

- Você tinha razão em achar alguma coisa de estranho na vítima do cri-me.

- Está querendo dizer que Arlete mentiu sobre ela ?

- Não. Ela disse a verdade sobre Janice.

- Mas então ?

- Então acho que Janice Silveira foi morta por engano.

- Por engano, doutor Afrânio ?

- Sim, Gonçalves. Acho que a morte errou o alvo !

Os dias que se seguiram não trouxeram esclarecimentos sobre o crime. O delegado Afrânio pareceu dividir suas investigações entre as duas moças, a vítima e Arlete. Inclusive, designou dois detetives para que se revezassem na proteção a moça. Conseguiu assim ficar sabendo que ela tinha um caso amoroso com Domingos Monastério. Esse nome não era inteiramente des-conhecido da policia carioca. Não que houvesse alguma acusação formal contra ele. Mas seus negócios de importação e exportação tinham alguma coisa de ambíguo e quase suspeito. O homem movimentava grandes somas de dinheiro e vivia luxuosamente. Claro que esses fatos não serviam de in-dicios para o que quer que fosse, mas Domingos tinha os olhos do fisco e da receita federal sempre voltados para sua empresa. Além disso era casa-do e isso não parecia ser um empecilho para que Arlete, uma jovem tão ti-pica da classe media carioca fosse sua amante. Em sua visita à mãe da vi-tima, o delegado Afrânio tinha visto algumas fotos da Janice e Arlete juntas.

Ainda muito chocada com a perda da filha e apegada à sua imagem, a mãe de Janice tinha inclusive mostrado ao policial, um DVD feito na festa de ani-versário dela, sua última festa, por sinal. Afrânio achou que as duas amigas tinham muitos pontos em comum em suas aparências e isso reforçara sua tese de que o assassino tinha realmente executado a pessoa errada.

Uma das virtudes de um bom caçador é a paciência. No caso de um investi-gador de crimes, essa virtude é, com freqüência, responsável pelo apareci-mento de alguma pista, alguma luz inesperada capaz de iluminar os cami-nhos tortuosos de uma investigação difícil.

- Chefe ! Que bom que o senhor chegou !

- Que alegria é essa , Gonçalves ? Você me deixa muito sensibilizado !

- Não brinque, doutor. O senhor não vai acreditar na sorte que tivemos hoje.

- Sorte é ? Me diga logo.

- Temos uma testemunha nova do crime do calçadão de Ipanema !

- E quem é ? Onde está ?

- Ele não quer vir à delegacia, chefe. Quer nos encontrar num bar ou coi-as assim.

- Ah, quer um encontro em território neutro o homem.

- Isso mesmo, chefe. E vai telefonar para cá dentro de meia hora.

- Ótimo, vou dar um pulo rápido em casa e vestir meu melhor terno.

- Bem que dona Teresa diz que o senhor é terrível, doutor.

- Está bem, vamos falar sério. O que você achou do homem, mesmo pelo telefone ?

- Bem, ele me pareceu alguém que não agüenta mais guardar uma estó- ria , que está louco para desabafar.

- Humm, tomara que ele nos telefone logo.

E o telefone não demorou a tocar. Sentados a uma confortável mesa de um na orla da Lagoa, Afrânio e Gonçalves conversavam com Euclides Oliveira. Era um homenzinho simpático que apresentava um tique nervo-so , um constante puxão no lóbulo de uma das suas orelhas. O delegado Afrânio levantou os olhos de seu suco de laranja ( sem açúcar ou adoçan-te ).

- E então, seu Euclides, o senhor estava caminhando tranqüilamente e...

- Estava mesmo, doutor, quando vi aquele carro parado ali. Achei que estava enguiçado porque o capô do motor estava erguido. Me inte-ressei pelo número da placa. As duas dezenas eram do elefante.

- Do elefante ?

- Isso, doutor, 46 – 48.

- Ah, claro ...

- Sempre faço meus joguinhos na mega-sena e tenho minhas dezenas favoritas.

- Que sorte nossa, Euclides...

- Não guardei as letras da placa.

- Não se preocupe com isso. Sabemos qual é a marca do carro. Vamos localiza-lo rapidamente. Você nos prestou uma grande ajuda.

- Desculpe eu não ter falado antes como senhor, mas sabe como é, mi-nha mulher é muito severa comigo, ela não gosta que eu jogue nem me distraia caminhando na rua. Diz que é fácil morrer atropelado.

- Tudo bem ! Somos gratos a você por nos ter passado essa informação

Ela vai ser muito útil para a investigação.

- Que crime horrível, não é, doutor ? Dá até medo da gente sair de casa hoje em dia...

- É verdade, amigo, mas tenho esperança de que a gente prenda esse assassino. E muito obrigado mais uma vez !

De volta à delegacia, Gonçalves acionou o Detran.

- Está aqui, chefe, já temos o proprietário do carro. Seu endereço é em Braz de Pina.

- Braz de Pina, é ? Muito distante de Ipanema. Um subúrbio . Bem , Gon-çalves, agora só vejo um caminho a nossa frente.

- E qual é, chefe ?

- Temos que encontrar uma ligação desse homem com o assassinato de Janice Silveira.Sendo proprietário do carro, tudo indica que ele estives-se no local na hora do assassinato. Vamos dar um jeito de atemorizá-lo para que confesse. Ele é o cúmplice, a rigor um co-autor do crime. Já levantou a ficha dele ? Tem alguma passagem pela policia ?

- Nenhuma, chefe. Ficha limpa.

- Isso não quer dizer muito, Gonçalves. Há criminosos de grande pericu-losidade que nunca puseram os pés em uma delegacia policial. Não, Gonçalves, vamos ter que jogar habilmente com esse pássaro. Telefo-ne para o doutor Cláudio, ponha-o a par de tudo isso. Ele tem, no míni-mo o direito de saber como andam nossas investigações. E ligue para o titular da delegacia que cobre o bairro de Braz de Pina, quero falar com ele.

- Deixe comigo, chefe. Vou fazer isso já.

Aníbal Santos era um homem de trinta e oito anos. Mecânico, era conhe-cido em seu bairro como freelancer. Trabalhava num terreno desocupado ao lado de sua casa. Era chamado com freqüência para quebrar galhos do tipo carros que enguiçavam na rua. Ganhava relativamente bem com seu trabalho. Sabia administrar bem seus ganhos. Tudo isso foi sabido a-través da colaboração do doutor Rogério Trigo, titular da delegacia que controlava a região.

- Então, doutor Afrânio, quando pretende dar o bote ? Pegar o homem ?

- Dar o bote...ouviu isso, Gonçalves ? O doutor Rogério está me chaman- do de cobra. É um elogio...

- Isso mesmo, chefe. Sua fama está sempre crescendo.

- Não fique me adulando, Gonçalves. Estou pensando em armar uma pe-quena cilada para o nosso pássaro, doutor Rogério. Vou precisar da sua ajuda.

- Disponha de mim e de meus auxiliares, doutor Afrânio. O que está pen-sando em fazer ?

- Quero que um de seus detetives simule um enguiço perto da casa do nosso suspeito e dê um jeito de traze-lo à delegacia sob qualquer açu-sação falsa. Eu vou estar “ por acaso “ aqui. Quero o homem na defen-siva para interroga-lo. E temos o fator surpresa para deixa-lo tonto.

- Sem problemas, doutor. Quando vamos fazer isso ?

- Que tal amanhã pela manhã ? Cedo de preferência.

- Fechado !

Pesava sobre a manhã seguinte uma expectativa de chumbo, impenetrável.

Gonçalves, o doutor Rogério, o doutor Cláudio, também ali presente, mal fa-lavam. Apenas o delegado Afrânio Moreira parecia despreocupado. Por fim chegaram à delegacia o detetive Rui e junto com ele, algemado, o suspeito, Aníbal Santos.Todos olharam com obvia curiosidade o homem. Este se mos-trava indignado.

- Isto é um abuso de autoridade ! Estou sendo vítima de uma armação ! Como poderia portar minha carteira profissional para atender um enguiço de carro no meio da rua ? Exijo que me soltem !

- Calma, rapaz , a voz do detetive Rui estava incolor, o doutor Afrânio quer conversar com você. Sente-se aí e responda direitinho as pergun-tas dele.

- Doutor Afrânio ? Quem é ele ? O que quer comigo ? Sou apenas um me-canico, um homem que luta honestamente para sobreviver.

- Luta muito, não é, Aníbal ? Vai longe para ganhar seu dinheiro.

- Longe ? Que dinheiro ? Não sei o que o senhor está falando.

- Vou lhe explicar, disse o delegado Afrânio, olhando fixamente o Meca-nico. Você estava, aparentemente, consertando um carro na praia de Ipanema na manhã do dia 26 do mês passado, não foi ?

- Nunca estive na praia de Ipanema !

- Claro, claro...Nem deu carona para o seu amigo, um desgraçado que acabara de matar covardemente uma moça, com dois tiros de uma pis-tola automática...Para onde vocês fugiram depois do crime ? Onde es -tá o seu parceiro ?

- Isso não é verdade, o senhor está querendo armar uma para mim.

- Pelo contrário. Estou tentando lhe ajudar. Por que não confessa tudo e nos diz quem é o outro ? Tem idéia de quantos anos vai pegar por essa co-autoria de homicídio duplamente qualificado ? Melhor colaborar co-nosco e conseguir uma redução em sua pena quando for julgado.

- Não sei do que o senhor está falando. Quero um advogado !

- Ele não quer confessar, doutor Rogério. Melhor o senhor trancafia-lo numa boa cela. Enquanto isso o doutor Cláudio providenciará um mandato e o transferirá para a delegacia do Leblon.

- Fique tranqüilo, doutor Afrânio. Tenho um espaço reservado para ele. A cela 3 está praticamente vazia. Só está nela aquele estuprador per-nambucano, esse tal Severino. Aliás o homem é uma fera... Pode leva-lo, Rui.

- Espere aí ! Vocês não podem fazer isso ! Tenho meus direitos !

- Tudo bem, Aníbal. Você nos dá o telefone de seu advogado e ligare-mos para ele. Enquanto isso você faz companhia ao Severino. Vamos !

- Não ! Não ! Eu nem tenho advogado. Não façam isso comigo !

- Não precisaremos fazer, Aníbal. Basta você colaborar com o delegado de homicídios, o doutor Afrânio.

- Mas não era eu quem estava em Ipanema !

- Tudo bem, não se exalte. Aproveite enquanto estiver na cela para ra-ciocinar melhor e quem sabe mudar de idéia.

- Esperem ! Eu vou colaborar !

- O que acha, doutor Afrânio ?

- Não sei, isso pode levar tempo e tenho um compromisso para almoçar na Gávea. Vou me atrasar. Melhor deixar ele de molho por enquanto.

- Não, delegado ! Me dê uma chance ! Eu vou confessar tudo !

A confissão de Aníbal Santos confirmou as expectativas do doutor Afrânio. O crime tinha sido encomendado. Ele fizera o que o assassino lhe dissera. Estacionara seu carro no ponto indicado e na hora certa. Abrira o capô do motor para simular um enguiço. O resto os policiais já sabiam. E o nome ? Qual era o nome do assassino ? Qual era a ligação de Aníbal com ele ? O cri-minoso tinha remunerado Aníbal ?

As respostas vieram de forma hesitante mas esclarecedora. Aníbal afirmava que tinha entrado por acaso na estória. O assassino costumava lhe confiar pequenos serviços em seu próprio carro. Sempre tinha sido legal com ele. A-nibal nunca desconfiara de sua verdadeira atividade. Sim, o homem era um matador profissional. Para se justificar, Aníbal afirmara que tinha sido cúm-plice do criminoso por medo dele. Quanto a identidade do assassino, Aníbal tentara ser evasivo. Conhecia-o por um apelido, Chico Pólvora.Mas a persua-são e as ameaças dos policiais tiveram finalmente sucesso.Aníbal forneceu-lhes o nome. Restava agora levantar a ficha do homicida.

O nome fornecido por Aníbal foi de grande ajuda. Havia muitos Francisco da Silva nos subúrbios do Rio. Mas, com paciência e determinação, a policia foi tecendo a rede em torno do assassino. Confrontando informações colhi-das tendo em vista o perfil do criminoso, chegou-se a uma conclusão. Agora seria preciso interrogar o suspeito. A sorte interveio a favor da lei. O homem foi detido portando uma arma. Os peritos fizeram os exames balísticos e vê-rificaram que os projeteis que tinham atingido a vítima tinham partido da mesma arma, uma pistola Colt de uso privativo das forças armadas. A poli-cia teria que provar apenas a presença do criminoso na hora e no local do homicídio. Para isso tinham o testemunho de Aníbal, o cúmplice. O caso es-tava praticamente encerrado. E além disso, Francisco era procurado por ou-tros crimes de morte. Foi impossível, contudo,fazer com que o criminoso de-nunciasse o mandante ou , como queria o delegado Afrânio, admitisse que tinha executado a vítima errada. Em vão o delegado tentou associar o crime a uma certa empresa de importações.

Na delegacia de homicídios, o delegado Afrânio Moreira conversava com Ar-lete Marins, a amiga da vítima.

- Enfim, Arlete, identificamos e prendemos o assassino e seu cúmplice. Temos a confissão do cúmplice. O caso está praticamente encerrado. Mas...

- Mas o senhor não está satisfeito...

- Não, não estou. Não temos o mandante. E o crime foi nitidamente em-comendado. Por isso pedi à você que viesse conversar comigo.

- Mas, por que, delegado ?

- Porque é meu dever alertá-la para a minha convicção a respeito de sua segurança pessoal .

- A minha ? Por que, doutor Afrânio ?

- Porque eu jogaria a minha reputação de policial competente, eu após-taria qualquer coisa, como a alvo do ataque mortal era você.

- Mas os criminosos estão presos...

- Sim e o mandante está livre e pode, a qualquer momento, retomar seu propósito criminoso. Ouça-me com atenção, Arlete. Pense bem no pe-rigo que podem representar para uma pessoa, seus relacionamentos.

O assassinato de Janice Silveira foi, digamos, um engano, um engano terrível. E a morte, Arlete, a morte dificilmente erra o alvo duas vezes.

George Luiz
Enviado por George Luiz em 26/05/2007
Código do texto: T502379