A IGREJA DAS ALMAS PENADAS - PARTE 2

Já passavam das nove horas quando o padre Antônio conseguiu levantar-se da cama! O cansaço da viagem e o episódio da noite anterior lhes fatigaram o corpo. Na verdade, ele nem queria acordar; sonhava que Mariazinha estava com ele em um grande jardim e os dois passeavam de mãos dadas. Sentaram-se debaixo de um grande ipê roxo, ela encostou a cabeça no peito dele e ele acariciava seus cabelos lisos, negros como uma noite sem lua, sentia-se no paraíso!

De repente, pessoas conhecidas começaram a passar por eles e cumprimentá-los; o que era estranho para ele, é que aquelas pessoas em sua maioria eram pessoas que ele conheceu em sua infância e juventude, e que muitas delas já tinham falecido! Foi justamente nesta hora que despertou do sono: ao reconhecer que aqueles conhecidos seus, já haviam partido desta, "prá" melhor!

Ainda estava a pensar no sonho que tivera, quando ouviu baterem na porta:

- Um minuto por favor - gritou ele;

- Pronto! – disse ele abrindo a porta;

- O senhor não vai querer ver a igreja? – disse o caseiro entrando na casa e sem mesmo lhe dar bom dia;

- Claro que vou, mas deixa eu trocar de roupa e passar uma água no rosto; - sumiu dentro do pequeno banheiro;

- Como é que um padre vem parar “num” lugar desses? – perguntou o caseiro aumentando o volume da voz para que ele escutasse;

- Na verdade, por mim eu nem seria padre!- respondeu ele no mesmo tom de voz;

- E por que se tornou um?

- Promessa de minha mãe; é uma longa história! – disse ele saindo do banheiro.

Antônio pegou uma pequena agenda e saiu logo em seguida após o caseiro. Ao caminharem, ele percebeu que não havia ninguém nas ruas:

- Os moradores costumam acordar tarde? – perguntou ele;

- De certa forma, sim!

- Pelo visto, preferem caminhar durante a noite! – lançou aquela resposta de uma forma que soasse como uma pergunta;

- O que o padre quer dizer?

- É que ontem de noite eu vi algumas pessoas entrarem na igreja;

- O senhor viu??? – o caseiro perguntou surpreso;

- Vi! Fui atrás mas na hora de procurar saber o que faziam dentro da igreja, eles entraram no caritó e não consegui ver mais ninguém por causa da escuridão!

- O senhor não devia ter ido lá atrás de ninguém! – disse o caseiro parando a caminhada;

- Por qual motivo?

- É que a igreja não está em um bom estado de conservação! – respondeu ele após refletir um pouco. Apressou os passos em direção à igreja;

- Você não respondeu a minha pergunta em relação àquelas pessoas! – insistiu o padre;

- As pessoas daqui, gostam de ficar na igreja quando a noite chega! – meteu a chave na porta e a empurrou, um cheiro forte de mofo impregnou as narinas de Antônio.

Ao entrar na igreja, a primeira coisa que fez foi se dirigir para a porta lateral por onde entrou atrás daqueles estranhos. Para a sua surpresa, ela encontrava-se trancada por dentro com um grande ferrolho! Tentava entender como, pois sabia que sair, somente a encostou:

- Procurando alguma coisa padre?

- Hã?... não... só vim verificar uma coisa!

Antônio então olhou ao seu redor; o caseiro já havia aberto as janelas laterais da igreja e agora, com a iluminação natural do dia, ele podia enxergar o interior da igreja: as paredes estavam descascadas e com bastante infiltração; as ripas que sustentavam o teto estavam podres por cauda dos cupins, sem contar com os inúmeros morcegos nos cantos escuros do telhado habitando ali; os poucos bancos existentes, todos estavam quebrados, mas o que mais lhe chamou a atenção, foi o acabamento das paredes que passavam no alto da estrutura e que desciam até a altura da janela, desenhando uma cruz de cabeça para baixo!

Olhou para o altar, inexistente! Só existia um pequeno alpendre com uma bancada com as três imagens dos santos que avistara na noite passada. Estava perplexo com o estado em que a igreja se encontrava:

- Parece que eu vou ter muito trabalho para frente, só espero que a diocese me ajude com as verbas para a reforma desta igreja! - disse ele com os braços cruzados e olhando ao redor;

- Desculpe, mas o padre disse que vai reformar a igreja?

- É o que pretendo! Por que, algum problema?

- O padre pode até tentar, mas os frequentadores não vão permitir!

- Os habitantes não querem uma igreja bonita e mais confortável?

- Padre; as pessoas que frequentam esta igreja são incrivelmente conservadoras e de uma época bastante remota! Uma vez ou outra, é que elas permitem que novos frequentadores, entrem nesta igreja! – disse o caseiro com um certo sarcasmo na resposta;

- Bom, amanhã é domingo! Tocarei no assunto durante a missa! Ao menos as pessoas frequentam a missa? – perguntou ele virando-se na direção aonde o caseiro se encontrava;

- Sim! Mas em um horário especial;

- Como? Horário especial? À tarde?

- Não; à noite!

- Bem, eu já participei de missas realizadas de noite! – disse o padre Antônio sem notar a seriedade na resposta do caseiro;

- O senhor não entendeu padre; quando eu disse à noite, eu quis dizer à meia-noite!...

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Naquela tarde, ao voltar para o casebre, Antônio então notou o cemitério existente no lado oposto da igreja (por que construíram uma igreja ao lado de um cemitério?). Lembrou-se no que lhe falara o caseiro; realizar uma missa à meia-noite! Será que o cemitério tinha alguma coisa haver? De qualquer forma, ele iria mudar o horário para os domingos pela manhã, como é na maioria das igrejas, realizar uma missa a meia noite, fugia totalmente a tudo o que aprendera e vivera dentro da liturgia católica! Chegou ao casebre, sentou-se em sua cama e voltou a atenção para o livro em suas mãos que retratava a vida de Santo Agostinho, e preparou o sermão para a sua primeira missa como padre ordenado!

Com o sermão pronto, resolveu voltar na igreja. Mais uma vez observou o ambiente e sentiu o clima pesado, encaminhou-se para o caritó. Ao abrir a porta, pode notar então os inúmeros retratos espalhados pelas paredes e chão, amontoados um sobre o outro. Eram autos retratos pintados e fotografados de pessoas, que provavelmente habitaram ou ainda moravam na cidade. Foi olhando um por um, passando a mão sobre eles para retirar o excesso de poeira acumuladas pelo tempo. Ao virar-se na direção da saída do caritó, olhou para cima da porta e viu um retrato em tamanho família, de um homem de feição dura e áspera, com um bigode-de-arame comprido, com um chapéu preto de abas largas e um olhar que metia medo em qualquer um que os fitassem. Abaixo do retrato estava escrito: “Arlindo Oliveira – Coronel de Lianápolis”.

Padre Antônio petrificou por uns segundos que mais lhes pareceram uma eternidade! Tratou de sair rapidamente de dentro daquele ambiente e foi procurar pelo caseiro da fazendinha. O encontrou sentado sobre uma pequena mureta, pescando:

- Me responde uma coisa; - começou ele, sentando-se ao lado do caseiro;

- Tem alguma coisa nesta cidade que eu deva saber?

- As coisas do passado, é melhor ficar enterrada com o passado! – respondeu o caseiro sem tirar os olhos da direção da linha de pescar;

- Olha; eu cheguei ontem nesta cidade, a única pessoa com quem falei até o momento foi você, a igreja que me deram para tomar conta é tão antiga quanto este lugar e agora lá no caritó, percebi que não existe saída a não ser por onde as quatros pessoas entraram ontem a noite e elas não passaram por mim! – disparou ele;

- O senhor mesmo disse que parou na entrada pois não conseguia enxergar nada lá dentro! – disse o caseiro puxando a linda de pesca devagar;

- O chão estava repleto de retratos, provavelmente, elas os teriam pisados e feito barulho! Nem isso eu ouvi!

- Na certa, eles não queriam que o senhor os visse!

- Mas por quê? E quem é aquele homem no retrato no alto da porta do caritó?

- Coronel Oliveira! O dono de tudo isso que o senhor está vendo, inclusive da igreja onde amanhã o senhor vai rezar a missa!

- Dono? Você quer dizer que ele construiu tudo isso?

- Tudinho!

- E as pessoas naqueles retratos espalhados pelo caritó? Quem são elas?

- Os moradores!

- Todas aquelas pessoas são moradores de Almense?

- São!

- Mas aquelas pessoas parecem estarem vestidas com roupas do século dezoito!

- São moradores bastante antigos da cidade! – o caseiro voltou a jogar o anzol na água;

- Onde estão os moradores novos?

- Não tem! – padre Antônio olhou ao redor e constatou não haver pessoas na rua, apesar de já serem quase quatro horas da tarde;

- Isto não está normal... disse ele se ponde de pé;

- o que o padre quer dizer com isso? – perguntou o caseiro;

- Vejo um campinho de futebol e um parquinho, mas não vejo crianças brincando; vejo uma alfaiataria, uma sorveteria, barbearia e outras lojinhas, todas fechadas e sem movimento; na verdade eu não vejo ninguém!

- Amanhã na missa, o padre vai conhecer os moradores; o costume aqui na cidade é esse mesmo!

- Vai ser difícil eu me acostumar... – disse Antônio com pesar na voz;

- Não se preocupe, vai dar tudo certo! Vou pegar mais umas piranhas e volto para a igreja pra fazer a ligação do gerador, amanhã o padre já vai ter luz no altar!

- Em toda a igreja você quer dizer?

- No altar mesmo! Os fiéis gostam de sentar com a claridade das velas que elas carregam nas mãos!

- Tudo bem então, mas aproveita e me faz um favor; ajeita o caritó para que eu possa permanecer lá dentro antes da missa?

- Ok! – padre Antônio se afastou e o caseiro puxou a linha que acabara de fisgar um peixe...

EMANNUEL ISAC

EMANNUEL ISAC
Enviado por EMANNUEL ISAC em 05/12/2014
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