Amanda Morre no Final

Uma sala. Móveis estilo ibéricos. Duas pessoas sentadas nos sofás. O telefone toca.

Tiago: alô.

Sandra: Oi.

Tiago: Quem fala?

Sandra: Sou eu. Porque que você não atende ao telefone?

(Silêncio).

Tiago: Com quem gostaria?

Sandra: Sou eu, Sandra. Quero falar com você, Tiago.

Tiago: Ah... Não tem nenhum Tiago por aqui.

Sandra: Eu sei que é você.

Tiago: Deve ter sido engano.

Sandra: Porque você esta fazendo isso comigo?

Tiago: Olha, foi engano. Tchau. (desliga o telefone)

Amanda: Quem era?

Tiago: Uma merda duma filha da puta que não para de me encher o saco. Quem sabe agora pare.

Amanda: Você é podre.

Tiago: Que se foda. É um saco isso. (ascende um cigarro)

Amanda: Que livro é esse?

Tiago: Jod Dante, Paralelo do Pó.

Amanda: Me empresta depois. Quero ler.

Tiago: Tá legal. Que você está lendo?

Amanda: Um livro de poemas.

Tiago: Odeio poemas.

Amanda: Você deveria ler mais. Não sabe o que esta falando.

Tiago: Sei sim. Sei que pra escrever um poema o sujeito tem que ser bom.

Amanda: Você tá brincando?

Tiago: Não. Falo sério.

Amanda: Então? Porque disse que odeia?

Tiago: Não é minha praia. Talvez um dia venha a gostar. Hoje ainda não. Mas reconheço, pelo menos.

Amanda: Eu gosto bastante. Não sou muito fã dessa sua literatura que só xinga os leitores.

Tiago: É legal. Mas não suporto ler poemas. Os nacionais ainda vá lá. Mas os estrangeiros não dá.

Amanda: Porque? Já ouvi você falar muito bem do Moe. E ele escreveu um dos melhores poemas que já li.

Tiago: (olha pra cima com a cabeça recostada no sofá. Fuma durante um tempo) É, ele é legal. Muito bem bolado. Ele era bom.

Amanda: Então, porque você não gosta?

Tiago: Com tradução de quem você leu o Moe?

Amanda: (pensa) Kilminster é um dos que me lembro. Mas têm muitas.

Tiago: É disso que estou falando. A tradução. Não gosto de como é feita a tradução de poemas.

Amanda: Como assim?

Tiago: Eu já li o Moe de duas maneiras: com a tradução literal e com uma tradução normal, feita por qualquer um.

Amanda: Não estou te entendendo.

Tiago: É que a tradução literal, como a do Kilminster, por exemplo, não é fiel ao poema. Fica ruim.

Amanda: Claro que é fiel.

Tiago: Não, não é. O tradutor é obrigado a mudar varias coisas que o autor escreveu pra tentar dar um clima igual ao que autor pretendeu em sua língua. (levanta) No caso do Moe, inglês. (anda pela sala gesticulando) Essas modificações tiram o espirito do poema.

Amanda: Não acho. É assim com todas as traduções.

Tiago: Por isso não leio poemas estrangeiros. Se você faz qualquer mudança numa obra ela já não é mais a mesma.

Amanda: Mas o Kilminster era fenomenal.

Tiago: Eu sei. Mas não importa a genialidade do cara. (para na frente dela) Ele mudou uma obra, e ninguém tem esse direito. Os tradutores se acham muito espertos, mas são uns imbecis. Penso que se você for traduzir algo, tem que traduzir normalmente, com as palavras que o autor quis deixar. (apaga o cigarro no chão)

Amanda: Mas isso acaba com o poema. Você não vai sentir o que o autor quis passar. Seria como ler um texto qualquer e não um poema.

Tiago: (senta-se no sofá olhando pra ela)Isso substitui o sentimento do autor pelo sentimento do tradutor. Se você realmente quiser saber o que o autor quis passar, o certo é aprender a língua dele e ler o poema.

Amanda: Você esta sendo radical. Isso não existe.

(Silêncio).

Tiago: Que seja. Pense o que quiser. O cara tem que traduzir o poema ao pé da letra, não pode colocar maquinações. Isso acaba com a obra. Eu já li muitos poemas traduzidos e depois peguei o original e não tinha nada a ver.

Amanda: É porque eram de traduções ruins.

Tiago: É porque não se deve traduzir assim. Isso é assassinar a arte. O próprio Moe traduzido pelo Kilminster é horrível se comparado com o Moe original. (ascende um cigarro)

Amanda: Como você pode dizer isso?

Tiago: (fuma) Não estou dizendo que Kilminster escreveu mal. Estou dizendo que não tem nada a ver com o que Moe quis passar. Não se pode tirar a alma da obra.

(longo silencio)

Amanda: É uma visão estranha, mas tudo bem, não vou discutir com você. Cada um pensa de um jeito. Seja na literatura, no teatro ou na política. Eu por exemplo penso que o estado de São Paulo deveria se separar do Brasil.

Tiago: (assusta-se)Como? (levanta do sofá e fuma) Que besteira é essa?

Amanda: Não é besteira. Nós como paulistas deveríamos pensar no desenvolvimento que poderíamos alcançar se não tivéssemos que carregar o Brasil nas costas.

Tiago: Ah, então você acha que nos carregamos o Brasil nas costas? O que te faz pensar assim?

Amanda: Observe os números, Tiago. O estado de São Paulo é o mais desenvolvido de todos os estados brasileiros. Sozinhos nós somos um primeiro mundo. Penso que com a separação nós poderíamos nos fortalecer ainda mais e então sermos um país desenvolvido.

Tiago: Gostaria que você não dissesse “nós”. Eu nasci em Santa Catarina.

Amanda: Que pensamento mais estranho o seu. (deita no sofá)Você não gostaria de morar num pais de primeiro mudo?

Tiago: Eu já moro, Amanda. De nos dois você é a única que não vê isso.

Amanda: Então você é contra a separação de São Paulo?

Tiago: Isso é um absurdo. (caminha pela sala e senta-se no sofá)Já ouvi falar que no Sul existe uma entidade que quer essa separação. Mas será que você ou eles não pensam no desenrolar da historia? Alguém com tão pouca visão política assim não poderia sequer pensar em fazer um país.

Amanda: Você que não tem visão política. Pense só, Tiago: com uma separação estaríamos livres desse povo todo que somos obrigados a sustentar. O nosso dinheiro ficaria conosco e não seriamos obrigados a dividi-lo com o resto do Brasil.

Tiago: Meu deus, Amanda. Você falando assim me faz pensar que estamos na era das cavernas. Vocês paulistas só pensam na merda de seus próprios rabos. E acham que suas bundas não fedem. Vocês não têm consciência do que falam. Uma separação? (olha-a e ascende um cigarro) Você tem idéia do que é isso? (espera uma resposta) Não, não tem é obvio. Nem você nem os separatistas sulistas. Vocês devem estar lendo muito Kragma Kahn.

Amanda: Tiago, será que você não vê que isso só iria melhorar? Será que só eu enxergo que para nos desenvolvermos devemos deixar de lado o resto do Brasil?

Tiago: Sabe Amanda, eu até gostaria que essa separação fosse feita. É claro que eu iria ficar no Brasil, ou seja, com o Norte e o Nordeste, o Centro, o Sul e o resto do Sudeste.

Amanda: Porque? Você não quer se livrar dos empecilhos? Não quer ser primeiro mundo?

Tiago: Sim eu quero, é por isso que ficaria por aqui. (fala gesticulando) Esse seu novo pais, composto por São Paulo, deveria se chamar Asnolandia. Mas não se preocupe, a vida da Asnolandia será muito curta. Ela irá falir logo. Acorde, Amanda, esse seu suposto pais não sobreviveria. Ele desmoronaria tão rápido quanto foi criado.

Amanda: Mas porque você diz isso? Nos teríamos a tecnologia, o dinheiro e a estrutura necessária para o desenvolvimento. E não teríamos migrantes enchendo as favelas e atrasando e expansão. (fala olhando para o nada) Seria um mundo perfeito.

Tiago: Você realmente é muito burra, Amanda. Mas como você ainda não entendeu, eu vou te explicar. Primeiro me diga quem foi que construiu sua maravilhosa São Paulo. Não estou perguntando nome de fundadores. Estou falando que São Paulo foi erguida com suor brasileiro, Amanda.

Amanda: Não foi não. Lá nos temos os melhores empresários, a melhor tecnologia. Isso é tudo nosso.

Tiago: Mas você não entende que São Paulo só dispõe de tempo para se desenvolver porque os verdadeiros paulistas não fazem porcaria nenhuma? (levanta-se e fala pra platéia) Sim, todos eles têm escritórios acarpetados, mas os porteiros desses prédios são cearenses, os faxineiros são pernambucanos, as secretarias são manauenses, os estagiários são mineiros, os manobristas são maranhenses. (pausa. Olha pra ela um tempo) Os pedreiros que construíram esse prédio que ele está agora, eram sergipanos. O próprio Moe era carioca. Sim, separe São Paulo do resto do país e deixe que os filhos do Nordeste e do Norte voltem a suas terras e então São Paulo morrerá. Será uma morte rápida. E quem tiver visão de negócios poderá se aproveitar da situação. Sim, eu gostaria que essa separação fosse feita. Adoraria. Assim o resto do Brasil ficaria livre desses sugadores de sangue e poderíamos lucrar em cima de vocês, sugar todo o dinheiro produzido pelos paulistas.

Amanda: Ninguém obrigou essas pessoas a trabalharem pra erguer São Paulo. Elas receberam pelos seus serviços, eram trabalhadores. Diferente do Rio se Janeiro, por exemplo, que foi erguido com suor escravo. As coisas não seriam assim, não.

Tiago: Tem razão, não seriam. Seriam bem pior pra vocês. Porque quando vocês começassem a decair teriam que pedir auxilio a gente e então nós daríamos dinheiro a vocês, afinal seria a única coisa que não faltaria em nosso país, já que estaríamos em desenvolvimento e vocês endividados. E então vocês fariam uma divida externa conosco. E ela cresceria cada vez mais. E assim nós pagaríamos a nossa com o mercado internacional, mas vocês continuariam devendo para nós e para eles. E com o tempo vocês poderiam a vir alcançar o privilegiado lugar de pais mais pobre do mundo. Seriam o primeiro dos últimos, o que não é tão mal assim se você olhar a lista de ponta cabeça.

Amanda: (rindo) Tudo que você disse não tem o menor fundamento, cara.

Tiago: Ah, tem bem mais do que o que você disse. Mas agora que pensei melhor, sim, sou a favor da separação. Realmente gostaria de ver São Paulo bem separado daqui. Se possível com uma grande muralha para impedir que vocês se arrependam e queriam voltar atrás. É a melhor coisa a se fazer. Hoje mesmo, depois do almoço eu escreverei uma carta a um grande amigo meu que é senador em Brasília e convocarei uma reunião coma algumas pessoas que conheço. Pode ser semana que vem, quando então eu irei sugerir essa separação.

Amanda: Você está louco? Acha que vão levar isso adiante?

Tiago: Sim, é realmente uma ótima ideia essa separação, mas deve ser feita com cuidado. Devemos deixar os paulistas pensarem que a ideia partiu deles. Devemos ter uma revolta armada, uma pequena guerrilha estratégica, uma pequena guerra civil e ao final, algumas leis para que se oficialize a separação e para que os nativos de cada terra voltem aos lugares de origem. Ai então é só esperar e ver de camarote a decadência da Asnolandia e a ascensão do novo Brasil. Penso que se tudo correr bem, em menos de quatro anos já teremos o novo Brasil. Vou ligar para o governador. (pega o telefone)

Amanda: (levanta-se) O que você esta fazendo? Você não pode fazer isso. Vai levar adiante essa loucura? (Tiago não reponde)

Tiago: (olhando para o nada, distraído) Alô. Gostaria de falar no gabinete do governador, por favor. Sim, importantíssimo. Aqui é o juiz Tiago Santos.

(Amanda olha Tiago ao telefone e pega um revolver em sua bolsa)

Amanda: Sinto muito Tiago, não posso deixar você fazer isso. (aponta o revolver para ele. Tiago olha, ela dispara. Ele cai) São Paulo vai se separar sim, mas como um novo e orgulhoso país, onde o que é nosso seja preservado, onde nossas leis sejam sérias, um lugar onde o que se produz aqui fique aqui. Enquanto eu viver vou lutar pela separação, mas para que o que seja nosso, continue sendo nosso. Só nosso.

(Ela pega o fone e encosta no ouvido)

Amanda: Desculpe, foi engano. (desliga)