O Traidor

Lembro-me nitidamente dum mui singular episódio de minha ilustre vida como escritor. Que fique claro, contudo, que tal ocorrido não permanece invicto em sua singularidade. Houve outros, não há dúvidas... Tantos que enumerá-los não posso. Entretanto, neste estado de solidão em que me encontro, tendo minha amada para sempre me deixado, estando eu envolvido em minhas muitas reflexões, não vejo outro remédio senão relatar uma de minhas muitas experiências. Talvez o faça, reflito agora, não por ter-me abandonado minha inseparável criatividade, mas por achar conveniente que meu leitor um pouco mais me conheça, ainda que através de um mínimo relato como o que se segue. Julgar-me-á alguém, não há dúvidas. Se não o fizerem por serem minhas descrições dos eventos demasiadamente vagas, o farão por serem elas suficientemente claras e por terem descoberto a consequência do meu doentio envolvimento emocional com minhas próprias histórias, a tal ponto de provocar em mim um sentimento tão diabólico de orgulho e apreço por minha própria reputação. Contudo, será certamente proveitoso para o leitor que abandone, ao menos agora, qualquer indagação interior provocada por minhas talvez enigmáticas palavras. E que, então, volte comigo àquela quarta-feira de inverno, à pequena Vila do Minério, distante alguns quilômetros da vida urbana. Naquela época, estava eu nos meus quarenta e poucos anos de idade e morava em uma das mais vistosas das casas da Vila.

Inesperadamente surgiu, ascendendo de modo assustador entre o imenso mar humano, alcançando sua superfície e caminhando ligeiramente em minha direção, um semelhante a mim, que se destacara entre os demais escritores de seu gênero, mas que, ainda assim, não chegara nem mesmo aos meus pés calejados pela longa caminhada na estrada da literatura. Contudo, a verdade é que este homem, aparentemente inofensivo, passou a ser a causa das minhas mais terríveis inquietações noturnas, antes e depois daquela quarta-feira de inverno. Seu nome era Augusto Duarte, gaúcho de trinta e poucos anos. Seus escritos começaram a ganhar notoriedade pelo público. Passaram do anonimato à fama em poucos meses. Seu nome tornou-se amplamente conhecido, a tal ponto de, para meu próprio susto, ser comparado com o grande Artur Barbosa, que sou eu. Confesso que, então, eu mesmo passei a ter certo interesse no novato. Por tal interesse movido, experimentei um dia convidar Augusto à minha própria casa, a fim de que conversássemos acerca de assuntos em que ambos nos deleitávamos. Era uma noite singular quando ele bateu à minha porta.

— Senhor Duarte! — cumprimentei, animado. — Quão alegre estou por teres vindo!

Fiz com que entrasse e o conduzi à sala de visitas. Ofereci-lhe uma xícara de chá, pão, queijo e uma porção de geleia. Estávamos logo dialogando acerca de nossas respectivas experiências literárias. Conversamos durante longo período até que chegamos, então, ao inevitável momento de falarmos sobre sua ascensão como escritor. Neste ponto, já nos tratávamos como amigos de longa data, citando segredos nunca antes compartilhados. Descobrimos que ambos estávamos prestes a publicar mais um de nossos contos. Para mim, é claro, isso quase nada significaria. Para ele, no entanto, poderia ser aquilo o catalisador de sua fama. Ele se mostrou muito animado e, para minha surpresa, ultrapassou a invisível barreira da discrição e iniciou um detalhado relato acerca de sua obra. Confesso que fiquei boquiaberto ao final de sua fala. Admiti que nunca havia lido algo tão esplêndido, e fui realmente sincero ao fazê-lo. Depois, imitando-lhe, comecei também eu a dizer sobre meu próprio escrito. Ao final, estávamos ambos maravilhados com nossas histórias.

Algum tempo se passou até que um boato indefinido começou a tomar forma e se alastrar pela cidade. Não demorou para que chegasse também à Vila. Fui então informado de que algo terrível acontecera a Augusto: seu conto fora misteriosamente roubado de seu escritório. Suspeitos não faltaram para o roubo. E eu, é claro, fui incluído no rol. Artur Barbosa possuía inúmeros motivos para roubar Augusto Duarte, disto ninguém duvidava. Era este um autor em ascensão, sendo uma clara ameaça ao império daquele. Entretanto, não era esta a única consideração dos cidadãos à meu respeito. Meus inimigos, infiltrados na turba, atiçavam a fogueira lançando argumentos dos mais diversos... Um dos quais fruto de uma maligna alusão a um dentre meus fictícios personagens, o qual, em sua trama, ardilosamente planejara a morte de seu maior inimigo! Em nada fui surpreendido, contudo...

E, então, chegou aquela quarta-feira de inverno. Já era noite quando retornei à Vila. Passei pela pequena rotatória central, virei à esquerda e me dirigi à minha casa. Como de costume, virei a maçaneta, mas minha respiração foi imediatamente trancada na garganta, e meu coração pulou uma batida. Para meu susto, a porta estava aberta. No mesmo instante, tive certeza de que alguém a arrombara. A primeira coisa que veio-me à consciência, admito, foi meu precioso conto. Abri a porta com cuidado e, após uma rápida verificada no ambiente, constatei que estava vazio. Lentamente, dirigi-me ao pé da escada que permitia o acesso ao andar superior, mas ouvi um pequeno ruído vindo da cozinha. Com parte de meus pensamentos voltados à minha obra, contudo, com facilidade ignorei este detalhe. Comecei a subir a escada, aliviado por meus passos não provocarem rangidos na madeira. Com o coração acelerado, alcancei o fim dos degraus, e dali percebi aterrorizado que meu escritório estava aberto e que uma luz tremulante dele era projetada. Aqui, o leitor poderá julgar-me, mas confesso que imediatamente desci e apossei-me da mais afiada das navalhas que possuía. Aquela seria a única arma que utilizaria em minha defesa. Tornei a subir rapidamente e aproximei-me da porta entreaberta. Tomei ainda outro susto ao perceber que alguém, com um longo capuz que lhe ocultava a face, parecia estar procurando algo em uma das cômodas. No entanto, o que me fez de uma só vez entrar em meu escritório e abordá-lo foi a visão de meu pequeno bloco de anotações, onde estava contido meu valioso conto, sobre minha pequena mesa.

— Parado, ladrão! — gritei, mantendo a navalha à frente de meu corpo, e o mais distante possível dele.

O intruso subitamente parou o que estava fazendo. Cogitei desmascará-lo, contudo o máximo que pude fazer foi virar-me e fechar a porta, pois no mesmo instante senti outra presença aproximando-se pela minha retaguarda. Nesse meio tempo, entretanto, o ladrão avançara contra mim, derrubando-me brutalmente, e por pouco escapei de ter o peito rasgado por minha própria arma. Tentei diversas vezes desvencilhar-me de meu agressor, mas ele golpeou-me com força no nariz. Lamento dizê-lo, mas, ao novamente tentar me livrar daquele laço humano, que com toda a certeza planejava desferir contra mim outro golpe, quando me dei por mim, já minha navalha estava enterrada em seu tórax. O intruso imediatamente cessou seus movimentos. Com dificuldade, livrei-me dele e corri para pegar a vela, ansioso por conhecer seu rosto. Serei realmente sincero ao confessar que, no momento em que vi aquela fisionomia muito conhecida de Augusto Duarte, quase desfaleci de surpresa. Ainda estava animado quando o vislumbrei. Quando me aproximei o suficiente, ouvi sua fraca voz:

— Seu... canalha...

— O que disse? — indaguei, friamente.

— Eu sei... sei de tudo...

— O que você sabe? — gritei.

— Eu sei... sei que foi você... você o roubou...

— Seu tolo — respondi apenas.

— Por quê? Por que... por que traíste a mim?

E, então, ele caiu de uma vez no chão frio.

Levantei-me no mesmo instante. Procurei por toda a casa, porém, o intruso havia desaparecido. Descobri posteriormente que ninguém mais era além do meu melhor amigo, convidado pelo próprio Augusto. Após o evento, porém, o mesmo levantou contra mim seu calcanhar, tentando convencer a todos de minha culpa, mas em vão o fez.

Sentei-me em uma das cadeiras e raciocinei sobre o que acabara de ocorrer. Talvez isso surpreenda o leitor, mas devo dizer que estava plenamente aliviado naquele momento. Pois, depois daquela noite, as coisas que mais prezava, minha vida e reputação, estariam novamente seguras. Apesar da tragédia, eu vencera novamente. E o leitor pode se indagar livremente sobre qual foi o motivo para minha tranquilidade. Se, ainda agora, permanecer em dúvida, sinto-me ainda mais realizado, pois isso me proporciona a certeza de que minha obra é, de fato, perfeita. Portanto, tenho como dever permanecer reticente, e deixar que o leitor tire suas próprias conclusões sobre o desfecho dos eventos por mim contados, ou que se esforce para entender meus pequenos relatos, pois, caso assim faça, e descubra nas entrelinhas a própria verdade, é provável que torne-se mais um dentre meus inimigos. Não o culpo, contudo. A maior parte dos leitores confia mais no contista do que no próprio conto, e este é, sem dúvida, seu maior erro.

Sinceramente,

A. B.

William Estaquio
Enviado por William Estaquio em 10/04/2015
Reeditado em 12/04/2015
Código do texto: T5201447
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