Consciencia

George Luiz - Consciência

O doutor Alberto Furtado acordou cedo. Tinha uma cirurgia no hospital, as oito horas. Tomou um chuveiro rápido e comeu algumas fatias de pão com margarina com um copo de leite gelado. Era um homem sóbrio, de hábitos moderados. Detalhista e rotineiro, era difícil vê-lo esquecer-se de alguma coi-as. Tinha uma disposição tranqüila e normalmente amistosa. Claro, como todo mundo, tinha suas iras e as vezes chegava a sentir vontade de matar alguém.

Nessas horas, lembrava-se que era um medico e que seu dever era salvar e não matar pessoas.

Era justamente nisso que o doutor Furtado pensava enquanto tirava seu carro da garagem. O homem que ele ia operar era um verdadeiro crápula. Tinha uma oficina de consertos de televisão e o doutor Furtado já tivera uma desa-vença séria com ele. Na ocasião tivera mesmo a vontade de matar o sujeito.

Claro que isso não acontecera. E hoje, Petrópolis não tem mais que meia dúzia de hospitais importantes, ele ia abrir o abdôen do safado, com seu bisturi, que tentação horrível...Adélia, sua mulher o chamou.

- Alberto ! Não se esqueça de passar no açougue do supermercado e trazer dois filés de salmão, umas oitocentas gramas. Quero preparar os sashimis a tempo para o almoço.

- Pode deixar, querida, eu passo por lá na volta.

Fazia um calor pouco comum para a serra. Alberto estacionou seu carro e em-trou no hospital. Chegara as sete e meia, gostava de proceder as coisas sem ter que se apressar. Seu assistente principal já o esperava.

- Bom dia doutor. Os preparativos para a cirurgia já estão feitos.

- Ótimo.

- É um caso difícil, não acha? O senhor vai ter que se valer de toda a sua maestria, ou o paciente não sai vivo dessa...

- Vamos, Pedro, nossa pequena equipe é muito eficiente. Vamos salvar o ho-mem e depois comemorar com um cafezinho bem quente.

- O senhor abusa um pouco desses cafezinhos, doutor.

- É o que Adélia vive me dizendo, mas não adianta, Pedro. Sou um viciado. Bem, o Lucas já está a postos ?

- Está sim. Ele é um excelente anestesista, não acha ?

- Sem dúvida, um craque esse rapaz. E a Janete ?

- Já nos vimos hoje. Ela também estará, como sempre, a postos.

- Bem, vamos entrar em ação ?

- Vamos, doutor Alberto. Vou pedir que encaminhem o paciente à sala de cirurgia número dois. Ele já está sedado.

Alberto olhou com interesse o paciente ser transferido da maca para a mesa cirúrgica. Era um homem corpulento, de uns cinquenta e poucos anos. Seda-do, a expressão de seu rosto era tranqüila. A equipe já terminara a própria desinfecção os instrumentos foram cuidadosamente dispostos sobre a bandeja por Janete, a instrumentadora, fria e precisa como sempre. A cena ,como num espetáculo teatral, estava armada. Lucas, o anestesista, indicou ao cirurgião por um gesto bem conhecido, que a anestesia estava em curso. Alberto olhou o relógio na parede, eram sete e quarenta e oito. Ele recebeu o bisturi da auxiliar e num gesto firme mas delicado, abriu o abdomen inchado do seu paciente.

Duas horas e vinte minutos depois, no refeitório do hospital, os três médicos relaxavam a uma das mesas. A cirurgia tinha sido bem sucedida.

- Doutor Alberto, o senhor é mesmo um craque.

- Pare com isso, Pedro. Fizemos o melhor possível e também tivemos um pouco de sorte.

- Não, doutor, a sorte não teve nada com isso, o senhor foi magistral. O que você acha, Lucas ?

- Concordo totalmente. Era uma cirurgia muito delicada e agora o paciente está salvo.

- Tudo bem, admito isso tudo, mas a participação de vocês dois e da Janete, foi fundamental. Bem, vou tomar mais um cafezinho, examinar meus pacientes em recuperação e passar no supermercado. Adélia me pediu pa-ra comprar uns filés de salmão.

- Ah, vai comer sashimi no almoço...

- Isso mesmo, adoramos esse prato. E é bem saudável. Adélia corta esses filés com mais precisão do que eu opero...

- Beleza...e vai comer sushis também ?

- Claro, com um pouquinho de raiz forte além do shoiu. Bem vou trabalhar.

Os dois médicos mais jovens ainda ficaram alguns minutos no refeitório após a saída de Alberto.

- Temos sorte, Lucas. Trabalhar com o doutor Furtado é uma garantia de sucesso. Estou sempre aprendendo alguma coisa nova com ele.

- Você está certo, Pedro. O homem é uma “fera”... Que idade ele tem ?

- Ah, essa aparência dele engana. Está com sessenta e um anos, mas há quem não lhe dê mais de quarenta e poucos.

- Poxa, é incrível mesmo.

- Bem, vou trabalhar mais um pouco, que manhã proveitosa!

Em seu carro, de volta para casa, Alberto Furtado refletia. Um medico deve ter uma consciencia inatacável. Seria realmente, como nos espetáculos de mágica, de ilusionismo, a mão mais rápida que os olhos ? Amanhã iria fazer a costumeira visita aos pacientes operados. Vicente Rodrigues, o homem que tinha acabado de operar, iria fita-lo nos olhos. Será que , ao reconhecer o medico, iria sentir medo ? terror ? A troca do bisturi por um outro, infectado, numa quantidade microscópica mas suficiente, por uma das mais letais bactérias conhecidas pela medicina, tinha sido imperceptível, perfeita. O paciente teria alta em seis ou sete dias. Iria para sua casa em aparente convalescença. Alberto Furtado relaxou, satisfeito, no assento do seu carro.Em três semanas, no máximo, Vicente Rodrigues estaria morto.

George Luiz
Enviado por George Luiz em 12/06/2007
Código do texto: T523676