Gisele

George Luiz - Gisele

Era,sem dúvida, a mais estreita, esta primeira porta. Sólida, indevassável, indicava, bem mais do que mostrava, uma entrada ou saída para o desconheci-do.

Gisele deteve-se ante ela num misto de curiosidade e medo. Afinal, de onde vi-nha aquela confusão de sons e rumores tão estranhos ? Estendeu, cautelosa, a mão hesitante, para a maçaneta.

Existem várias maneiras de interpretar um acontecimento. Só que este era particularmente difícil. Desde o momento em que Gisele abrira a porta, realidade e fantasia tinham parecido se mesclar de tal forma, que ela não saberia mais distingui-las.

O ambiente era pouco iluminado. Aqui e ali, luzes azuis, verdes ou vermelhas, todas de fraca intensidade, iluminavam vultos imprecisos. Um piano negro, a um canto, tocava uma melodia arrastada. Mas não parecia haver sinal de um pianista. Uma mulher loura, excessivamente maquiada, inclinava-se sobre o instrumento e murmurava palavras pouco compreensíveis , apesar de sonoras ao microfone.

Um homem magro, vestindo um terno cinza listrado aproximou-se de Gisele:

- Veio encontrar o Gordo, querida ?

- Gordo ? Que Gordo ?

Um riso silencioso sacudiu os ombros do homem. Era como se entre ele e Gisele, houvesse um segredo, de teor um tanto discutível.

- Ele vai chegar, querida. Beba alguma coisa enquanto o espera.

- Olhe ! Não estou esperando ninguém e não quero beber nada.

- Claro que está, querida. Olhe, aí vem a Daisy.

- Quem é essa garota, Argemiro ? O que ela quer com o Gordo ?

- Não conheço nenhum Gordo !

- Ah, não conhece queridinha ? Então por que está usando esse vestido preto, com os seios e as coxas a mostra ? Você sabe muito bem que o Gordo adora putas com o seu estilo.

Gisele olhou para seu próprio vestido. Realmente estava usando uma roupa to-talmente em desacordo com sua personalidade e educação. Mas, que vestido era esse ? Ela nunca o tinha visto antes. E suas unhas ? Longas e vermelhas ? Pare-ciam unhas artificiais. Daisy gritou em direção ao piano :

- Toque alguma coisa mais ritmada, Freddy! Vamos ver se essa piranha sabe mexer a bunda com alguma sensualidade.

O pianista invisível imprimiu um novo compasso ao seu instrumento. Nas me-sas próximas, as conversas diminuíram. E então, como se movida por uma com-pulsão estranha e implacável, Gisele começou a contorcer o corpo numa dança lasciva. Sua boca, entreaberta, a cabeça jogada para trás, os quadris e as ancas em escandaloso movimento, ela era, de repente, a imagem viva da luxuria. Ouviram-se fortes palmas perto dela. Um homem gordo, atarracado, de traços grosseiros, a aplaudia. Ela não precisou olhá-lo duas vezes para saber que era o Gordo. Ele aproximou-se de Gisele com um sorriso torpe nos lábios grossos.

- Isso, gostosa. Mostre a esses babacas que você é a putinha do Gordo.

Gisele ainda dançou por algum tempo. Depois a música cessou.

- Você....você é o Gordo ?

- Claro, querida. Vem cá, sente aqui comigo e beba um trago.

- Eu não bebo.

- Não bebe ? As banhas do gordo agitaram-se ao rir. Ele suava e arfava no esforço de manifestar seu divertimento com a afirmação da moça. Tinha uma risada entrecortada, quase obscena. Num gesto surpreendentemente ágil para alguém com o seu peso, agarrou Gisele por um dos pulsos e sentou-a, rudemente em seu colo. Ela se debateu um pouco.

- Pare, pare com isso ! Você está me machucando !

- Mas você gosta, não é, benzinho ? Gosta disso e de outras coisas mais! Jô-ão ! A suíte lá em cima está bem arrumada ? Minha bonequinha e eu queremos nos divertir e descansar um pouco.

Não, não era possível, aquilo era um pesadelo. Gisele esperava despertar de um momento para o outro. No entanto sentiu que estava sendo levada, quase carregada pelo Gordo para o andar de cima. A força do Gordo era indiscutí-vel. Em suas mãos ela não era mais que uma boneca de carne e osso, trêmu-la, passiva. Com um gesto ele escancarou a porta da suíte, atirou-a sobre a cama. Gisele olhou-0 indefesa. Com três ou quatro patadas ele livrou-a de seu vestido, sua calcinha, seu sutiã, suas sandálias. Gisele estava nua. Como num vídeo pornográfico, ela o viu desfazer-se de suas próprias roupas. Ai, meu Deus ele vinha, vinha para cima dela. Gisele não conseguiu evitar um pequeno grito de medo. O Gordo pareceu deliciar-se com isso. Segurou-a pelos longos cabelos e num golpe certeiro penetrou-a.

Gisele gemia e se retorcia tentando livrar-se dele, mas, após alguns minutos dessa tortura, começou a sentir um prazer intenso. Ele era um amante brutal mas eficiente. Ele ia e vinha, ocupando-a por inteiro e quando ela percebeu estava se abrindo mais, desejando mais aquele sexo poderoso. Ele penetrou-a com mais força e,de súbito, ela estava gozando e lhe pedindo mais. Depois, a gostosa escuridão do sono a envolveu.

Gisele acordou sobressaltada. Não estava mais com o Gordo. Ele a tinha dei-xado na cama, inerte. Apenas os traços do esperma sobre seu ventre e uma sensação entre ardida e agradável em seu sexo, mostravam-lhe o que tinha acontecido. Que loucura ! Ela levantou-se e tomou uma ducha no pequeno banheiro. Vestiu-se e saiu rapidamente. No andar de baixo, olharam-na com curiosidade. Ela ganhou a rua. Olhou o mostrador de seu relógio de pulso. Eram mais de onze horas da noite.

Na delegacia de homicídios, o delegado Afrânio Moreira conversava com o detetive Gonçalves.

- Gonçalves, estou meio desanimado.

- Por que, chefe ?

- Há mais de seis semanas não aparece um caso realmente difícil.

- E o senhor se queixa, chefe ? Parece que está procurando sarna para se co-çar ...

- A alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo, Gonçalves.

- Sei, sei. E ir correndo lá atrás, dizer ao elefante que as coisas estão pre

-tas....

- Bravo, Gonçalves ! Você está progredindo....

- Bom, doutor Afranio, vou ver se já aqueceram seu almoço no microon-das.Filé de cherne com batatas cozidas e alcaparras,nada de arroz.

- Bom rapaz !

Na terça-feira, às cinco e trinta da manhã, o corpo de um homem gordo foi encontrado perto de um bar. Vestia um terno azul claro e seus documentos estavam dentro dos bolsos. Era o indivíduo conhecido como O Gordo. A justiça o acusara sempre de receptador e explorador de prostitutas. Ainda estava com um grande anel de ouro no anular da mão direita. Numa esquina muito próxima, a uns dez metros de distancia, estava estacionado seu carro, sem qualquer sinal de arrombamento. No instituto medico legal , recolhidos todos os objetos encontrados no cadáver, nenhuma pista surgiu. A arma usada no crime ainda estava cravada no tórax do morto. Era um estilete muito longo e fino, parecia um furador de gelo. Havia muito pouco sangue no ferimento. No estilete, nenhuma impressão digital.O dinheiro que o homem devia levar consigo tinha desaparecido. Mas, foi encontrada uma foto de mulher, uma garota aparentando vinte a vinte dois anos. E no verso da foto estava um nome, Gisele, e os números de dois telefones, um deles, celular. E uma indicação escrita em negro : Personal Trainer. Da delegacia de homicídios, o detetive Gonçalves ligou para o celular, mas estava na caixa postal e ele preferiu não deixar qualquer recado. No outro uma voz feminina atendeu. Gonçalves perguntou por Gisele e a voz respondeu que era ela mesma. Ele disse então que desejava marcar um encontro para solicitar seus serviços profissionais. A moça perguntou-lhe quem a indicara e como ele não soube responder de forma convincente, ela desligou o telefone.

- E aí, doutor ? Vamos divulgar essa foto ?

- Muita calma, Gonçalves. O que temos em mãos ? A foto de uma jovem per-sonal trainer ? Antes de qualquer coisa, temos que investigar a espelunca que o Gordo freqüentava. Descobrir onde ele morava. Aí sim, vamos pen-sar em conversar com essa moça.

- Mas, e a foto dela doutor ?

- A foto será discretamente mostrada por nós, pessoalmente, aos frequen-tadores do tal bar. Vamos ver se alguém a reconhece.

- E se ela sair da cidade ?

- Espere aí, Gonçalves, por que você cismou com a garota da foto ?

- É nossa única pista, chefe !

- Se essa é nossa única pista, acho que estamos mal servidos, Gonçalves. Venha, vamos ao tal bar.

Num apartamento em Laranjeiras, dois homens conversavam.

- Ficou satisfeito com meu trabalho, Argemiro ?

- Fiquei, é claro. Tem certeza que não vão descobrir nada ?

- Descobrir como, homem ? Não houve qualquer falha.

- É, parece que não houve mesmo.

- Você vai ver. Em dois ou três dias a garota será presa, acusada de assas-sinato.

- Por que você pensou nela como bode expiatório ?

- Por acaso, amigo, por puro acaso. Agora vá, tenho trabalho a fazer.

- Está bem. Ficarei em contato com você.

Gisele acordara cedo. Agora, pensando no que acontecera, não conseguia e-vitar uma sensação de irrealidade. Tentava recapitular os fatos. Não podia entender o que tinha lhe acontecido. Mas estavam ali os vestígios da terrível verdade. Um mini vestido preto que não lhe pertencia, as sandálias de saltos altíssimos as pulseiras baratas de bijuteria...E aquele telefonema estranho,re-cebido há pouco. Quem seria o homem que não se identificara ? Colocou o vestido , as pulseiras e as sandálias numa sacola de loja e pensou em como livrar-se delas. Preparou um suco e torradas. Tinha um compromisso profis-sional as dez horas. Tomou uma ducha rápida , vestiu sua malha de ginás-tica, calçou seus tênis e saiu.

O delegado Afrânio olhou com tranqüilidade a foto sobre sua mesa.

- Uma garota bem bonita, Gonçalves. Bem que eu gostaria de perder uns quilinhos fazendo ginástica sob a orientação dela.

- Que é isso, chefe? O senhor está em boa forma.

- Sei. Minha sorte é que não fumo mais, ou não agüentaria caminhar mais de cem metros sem perder o fôlego.

- E essa garota, chefe ? Não vamos logo interrogá-la ?

- Calma, rapaz ! Ela tem dois telefones, exerce uma profissão normal.

- E se ela resolver sair da cidade ?

- Não vai sair, Gonçalves. A essa hora deve estar atendendo alguma grã-fina rica que quer parecer menos dez anos do que realmente mostra ter.

- E o bar, doutor Afrânio ?

- Ah, o bar, isso sim, Gonçalves. Vamos lá agora mesmo.

A parte da cidade onde se localizava o bar , perdia bastante de seu aspecto sórdido sob a luz do dia. Havia mais transito também. A porta do bar estava entreaberta. Os dois policiais entraram.

Um garçom de aspecto meio sujo adiantou-se.

- Os senhores querem uma mesa ?

- Não, o delegado Afrânio, meu chefe, quer falar com o proprietário, ou o gerente, agora.

- Ah, pois não. Um minutinho, vou chamar.

- Não é preciso. Seja esperto e nos leve até ele. Já !

- Tudo bem, venham comigo.

Deixaram o salão e seguiram por um corredor escuro e estreito atrás do garçom. No final do corredor havia uma porta e por trás dela , luz.

- Vou avisar ao gerente que vocês estão aqui,

- Deixe , nós mesmos fazemos isso, pode ir.

- Não ouviu o delegado, rapaz ? Vá logo !

Gonçalves entrou na frente, sem bater na porta. Um homem de meia idade, em mangas de camisa olhou para eles.

- Que diabo ! Quem são vocês ?

- Somos da policia, cara. Mantenha suas mãos sobre a mesa sem mexê-las. Meu chefe aqui quer lhe fazer umas perguntas.

- Mas sobre o quê ? Meu bar está dentro da lei.

- Isso vamos ver depois. Agora você vai responder umas perguntinhas.

- Tudo bem, não tenho nada a esconder.

- Nada a esconder ? Que ótimo. (A voz do delegado Afrânio era quase amis-tosa). Mesmo porque seria um pouco difícil esconder um cadáver do tama-nho do seu amigo, o Gordo.

- Amigo ? Cadáver ? Espere aí ,doutor, de que o senhor está falando?

- Ora, de um bom amigo seu, Aristides Barbosa, vulgo O Gordo. Aliás um ex-amigo. No momento ele é, como dizem, um presunto, sendo autopsiado no IML .

- Meu Deus !

- Deixe suas exclamações de pesar para o enterro. Preciso de informações suas, agora.

- Tudo bem, doutor. Digo tudo o que o senhor quiser saber.

- Melhor assim. Vou começar pela pergunta clássica: Onde o senhor estava ontem à noite, entre as 19 e as 24 horas ?

- Deixa eu ver...Cheguei aqui as 20 horas e fiquei até as duas da manhã quando a casa fechou.

- Muito bem ! E nesse período não foi a rua em qualquer momento ? Pense bem antes de me responder !

- Não, doutor. Não tirei os pés daqui.

- Então viu quando o Gordo chegou e depois quando ele saiu....

- Bem, o senhor sabe, fico quase todo o tempo aqui no meu escritório...

- Não sai nem pela curiosidade de ver se o bar está cheio ? Vamos...procure lembrar-se...

- Bem, devo ter dado uma olhada geral por volta das nove e meia, por aí. Estava tudo certo, sem problemas.

- O Gordo estava no bar ?

- Não, não estava.

- E mais tarde, você o viu ?

- Não, doutor, não o vi mesmo.

- Mas soube que ele tinha estado no bar...

- Acho que um garçom me disse, mas não prestei atenção. O Gordo vinha aqui praticamente todas as noites.

- E agora não virá mais...

- É doutor, perdi um bom freguês, um homem generoso.

- Olhe bem esta foto aqui. Diga-nos se já viu essa moça.

- Não, nunca a vi.

- Tem certeza ?

- Tenho. É uma moça muito bonita. Deve chamar a atenção.

- Pois é. Por enquanto não vou lhe fazer mais perguntas. Mas lembre-se: vo-cê e seu bar estão sob a mira da policia. Agora vou falar com seus empre-gados. A esta hora já são os que trabalharam ontem à noite, não é ?

- São sim, doutor, acabaram de pegar o serviço.

- Bem, manteremos contato com você, não saia da cidade sem nos avisar antes.

O garçom parecia ansioso por cooperar com a policia. Chamava-se Alberto e trabalhava no bar desde que esse fora inaugurado.Tinha quarenta e seis anos.

- Seu turno de trabalho é sempre esse, Alberto ?

- Sempre, chefe, há quase quinze anos.

- Então você viu esta moça aqui da foto ?

- Vi sim, doutor. Ela esteve aqui ontem a noite.

- E antes de ontem a noite, você já a tinha visto ?

- Nunca, doutor , foi a primeira vez.

- E ela chegou aqui sozinha ?

- Isso mesmo, doutor. Parecia que estava procurando alguém. Lembro que o Argemiro falou com ela.

- Argemiro ? Quem é ele ?

- Um freguês da casa, doutor, está aqui quase todas as noites.

- Um marginal ? Um desocupado ?

- Não, doutor ! Ele é do bem. Ganha a vida como escriturário.

- Provavelmente um bicheiro. Está tomando nota, Gonçalves ?

- Estou, doutor Afranio.

- Quem mais estava no bar quando a moça chegou, Alberto ?

- A casa não estava muito cheia, segunda-feira, o senhor sabe...

- De quem você se lembra ?

- Bem, estavam o Juca, o pianista e a cantora, a Lucinda.

- Sim, mas e os fregueses ?

- Poucos, doutor , menos de uma duzia aquela hora.

- E a moça não falou com mais nenhum deles ?

- Acho que a Jane, uma freguesa que vem sempre falou com a moça também.

- Lembra-se do que as duas falaram ?

- Não, não lembro, doutor. Mas a Jane disse alguma coisa ao Juca e ele co-meçou a tocar uma música diferente.

- Diferente ?

- É doutor e a moça começou a dançar.

- Sozinha ?

- Sozinha, doutor, uma dança dessas que chamam de eróticas, é isso aí.

- Entendo. E aí ?

- Ai´o Gordo entrou no bar, doutor.

- Estava sozinho ?

- Estava. Mas depois ficou com essa moça da foto.

- Ficou, é ?

- Ficou. Levou-a para o andar de cima depois, para a suíte.

- Que é isso , Alberto? Este bar é um prostíbulo ?

- Não, doutor, há uma suíte em cima para quando as pessoas querem con-versar particularmente.

- Sei, sei. E o Gordo e a moça demoraram muito lá ?

- Acho que menos de meia hora, doutor. Ele desceu primeiro.

- Sozinho ?

- Sozinho, pagou as despesas e saiu.

- E a moça ?

- A moça desceu uns quinze minutos depois e também foi embora.

- Você não esqueceu nenhum detalhe, Alberto ? Tem certeza do que me contou agora ?

- Tenho, doutor. Posso jurar se o senhor quiser.

- Não , não é preciso, pode ir.

O barman, o pianista, a cantora, o outro garçom da casa,apenas confirmaram as declarações de Alberto. O porteiro não tinha nada de mais a declarar. Vira o Gordo chegar sozinho e sair sozinho. O guardador de carros confirmou seu depoimento.

- Bem, Gonçalves, chegou a hora que você tanto queria, temos que procurar a moça e conversar com ela.

- Olhe, chefe, eu não estou querendo dizer que seja ela a assassina, e , além disso, ela saiu do bar, bem depois do Gordo.

- Calma, Gonçalves. Ninguém está acusando essa moça de homicida. Vamos ver o que ela nos diz sobre o Gordo e a noite de ontem.

Mas não contataram Gisele tão rapidamente como pensavam fazer. O celular continuava em caixa postal e o telefone residencial não respondia. O delega-do Afrânio resolveu comer alguma coisa.

- Vamos, Gonçalves. Aquele barzinho ali deve ter bons sanduíches.

- Sanduíches, chefe ? Depois o senhor vai se queixar de fome.

- Não seja desagradável. Vamos logo.

Gisele chegou à sua casa. Sentia-se especialmente cansada aquela noite. To-mou um chuveiro morno e depois ligou a televisão. O jornal da TV anuncia-va com pouco destaque a morte do Gordo. Gisela ficou estarrecida. Então o homem que a violentara estava morto, assassinado ! Em que aventura terrível ela se metera ? Pior era que não conseguia, por mais que tentasse, lembrar-se de como e por que tinha ido àquele maldito bar...

O interfone tocou. O porteiro informou-a de que dois homens da policia que-riam falar com ela. Assustada, Gisele disse que desceria em dez minutos. Vestiu uma blusa e calças jeans e ia descer quando lembrou-se da sacola com o vestido preto e as sandálias. Guardou-a rapidamente num armário embuti-do. Saiu para o corredor social e desceu.

A aparência física dos dois homens que aguardavam Gisele não era atemori-zante. O mais velho dirigiu-se a ela:

- Boa noite, senhorita. Sou o delegado Afrânio Moreira e este é o detetive Gonçalves. Poderíamos ter sua atenção por alguns minutos ?

- Claro. Mas, vamos conversar aqui mesmo?

- Não, não. Ou nos falamos em seu apartamento, se nos permitir, ou, se preferir podemos ir até a delegacia.

- Delegacia ? Não, prefiro que subam ao meu apartamento.

- Ótimo! Vamos então ?

O delegado Afrânio parecia muito a vontade no apartamento de Gisele. Gon-çalves estava alerta, parecia procurar por indícios que não sabia bem de que eram.

- E aí, senhorita, o que gostaria de me contar?

- Olhe, doutor, confesso que estou muito confusa.

- Sim ? Por quê ?

- Bem, as coisas não estão nada nítidas em minha memória, quero dizer so-bre a noite de ontem.

- Vamos ver , você foi a um bar, não é ? Procurar o Gordo ?

- Não, eu nem sabia que existia um Gordo até vê-lo pessoalmente ontem.

- Mas ,então, por que foi exatamente ao bar que ele freqüentava todas as noites ?

- Pois é, não sei explicar por quê. Nem sabia da existência desse bar e não costumo andar por essa parte da cidade.

- E por sua aparência e educação não deveria conhecer o bar mesmo. Mas tem que haver uma explicação para o fato de ter ido lá.

- Olhe, doutor Afrânio. Estou tão nervosa com isso tudo. Tenho medo que essas coisas sejam divulgadas e eu perca a minha reputação como perso-nal trainer. Eu vivo do meu trabalho, não tenho outras fontes de renda. E se minha foto aparecer nos jornais, na televisão ?

- Calma. Procure relaxar e me conte tudo que aconteceu ontem, desde o ponto em que se lembra.

- Está bem, vou tentar.

Gisele relatou tudo que se lembrava ao doutor Afrânio. Ele insistiu em que ela lhe contasse tudo o que tinha feito, desde a hora em que acordara. Ao chegar ao ponto da estória em que ela conhecera o Gordo , seus nervos cede-ram e ela começou a chorar. Como se movido obedecendo a uma ordem, Gonçalves foi até a pequena cozinha, abriu a geladeira e trouxe-lhe um copo com água.

- Calma, calma, moça...

- Isso mesmo, Gonçalves ela tem que recuperar a calma. Vamos minha fi-lha, não fique assim. Não há pressa para que você termine seu relato.

Gisele enxugou as lágrimas e olhou para o delegado. Depois, sem uma pala-vra, levantou-se foi até o armário embutido, abriu-o e estendeu a sacola ao delegado. Ele examinou seu conteúdo.

- Um vestido negro, não é ? Bem pequeno. Sandálias e bijuterias. São seus ?

- Não, doutor ! Juro que não ! Não sei como eu os estava vestindo.

- Era o que usava ontem a noite no bar ?

- Era. Fiz coisas horríveis usando essa roupa escandalosa.

- Ouça, pode nos contar tudo. Tem minha palavra e a do detetive Gonçalves aqui, que só usaremos o que nos disser em caso de imperiosa necessidade.

Controlando-se com dificuldade, Gisele terminou seu relato. Não omitiu se-quer a cena de sexo.

- Obrigado, Gisele. Sei o quanto deve ter sido difícil nos contar tudo isso.

- Muito difícil, doutor Afrânio.

- Eu sei, mas deixe-me dizer-lhe que acredito em você. E tenho a certeza que o Gonçalves também.

- Acreditei sim, chefe. A moça foi honesta e sincera.

- E agora ?

- Agora temos que voltar a um ponto do seu relato, em que se referiu à sua conversa com o homem na mercearia. Tenho um feeling, um palpite, sei lá, que a chave de tudo está aí. Quanto ao vestido, as sandálias e as bijuterias, vou mandar periciá-las, podem ter alguma impressão digital diferente das suas ou das do Gordo.

- E eu, doutor ? O que faço ?

- Você continua a viver normalmente sua vida. Ficaremos em contato com você e lhe avisaremos de qualquer novidade.

- Obrigada, doutor Afrânio, o senhor é um homem bom.

- Não é bem isso que o Gonçalves acha de mim, mas, obrigado .

- Ora doutor que idéia !

- Estava brincando, Gonçalves. Vamos, a moça precisa ir dormir.

Os dois policiais voltaram à delegacia. Entregaram a sacola à perícia. Agora conversavam na sala do delegado.

- E aí, chefe? Será que essa moça está dizendo toda a verdade ?

- Eu apostaria meu último centavo como está, Gonçalves e acho que você faria o mesmo.

- É, mas já vi tanta gente com cara de santo mentir...

- Ela não pode ser chamada de santa, Gonçalves. Mas é uma garota corajosa e tenho a certeza de que não nos mentiu. Bem, vamos embora. Amanhã vai ser um dia bem longo. A primeira coisa que quero fazer, depois de receber o relatório da perícia, é dar um pulo a essa mercearia. Mas vamos lá a noitinha. Não quero ir lá pela manhã.

- O senhor manda, doutor Afrânio. Vamos lá conversar com o tal homem.

A mercearia tinha um aspecto limpo e parecia bem sortida. O delegado Afra-nio dirigiu-se ao homem do balcão. Este tinha a fisionomia que Gisele descre-vera, era alto, magro e usava uma espécie de jaleco, branco. Afrânio pergun-tou-lhe o nome.

- Muito bem, senhor Francisco, preciso de cinco minutos de sua atenção.

- Pois não. Vou pôr um funcionário em meu lugar. Venham ao meu escrito-rio , por favor.

Uma vez instalados, o delegado Afrânio fez várias perguntas pouco impor-tantes ao dono da pequena loja. Súbito, num gesto aparentemente casual, mostrou-lhe a foto de Gisele.

- Conhece esta moça, senhor Francisco ?

- Deixe-me ver, tantas pessoas circulam diariamente por aqui...sim. Acho que sim. Ela faz pequenas compras em minha loja. Ah, claro, acho que é uma professora de educação física, anda sempre de malha e tênis. Aconte-ceu alguma coisa com ela ? Não está complicada com a policia, não é ?

- Não, não. Apenas é uma testemunha de um furto. Só queremos confirmar a que horas aproximadamente ela esteve aqui anteontem.

- Um furto, é ? Espere vamos ver. Acho que ela passou por aqui de manhã, perto do meio dia.

- Ótimo. Ela lhe pareceu diferente? Nervosa ?

- Francamente, doutor, não me lembro. Mas acho que não ou eu teria pro-vavelmente notado.

- Perfeito. É só isso, obrigado por sua cooperação. Vamos, Gonçalves.

Novamente na rua, o delegado dirigiu-se ostensivamente para a viatura da delegacia. Entrou e Gonçalves deu a partida no motor.

- Não vamos longe, Gonçalves. Entre naquela rua e volte pela paralela à rua da mercearia.

- O que o senhor está tramando, chefe ?

- Nada de mais. Só um pequeno teste.

- Teste, chefe ?

- É , isso mesmo, estacione ali e vamos caminhar um pouquinho, estou pre-cisando de exercício. Tranque bem esse carro. Seria ridículo demais para nós se o furtassem aqui.

- Qual, doutor Afrânio, só mesmo o senhor para pensar nisso...

Os dois policiais se postaram na calçada oposta à da mercearia. Estavam bem ocultos pelas sombras, o delegado pela sombra de uma banca de jornais já fe-chada aquela hora e Gonçalves junto de um poste bem próximo.

Os minutos se passavam, várias pessoas entraram e saíram da mercearia. Gonçalves, quase imóvel, imaginava o que seu chefe estava esperando que acontecesse. Finalmente, um homem alto e magro de terno cinza aproximou-se da loja. Olhou para um lado e outro antes de entrar nela. Quase instintiva-mente o delegado recuou na sombra. O homem entrou na loja.

- Vamos, Gonçalves, chegou a hora de agir !

- Vamos lá, chefe, mas quem vamos prender ?

- Prepare-se para me dar cobertura, vou entrar na frente.

- Deixe comigo, doutor.

Afrânio caminhou sorrateiramente como um gato bem nutrido. Sua mão di-reita repousava sobre o coldre de seu revólver. Quase ao lado dele, Gonçal-ves estava pronto para tudo.

No interior da mercearia, Francisco o dono falava junto ao caixa como o ho-mem de terno cinza. Parou, de súbito, quando viu os dois policiais. O homem magro hesitou um instante, depois tentou sair.

- Parado aí, meu amigo ! A voz do delegado Afranio era tranqüila mas soava autoritária.

- Não se mexa homem ! Agora era Gonçalves, arma em punho quem falava.

- O que é isso ? Quem são vocês ?

- Seu amigo Francisco já nos conhece. Venha, vamos dar um passeio até a delegacia de homicídios. O senhor também seu Francisco !

Os dois homens foram algemados. O magro ainda tentava protestar, mas Francisco estava curiosamente quieto.

- Sob que acusação está me prendendo, tira ?

- Você escolheu mal o assassino, rapaz. Ele deixou uma pista bem clara.

O magro voltou-se irado para Francisco.

- Seu idiota ! Você me garantiu que a moça seria presa, que você tinha exe-cutado o Gordo sem deixar pistas !

- Fique quieto, imbecil ! Não vê que está fazendo o jogo dos policiais ? Eles estão blefando, não têm nenhuma prova !

- Está aqui comigo, meu caro, o laudo da perícia, você matou o Gordo !

- É mentira, ninguém pode provar nada contra mim !

- Acha mesmo ? Vocês dois estão liquidados e sabem disso.

- Espere, doutor, eu vou colaborar com o senhor. Esse cara matou o Gordo por conta própria !

- Fique quieto, idiota !

- Fiquem quietos vocês dois. Vamos, Gonçalves e você também rapaz .Seu colega fica tomando conta da mercearia e você vem depor como testemu-nha do que se passou aqui. Ou prefere ser incriminado também ?

- Eu vou, doutor, já estou ficando desempregado mesmo...

No pequeno bar perto do apartamento de Gisele, Afrânio, Gonçalves e a personal trainer conversavam. Em frente a cada um deles um copo de suco, sem açúcar.

- Doutor Afrânio, o senhor é mesmo incrível ! Como descobriu que os dois eram os autores do crime ?

- Ele ainda me mata de susto, dona Gisele, esse meu chefe não é fácil...

- Pare de me chamar de dona, por favor.

- Desculpe, é o hábito. Conte, conte para ela chefe, como o senhor resolveu o caso.

- Não foi tão difícil assim, Gisele. Tinha que haver uma ligação de interesse, de dinheiro, vantagens na eliminação do Gordo. No caso quem levou van-tagem foi o homem magro, o Argemiro, o homem do terno cinza. Ele que-ria as prostitutas, os pequenos ladrões também, tudo que trazia dinheiro para o Gordo.

- Sim, mas é incrível mesmo como o senhor chegou ao Francisco.

- Pense bem, minha filha, para você agir como agiu aquela noite, tinha que haver uma explicação. Primeiro eu pensei em drogas. Mas uma professora de ginástica, com sua saúde, sua forma física, eliminava essa hipótese. Foi então que eu pensei em hipnose. Sua estranha forma de agir, suas roupas naquela noite, era uma explicação plausível. Mas não para o homicídio.

Uma pessoa, mesmo hipnotizada, não mata alguém se matar não for sua tendência natural, se não for uma assassina em potencial.

- Nossa ! Nem gosto de lembrar daquela noite !

- Você acabará esquecendo isso.

- Tudo bem, chefe, essa parte o senhor já explicou. Mas por que suspeitou desse Francisco ?

- Vamos dizer que foi uma mistura de raciocínio e sorte, Gonçalves. Pelo o que a Gisele nos relatou sobre o dia em que tudo aconteceu, só ele teve a chance de hipnotiza-la. Porque ela só teve clientes pela manhã naquele dia. Foi à mercearia perto de uma hora da tarde, fez suas compras e levou-as para preparar seu almoço. Depois descansou um pouco. Quando foi à mercearia, o assassino a levou, sob algum pretexto que ela não lembra, ao pequeno escritório. Então hipnotizou-a .Ela vestiu as roupas que eram de uma antiga amante que o miserável tinha tido e que por uma sorte fora do comum lhe serviam perfeitamente assim como as sandálias, colocou as pulseiras de bijuteria maquiou-se e pronto. Ainda sob hipnose, recebeu ordens de Francisco e dirigiu-se, um pouco mais tarde, ao bar que ele indicara. Francisco achou-se com o bode expiatório nas mãos para poder ele mesmo executar o crime. O resto, você já sabe.

- Mas mesmo assim , doutor Afrânio não consigo acreditar que ele tenha me hipnotizado com tanta eficiência.

- Há um detalhe que você desconhece, querida. Ele foi durante anos artista de teatro e circo.c Foi um mágico e hipnotizador de bastante sucesso, Cansou dessa vida e como tinha guardado um bom dinheiro, comprou o prédio onde tinha a loja e o apartamento onde morava, no andar de cima.

- Bem, doutor Afrânio só falta nós combinarmos o horário para começarmos a trabalhar juntos. Vai ver que eu sou uma ótima personal trainer. O senhor vai ficar um verdadeiro atleta.

- Moça, acho melhor você deixar de lado essa idéia.

- Por que, Gonçalves ?

- Porque o chefe tem uma namorada, uma grã-fina bonitona e viúva com quem ele sai todo fim de semana, e que é muito ciumenta. Imagine se ela descobre que o doutor está treinando ginástica com uma garota linda.

- Gonçalves!

- Sim, chefe ?

- Vai te catar, seu sem vergonha !

George Luiz
Enviado por George Luiz em 16/06/2007
Código do texto: T529251