O PRÍNCIPE DE PANO E LOUÇA

Sobre a cama estava o sonho de toda menina, de preferência romântica, um príncipe de louça, o corpo de pano e a cabeça, pés e mãos de louça fina. A roupa azul e branca, enfeitada com lindas pedrinhas brilhantes. Ana Karla quase chorou de felicidade, conteve-se e pegou o presente, correndo pelos cômodos para mostrar para a família.

Fora seu companheiro inseparável até próximo de sua adolescência, depois ficou mais alguns anos enfeitando a sua cama de solteira e finalmente, depois do casamento, ficara numa estante junto a outros enfeites, bibelôs e porta-retratos.

Os anos foram passando e aquela alegria de viver, rodeada sempre de pessoas, que faziam questão da sua presença, das viagens de turismo, bailes, festas, acabara e a colocara numa cama, tetraplégica, devido a uma queda ao descer as escadarias da casa.

O seu mundo agora estava restrito a um quarto, uma cama, uma estante, uma enfermeira e uma visão constante. O príncipe de louça jogado entre bibelôs e porta-retratos. A sua mente, ainda sã, a levava aos tempos de infância e ao mundo todo rosa. Os olhos do príncipe sempre fixados nela com a impressão que estivesse sensibilizado com ela e muitas vezes, acreditava ter visto lágrimas nos olhos dele.

As chuvas de janeiro chegavam fortes e naquela noite uma tempestade se formou, regada de relâmpagos e trovões, que cada vez que jogava sua luz pela fresta da persiana, iluminava o pequeno príncipe na estante.

Totalmente imobilizada não conseguia esconder o rosto por debaixo da coberta, como fazia na infância e nem adiantava chamar pela mãe, ela não iria ouvir. Porém alguém a ouviu.

Da estante uma voz ressoou pelo quarto iluminado pelo pequeno abajur.

- Está com medinho, Ana Karla?

Ela gelou e abriu seus olhos. Um trovão explodiu nos céus e um risco azulado iluminou a estante. O príncipe. Cadê o príncipe? Esgueirou um pouco mais os olhos e procurou pela enfermeira. Lá estava ela adormecida na poltrona retrátil, como sempre. Voltou seu olhar e quase enfartou. Sobre sua barriga insensível estava o príncipe sentado, com as pernas cruzadas e os olhos fixos nela.

- Como está se sentindo, minha amiga? Disse o boneco com certo sarcasmo.

Ela queria gritar e acordar a enfermeira, não conseguiu emitir nenhum som. Era um sonho. Um pesadelo. Fechou os olhos e os abriu em seguida, rapidamente, lá estava ele com os braços cruzados no peito de pano azul e branco.

- Como se sente aí jogada nesse mesmo lugar tantos anos?

- O que você quer comigo? Conseguiu balbuciar.

- Apenas o gostinho de vê-la inútil, da mesma maneira que eu fiquei por tantos anos naquela estante. Riu.

- Você é apenas um brinquedo de pano e louça e sem sentimentos.

- E que também não pode falar, né!

- Não estou preocupada, sei que tudo isso é um sonho e que vou acordar daqui a pouco e rir dessa situação.

O boneco ficou em pé e caminhou por sobre a coberta em direção ao rosto dela. Ficou bem perto e chutou o nariz dela. Ela soltou um gemido de dor.

- Viu! Não é um sonho. Gargalhou e voltou para o lugar onde estava.

Duas lágrimas começavam a escorrer pelas laterais dos olhos de Ana Karla, não estava acreditando no que estava acontecendo e nem o porquê daquele boneco estar importunando.

- Como você pôde me abandonar naquele lugar por tantos anos, depois de todas as alegrias que te proporcionei, do aconchego nas noites tristes e frias, do zelo e do carinho por muitos anos?

- Eu cresci! Indagou com rispidez.

- Não justifica. Mas agora você já deve estar sentindo a mesma dor que senti todos esses anos. Esquecida nessa cama, sem se movimentar, sem ninguém para falar com você.

- Eu tenho alguém que cuida de mim, sim.

- Eu vejo. Uma mulher que te limpa, como você me limpava, depois te esquece o dia inteiro e só volta para te dar banho, alimento e te cobre para que durma de novo e de novo e de novo...

- Foi uma fatalidade, do contrário estaria caminhando por aí.

- Foi mesmo. Você se lembra como caiu do topo da escadaria?

- Tropecei.

- No quê?

- Não sei. No próprio pé ou numa falha do tapete.

- Não! Gritou. – Foi em mim. Eu estava lá quando foi descer a escadaria.

- Você desceu da estante (pausa) e foi até lá (pausa) ficou esperando que eu aparecesse para descer e tocou meu pé para que eu caísse? Foi dizendo e rindo ao mesmo tempo.

- Onde estou agora? Posso estar em qualquer lugar, sem que ninguém perceba. Bem! O importante é que pude desfrutar de alguns anos do seu sofrimento e agora estou satisfeito. Pena que essa lição tenha vindo muito tarde, nunca despreze alguém que te ama e nunca o transforme em um enfeite de estante, de onde pode vê-lo e não tocá-lo e o pior, impedir que outra pessoa desfrute desse amor, apenas por egoísmo.

- Você era meu, só meu e não tinha mais idade para ficar brincando.

- Explica, mas não justifica. Só vim dizer adeus. Disse ele descendo da cama imponente como um verdadeiro príncipe.

Naquela manhã a enfermeira cobriu o rosto da falecida e chamou o médico e a filha. Não muito longe dali uma criança corria pela calçada para mostrar o boneco de louça e pano que encontrara jogado. Um príncipe de roupa azul e branca com pedrinhas de brilhantes e um rosto com a expressão de tristeza e com marcas de lágrimas saindo dos olhos.

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Kiko Zampieri
Enviado por Kiko Zampieri em 03/07/2015
Reeditado em 03/07/2015
Código do texto: T5298405
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