Cicatrizes enferrujadas

A primeira cliente de todos os dias é Carina. Chego ao centro as quinze para às cinco da manhã, abro o comércio elevando as portas de metal com a ajuda de um cabo de vassoura; acendo as luzes, limpo a bancada, ligo o computador do caixa, o ar-condicionado e em poucos minutos ela aparece.

Sentada na calçada fria do Mercadinho Irmãos na fé, com o queixo tocando os joelhos, a menina parece dormir. Somente o olhar acostumado de quem a vê todos os dias pode perceber sua respiração curta e irregular, como se chegasse de um arrastão. Veste uma camiseta rosa de alças finas e uma saia de mesma cor cai nos seus quadris estreitos. Nos pés somente lama, poeira e algumas cicatrizes enferrujadas.

Observo-a do balcão, enquanto somo as moedas separadas no cantinho da caixa registradora no dia anterior. Já perdi a conta de quantas vezes tive que recomeçar essa atividade, perdido em pensamentos.

Não sei de sua origem, se estuda, se tem família. Só sei que ela está sempre ali, na minha calçada, enquanto as luzes da cidade se espreguiçam aos poucos, revelando o colorido natural das fachadas do centro comercial.

Tão logo termino a contagem, fito o suporte de metal destinado aos sacos plásticos e percebo que está vazio. Vou aos fundos do comércio, vasculho a pequena dispensa e encontro o que procuro. Antes de sair aprecio as paredes do cômodo e rio baixinho. Volto ao balcão, deposito as moedas no pequeno saco plástico que encontrei, vou até à calçada e chamo Carina.

- Ei! Menina! – tímida, ela ergue a cabeça. No rosto sujo, um sorriso torto e olhos amarelados que brilham com o despontar preguiçoso do sol. Afago seus cabelos e entrego o saquinho. – Aqui. Levante-se, querida!

A garota é obediente e fica em pé num sobressalto. Volto para dentro e finjo não ouvir seus passos atrás de mim. Ela passeia pelos corredores e, com o indicador sobre os lábios, contempla algumas prateleiras com afinco.

Alguns minutos depois, ela senta na seção de frios e congelados com as costas curvadas sobre alguns produtos. Identifico alguns pacotes de biscoito de variados sabores e marcas, latinhas de refrigerantes sortidas, absorventes íntimos e desodorantes. Escondo um sorriso de satisfação. Crianças e suas esquisitices!

Silenciosa, parece calcular os preços, pois olha com cuidado os rótulos de cada produto a guisa de explicações. Como se calcula a dor da fome?

Quero que aquilo termine logo e me aproximo dela. A menina não esboça nenhuma reação, finge não me ver. Continua calada e indecisa.

– Vamos querida! Escolha logo o que quer levar. – sai mais indelicado do que eu esperava – Imagino que deve ser complicado decidir entre o biscoito de chocolate branco e o de morango, mas você precisa ser rápida. Os clientes chegarão em breve. Infelizmente!

A menina coça a cabeça, o cabelo crespo reunido em um coque desalinhado no alto. Levanta-se com um refrigerante de uva e o biscoito recheado de morango e revira os olhos quando me encara.

Apenas observo quando ela coloca os produtos no balcão do caixa e retorna para pôr os produtos do chão de volta às prateleiras.

Novamente no caixa, Carina parece distante. O sorriso de antes se transformou numa linha fria e cinzenta. Seus olhos são botões amarelados, inexpressivos.

- São R$ 3,20, querida. Quer que eu embale? – digo e só depois lembro que não tenho saco plástico.

A garota assente com a cabeça e lança o pequeno saco de moedas sobre o balcão. Entrego sua compra e ela sai, sem dizer nada, cruzando a calçada em passos largos e decididos.

Carina... Desde que a tranquei, naquele quarto dos fundos onde acumulo fotografias, bonecas e doces... Desde que atei seus braços e pernas com um barbante, tirei suas roupas imundas e a penetrei... Carina não conversa mais com ninguém.

Desde então, tento reconquista-la. Anseio sentir o seu corpo rebelde convulsionando sob o meu peso. Preciso voltar a ouvir aqueles gritos desesperados de dor ecoando por entre as paredes do Mercadinho Irmãos na fé. Carina, querida, R$ 3,20 não bastam?