O Bacurau Pescador

O Bacurau pescador

Por Fernando Silva – Da coletânea “causos de fogueira”; textos de infância.

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Tinha seis ou sete anos, numa casa com assoalho e paredes de tábuas, três cômodos tinhas: sala, quarto, cozinha; brincávamos os três amigos: Maria, seu irmão e eu; corríamos em volta da casa e escondíamos sob o assoalho; nossos pais conversavam à sala e tomavam café; entre um corre-empurra e outro, um riso e um safanão, voltávamos à sala, como a conferir se ainda estavam a conversar.

Se bem me lembro, estávamos na quaresma. “não se pode judiar dos bichos, nem gritar durante a quaresma!”, dizia certo conselho, que repetia-se à molecada sempre que chegava esse tempo. Como sempre, coisa de menino, corríamos e a algazarra era tamanha. Um pigarro se ouviu à porta e, de súbito mudaram o tom da conversa, motivado por um querer de seu Miguel de ir pescar naquela noite.

Meu velho pai ergueu-se, enrolou um cigarro, acendeu e soprou no ar a fumaça, sob a fosca luz de uma lamparina que pousava sobre a mesa, como ondas do mar se via a cinza-fumaça passar como um véu. Seu Miguel e dona Maria se escoraram na parede e fez-se um breve silêncio e como num ato cerimonial o velho Maneco em tom grave vaticinou: “não é bom sair em noites assim”! Em seguida emendou a história do bacurau pescador:

- Foi numa noite como essa, há tempos atrás que o velho Manduca saiu pra pescar; não se lembram? Não tinha necessidade em fazer isso, pois ele tinha em casa muito peixe que havia pescado durante a semana.

Disse dona Maria:

- Pois é bem me lembro!

- Acontece que ele tinha uma ganância ou outra coisa que não podia conter e se danava pescar todas as noites. Dona Maroca sempre dizia que ele não devia ir pescar todas as noites, ainda mais sozinho, sem companheiro. Mesmo assim ele só atendia seus caprichos e dizia que não precisava de companheiro, sabia pescar sozinho e sabia voltar para casa sempre.

Foi numa dessas teimas com dona Maroca que o Manduca pegou um terçado, um remo e um paneiro e saiu noite adentro para pescar. Ia sozinho assobiando, remando, descendo o rio. A certa altura, teceu um cigarro com tabaco de mole, acendeu e soprou a fumaça no ar. Tudo estava calmo, somente o barulho brando da maré vazante e um salto ou outro de peixe sem valor.

O luar banhava com sua luz os altos mangueiros que vez ou outra projetavam suas sombras esgalhadas no leito do igarapé. Nada se ouvia se não o pio solitário de um bacurau que ecoava ao longe. Entre um pito e outro, o Manduca tentava imitar o pio do bacurau, na tentativa de afastar o sono ou quem sabe imaginar o sucesso de sua pescaria naquela iluminada noite.

Foi numa dessas curvas que o rio faz ali para as bandas do Maranduba que uma nuvem encobriu a lua e tudo ficou silêncio. Manduca ouviu o cantar do bacurau bem mais perto e respondeu, dessa vez não com assobio imitando o bicho, mas disse meio cantando: “Ó bacurau que triste canta na noite de luar que me encanta, deixa teu canto triste e vem pescar comigo!” tudo se fez silêncio. Nem mesmo o vento se fez sentir. Um pouco mais e novamente um pio de bacurau ecoou mato adentro. Manduca repetiu sua cantiga: “Ó bacurau que triste canta na noite de luar que me encanta, deixa teu canto triste e vem pescar comigo!”.

Calou-se o vento, a lua acendeu como o sol e nenhum pio de bacurau ou outra ave qualquer se fez. Manduca sentiu certo arrepio no corpo e temendo o frio, remou mais depressa para se aquecer. Lá mais adiante na curva da enseada avistou um homem que caminhava pela crôa. Pensou consigo: “deve ser um camaroeiro!”. E resolveu indagar o tal, se a pesca estava boa.

Chamou:

-Ei caboclo! Muito camarão?

O sujeito, veio até a beira d’água e respondeu:

- Nada! Tá muito ruim por aqui! Até minha canoa perdi! Para onde tu vai?

Manduca respondeu:

- Vou tarrafear ali na ponta. Quer vir comigo?

- Sim, se me levas!

- Embarca aí e vamos. A maré já está baixa, não deve demorar pra encher!

O caboclo sentou no banco do meio. Era um sujeito bem magro e alto, mas ao subir na canoa parecia que tinha um peso além da conta. Manduca ficou meio desconfiado, mas nada comentou. Perguntou apenas de onde era o sujeito e ele respondeu que era das bandas da cabeceira.

Chegaram no ponto de tarrafear o Manduca pediu pro caboclo governar a montaria e passou à proa para poder jogar a tarrafa. O homem passou para a popa e o Manduca ficou de pé no bailéu. Armou a tarrafa às costas e prendeu o chumbo entre os dente. Acenou para o companheiro que colocasse a canoa de banda com o embarreirado e jogou a tarrafa. Sentiu a tarrafa encostar no fundo e o filame tremer. Parece que deu em cima de um cardume, mas não viu nem um peixe ou camarão saltar pela cabeça da tarrafa. Acenou para o companheiro puxar água de lado e começou a içar a tarrafa.

Sentiu o peso da tarrafa cheia de peixe e sentiu dificuldade em puxar para dentro da canoa; pensou que estivesse presa a alguma galhada, mas insistiu em puxar e foi sentindo a tarrafa subindo e ficando leve, até que embarcou-a totalmente e ficou espantado, pois não tinha nenhum peixe, nem mesmo marca de alguma coisa que se tivesse entrado ou saído.

Ficou encabulado e comentou com o companheiro que não estava entendendo o que havia sucedido. Pensativo e olhando em volta viu saltar uma sardinha ou coisa parecida. Acenou para o companheiro para remar um pouco mais para fora e resmungando sacudiu a tarrafa um pouco mais longe. Deixou o filâme frouxo e sentou-se no bailéu. Em seguida tesou o cabo e sentiu a rede tremer.

Disse:

- É parceiro, agora parece que a coisa tá aí!

Puxou a tarrafa e como previra, tinha pegado uns bagres e umas cará-pitangas; Sentiu ânimo. Despescou a tarrafa e cantarolou uma música sem perceber o que cantava.

Repetiu:

- “Ó bacurau que triste canta na noite de luar que me encanta, deixa teu canto triste e vem pescar comigo!”;

Teceu um cigarro, acendeu e deu uns dois pitos e ofereceu ao seu amigo que começou a assobiar a melodia daquela cantiga que o Manduca cantava.

Nesse instante o Manduca sentiu um frio correr pelo corpo, pois ele ouviu claramente o homem assobiar a cantiga que ele tinha cantado. Ficou com os cabelos arrepiados e se calou. Pediu para o sujeito remar um pouco mais para o remanso do embarreirado e jogou a tarrafa, meio desconfiado do companheiro.

Sentiu a tarrafa cair bem aberta a descer suavemente. Tesou o filame e sentiu que ela prendeu em algo no fundo. Tentou puxar, mas parecia estar bem segura e presa. Forcejou e balançou a canoa tentando soltar a tarrafa, mas nem sinal de sair. Foi nessa hora que o sujeito se levantou na popa e perguntou:

- Seu Manduca, quer que eu mergulhe para soltar a tarrafa?

O Manduca hesitou um pouco, mas temendo perder a rede, concordou com o caboco que sem cerimônia pulou na água e mergulhou para ir desengatar a tarrafa. Não tardou muito o sujeito tornou à superfície da água com um bagre na boca e uma arraia na mão; jogou para dentro da canoa e disse:

- A tarrafa tá cheia de peixe, segure o filame bem firme que eu vou lá de novo! E voltou a mergulhar.

O Manduca achou mais estranho ainda quando o caboclo boiou com uns cangatás e outra arraia entre os dentes. Dizendo que iria buscar mais peixes. Manduca sentiu um pitiú insuportável e uma liseira em cima d’água. Ficou desconfiado e com muito medo. Passou a mão em baixo do bailéu, pegou o terçado e antes que o sujeito voltasse do fundo, cortou o filame e remou com toda força que possuía.

Estava a uns vinte metros de distância, já no fio da correnteza quando o caboclo boiou e gritou atrás dele com um grito de ensurdecer:

- Vem cá Manduca! Vem buscar peixe! Tu queria pescar, agora vem pescar comigo!

O Manduca ficou assombrado, sentiu uma forte dor na cabeça e o corpo tremer; o caboco mergulhava e boiava mais perto da canoa e o Manduca remava mais depressa ainda, até que remou bem para fora e pegou a correnteza mais forte e desceu. Só ouviu de longe o grito do caboco que dizia:

- É o que te vale se não eu ia te comer! Isso para você nunca mais pescar sozinho e nem convidar bacurau para pescar contigo!

Todo mundo sabe que o Manduca ficou muitos dias com dor na cabeça e meio azoretado. Nunca mais ele pescou e ficou doente até morrer!

Por isso compadre, não duvide! Vá para sua casa com a comadre Maria e descanse, outro dia o senhor vai pescar!

Todos estávamos extasiados com a história do bacurau pescador. Ninguém ousava perguntar nada mais. Os olhos estavam atentos e desconfiados buscando na escuridão da rua um vulto ou tentando ouvir um pio sombrio de bacurau. O véu do sono já anuviava nossos infantes olhos e embora caindo de sono, não nos atrevíamos a dar um passo sem a companhia de nossos pais.

Seu Miguel e dona Maria se despediram e levaram para casa seus filhos e meu velho pai fechando a porta me colocou na cama deixando a lamparina acesa sobre uma tabuinha no alto para eu finalmente adormecer. Naquela noite seu Miguel não saiu para pescar.

Não sei ao certo o motivo, nem tampouco consegui entender o que essa história significava, mas durante muitos dias minha mente ficou presa àquela noite e sempre que meu velho pai saia para pescar ela vinha a minha memória; meu velho pai sempre pescava sozinho e quase sempre à noite.