SONHOS DE UMA NOITE DE PRIMAVERA

O relógio marcava seis horas e trinta minutos. Recostado na barra do guard-rail da passarela sobre a Rodovia Anhanguera, estava eu, ainda com os olhos fixados no carro que saía do acostamento, levando a minha noiva. Ex-noiva quero dizer. Naquele momento um turbilhão de memórias tomou conta da minha mente e com elas uma música que havia sido nosso hino de amor, até aquele momento.

O nosso namoro começou como uma brincadeira de dois meninos que seguiam duas garotas na saída da escola, o ano era 1972 e eu estava com meus aflorados dezesseis anos. Não era ela quem eu deveria abordar e sim sua amiga, mas na hora H meu amigo inverteu o lado e eu fiquei com ela.

Da escola até a sua casa era uma boa distância e não havia ônibus para lá, então seguimos a pé. Naquele dia deixamos um leve beijo marcar o encontro e a possibilidade de nos revermos.

Assim foram seis anos de namoro, noivado e a preparação para o casamento. Lembrei dos vários natais, que passei com ela, a mãe e o irmão mais velho, regados apenas com um frango assado, arroz e uvas passas e a velha Cereser de maçã, comprados com o meu décimo terceiro. Nunca reclamei pelo contrário, muitas vezes trocara grandes comemorações só para ficar ali com a minha nova família. Os poucos amigos sempre reclamavam do meu afastamento, mas somente eu entendia, eu estava apaixonado e iria me casar e constituir uma família. Nada mais tinha valor para mim.

Eu não tinha automóvel, casa própria, era Auxiliar Administrativo, não havia feito faculdade e terminara o Primeiro e Segundo Grau com a antiga Madureza, não tinha família, morava numa velha pensão, mas mesmo assim eu era feliz com aquele mundo, ela era o meu mundo, até aquele fatídico dia vinte e cinco de novembro de 1978.

Com o casamento marcado para abril do ano seguinte, procurei encontrar um novo emprego, com um salário melhor e assim ter condições de alugar uma pequena casa e começar uma nova fase na minha vida.

Iria começar a trabalhar naquele dia, como era perto da casa dela, fiz a besteira de encontrá-la antes que fosse trabalhar e acompanhá-la até a Rodovia para que pegasse o ônibus da empresa. Ela não permitiu dizendo que eu deveria ir para o trabalho novo e chegar mais cedo e outras desculpas. Aceitei, mas fui até a passarela de onde poderia vê-la. Porém a cena foi digna de um final de novela mexicana. Um carro parou e ela entrou e ainda pude ver, pelo vidro traseiro, um leve beijo de bom dia e como na música do Peninha, justo quando a poesia fazia folia na minha vida, eu vi a paixão inesperada por outra pessoa.

O relógio marcava seis horas e quarenta e dois minutos, caminhei pela passarela, saí pela rua, passei pela casa dela. O velho portão, a pequena escada de quatro degraus, a varanda com o muro baixo, onde passamos tantos momentos e segui para a empresa.

No meu coração não havia revolta, talvez o maior culpado seria eu mesmo, não tinha automóvel e nem casa própria e era Auxiliar Administrativo. Como na música, que ainda me acompanhava como uma oração, ter saudade até que é bom, é melhor que caminhar vazio.

O relógio marcava vinte e duas horas e cinco minutos, um baque na porta da frente da casa dela, fez com que a lâmina de aço inox caísse, com o susto, sobre o piso de porcelanato bege. A luz do poste em frente iluminou o chão da sala e melhorou a penumbra dos outros cômodos e pude ver vultos estranhos ultrapassarem a soleira vazia da entrada e fachos de luz girando em todas as direções. Era tarde. O piso de porcelanato bege estava vermelho e pegajoso e os três corpos jaziam pela casa. Um na sala de estar, o outro na escada que levava aos quartos e na cozinha os outros dois. Um vivo e o outro sem vida.

Tudo parecia um sonho. Sentia que em breve abriria meus olhos e poderia vê-la sorrindo e abrindo seus braços para me aconchegar. A cabeça dela estava acomodada sobre a minha coxa.

- Ei, amor! Acorda temos visitas.

Enquanto um facho de luz era atirado sobre o meu rosto, o tape deck tocava a música “Sonhos” do Peninha. “Tudo era como uma brincadeira, que foi crescendo, crescendo, me absorvendo...”

Kiko Zampieri
Enviado por Kiko Zampieri em 11/08/2015
Código do texto: T5342428
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