Mais um encontro furtivo com Deus

Uma pedra no nosso sapato. A vida era tênis de marca, carrão importado e casas luxuosas. Não temos nada contra, pelo contrário, cada um gasta seu suor como quer. Para outros a vida era tiroteio no morro carioca, fugir da polícia e roubar um turista. Nada contra, cada um se fode como quer. Mas todos eles, ricos ou pobres eram como pedras no nosso sapato. Não estamos arrependidos pelos miseráveis, pelos esfomeados, pelos eligofrênicos, desajustados, prostitutas e pais de família sofredores.

Passei na padaria e comprei um cigarro com um dinheiro amassado. Não parecia que eu tinha alma e quando não se tem alma, fumar é maravilhoso. Andava pela rua, cheia de buracos. O asfalto é uma merda em todos os lugares. Não tinha ninguém no ponto de ônibus, já era tarde. Talvez mais de meia noite. Tudo em silêncio e escuridão. Eu gosto de silêncio. Quem vive bem não precisa dele. As pessoas gostam de barulho e eu era um corpo sem reflexo, me apoiava num bom silêncio

As luzes no fundo do ônibus não funcionavam muito bem. Piscavam e acendiam sem nunca se apagar nem clarear totalmente. Não havia mais ninguém ali. Sempre sentava no fundo, longe de tudo. Pus um cigarro na boca e pude ouvir o fogo crepitando o tabaco. Não havia som nenhum. Deus sentou do meu lado enquanto o ônibus chacoalhava. Ele era igualzinho aos desenhos nas igrejas. Puta estereótipo. Barba longa cinzenta, camisolão azul, cabelos rareando. Um olhar cansado, mas que passava certa confiança. E ele era branco.

"Mas o que é isso?", perguntei.

"Meu filho, eu sou Deus, como desconfio que você já saiba", disse ele calmamente. "Venho aqui para lhe oferecer uma oportunidade única"

"Se você é Deus me diga aquilo que só eu sei e ninguém mais sabe", desafiei.

"Você gosta que as putas urinem num copo pra depois você fazer milkshake de creme e mijo"

Puta que pariu! Ele é Deus. Fiquei apavorado, o que esse cara queria? Numa hora dessas!

"Ok, me convenceu. Me diga o que você quer de mim"

"Está vendo esse anel?", ele levantou uma pequena argola prateada nas mãos. "Este é o anel do poder supremo. Aquele que o usar terá poderes ilimitados e será inclusive mais poderoso do que eu".

"Você quer que eu use essa porra aí?"

"Você foi o escolhido. Sim", ele parecia meio bobo, mas era Deus, na certa sabia o que eu estava pensando.

"O Senhor sabe o que eu estou pensando, antes mesmo de eu pensar... Tem certeza que quer me dar este anel?"

"É seu, se assim o quiser", Deus esticou a mão e o anel repousava no centro de sua palma. Calmamente levei minha mão até a dele e envolvi o anel. Achei que estava sonhando, fechei os olhos, respirei fundo, dei um tempinho e contemplei o silêncio ao meu redor. Tornei a abrir meus olhos. Lá estava ele, um velho com longas barbas num pijama azul olhando pra mim com ternura. Ele era homem. E branco. Pensei que talvez se ele tivesse aparecido para um negro ele teria vindo negro.

Enfim, tomei o anel em minhas mãos e o coloquei no dedo. Era fácil de usar, bastava pensar na coisa e ela acontecia. Meu primeiro pensamento foi libertar todas as almas do Inferno. Bem, já que eu era o novo Deus, não havia motivo para essas pessoas continuarem a pagar pelo julgamento do antigo Deus. Depois aniquilei todos os anjos e santos e diabos e demônios.

O velho Deus olhou para mim com uma expressão de reprovação, mas pensei, dane-se. ele quis me dar o anel, não é? Então o mandei para o Inferno, para sofrer eternamente. Veja bem, nunca fui muito fã de Deus.

Coloquei um pedófilo para ser o bosta do papa. Coloquei fogo em hospitais infantis, enviei terremotos para asilos e creches. Torturei aleijados, fiz refinarias de petróleo explodirem pelos ares, desmembrando trabalhadores. Fiz tornados atingirem as igrejas nos domingos. Fiz malucos invadirem escolas e encherem de chumbo professores e alunos. Esposas matarem seus maridos, mães sufocarem seus filhos, irmãos devorarem uns aos outros, adolescentes explodirem seus miolos.

Sirenes, chamas, fumaças, bombas, suicídio, intolerância, violência, pragas, canibalismo, fome, doenças, cadáveres, cemitérios empanturrados de corpos. Gritos de desespero e dor, meninas estupradas, idosos espancados, recém-nascidos em chamas, choro de crianças!

Ha, é tão fácil ser Deus...