O Comprador

A noite, recém chegada, escorria das nuvens azuladas sobre a cidade barulhenta, pelos prédios espelhados e entre as pessoas apressadas tão egocêntricas e desatentas que, nem mesmo, haviam notado o anoitecer. Afinal, nada mais lhes importava, além de suas próprias vidas mesquinhas e, certamente, sem qualquer sentido. Talvez, houvesse alguns que pudessem ser tomados como exceções, mas quem se importa com isso?

Amanda era apenas mais uma. Possuía algumas particularidades interessantes, que poderiam, em algumas ocasiões, transformá-la em alguém especial, e entre elas e, sem dúvida, a mais notória, a beleza. Existem milhares, milhões de mulheres bonitas, entretanto só metade delas tem consciência disso e uma minoria quase insignificante sabe usar isso a seu favor e com desenvoltura e eficácia necessárias. Essas, como Amanda, podem manipular qualquer homem e, se quiserem, algumas mulheres também. Fazem isso sem dizer nenhuma palavra, apenas se insinuando, sorrindo, seduzindo.

Ela continuou pela rua até a esquina. Parou junto com a pequena multidão que esperava o sinal de pedestres permitir sua passagem. Segurava com força na alça de uma maleta e tentava conter sua impaciência. Os fones ocultos sob seu cabelo não paravam de lhe dar instruções, coordenadas e conselhos. Não gostava de ter tantos homens falando diretamente em seus ouvidos, como se estivessem a poucos, ou senão, nenhum centímetro deles. Na verdade, julgava tudo aquilo como pura burocracia ou alguma coisa tão inútil quanto. Não serviriam para nada, não poderiam fazer nada se algo desse errado e, muito menos, poderiam impedir seu fracasso. Tudo dependia dela e de mais ninguém.

“Verde”. Atravessou a rua confiante, estava a meia quadra do encontro. O casaco comprido e preto esvoaçava entre suas canelas. Suas bochechas estavam levemente avermelhadas por causa do frio e os olhos surpreendentemente mais azuis. Quando ganhou a calçada novamente, diminui o passo para recuperar o fôlego e espantar qualquer nervosismo. Deveria estar pronta e estava, sempre esteve.

Foi até uma pequena fila que já se formava diante da entrada de um clube. Algumas pessoas protestaram, mas ela não desfez seu semblante vítreo e arrogante. Apertou a mala entre os dedos e prosseguiu. O segurança, truculento e, provavelmente, sem cérebro, opôs-se a ela. Estufou o peito e mirou-a com um par de olhos pesados e perfurantes. Uma palavra bastou para tirá-lo do caminho. Do corredor de entrada ela olhou para trás, para as pessoas que lutavam para entrar. Conteve um risinho e subiu uma longa escada de grades de metal, barulhenta e claustrofóbica. Lá em cima já havia algumas pessoas conversando sob as luzes vermelhas e segurando taças compridas, cheias de alguma bebida alcoólica e azul. Dirigiu-se ao bar e perguntou por seu anfitrião. Um garçom careca e com sotaque francês, a levou até outra escada, mais longa do que a outra.

Subiu sem qualquer hesitação, surgiu no centro de um escritório, diante de uma mesa de madeira. O cheiro de tabaco era forte e se misturava a o cheiro de algum perfume do qual ela não se lembrava o nome. Olhou diretamente nos olhos do único homem que havia lá. Era alto, bonito e jovem. Depois do último degrau, pisou com firmeza sobre o piso de grade e sem que percebesse fecharam seus olhos com uma máscara. “Seja bem vinda”, a voz do homem lhe disse. Ela não respondeu, ficou imóvel e apurou os ouvidos, mas não ouviu nada além da voz que continuou no mesmo tom: “Dê-me a maleta e conte até dez”. Uma mão fria e macia soltou a alça de seus dedos e depois desapareceu. Sentia as vibrações da música lá embaixo e por um instante sentiu alguém acariciando seus cabelos. 7, 8, 9 e 10. Levou as mãos ao rosto e retirou a máscara. Não havia mais ninguém lá. Andou até a mesa e sobre ela havia um pequeno envelope vermelho. Os fones não paravam de falar, buzinavam sem parar a mesma pergunta, como se ela também não quisesse saber a resposta. Abriu o envelope e retirou um pequeno papel escrito à tinta preta. “Respire fundo, ele é todo seu”.

“Amanda, onde está? Ele já entregou a você? Onde está?”

Não houve resposta.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 23/06/2007
Reeditado em 24/06/2007
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