Dona Matinta

As crianças dormiam tranquilamente em suas camas desde as oito, os adultos estavam em seus quartos logo ao lado. Já havia virado rotina, eles sempre vinham, vez ou outra desapareciam no meio da semana. Era tarde da noite e o pai esperava com um olho aberto e o outro fechado a chegada do som.

Ressoou então na noite o assobio agudo e estridente acordando as crianças que correram para debaixo das cobertas dos pais. Era ela novamente. O pai levantou sarapantado, foi até a porta da estalagem com as palavras na ponta da língua.

— Passa amanhã aqui, Matinta, para pegar teu tabaco! – prometeu.

No dia seguinte alguém bate a porta, o pai e a mãe já sabem, é a senhora idosa de rosto inexpressivo e roupa negra, ela entra sem dizer uma palavra e senta à mesa. A mãe logo traz um café que é intocado pela senhora que aguarda. Ele entrega-lhe o pacote, ela verifica e vai embora.

Num dia quente em Manaus na velha estalagem brincavam as crianças, despreocupadas com o tempo. A menina fazia bonequinhas de milho enquanto os garotos jogavam bola, não tinha vento e o mormaço estava forte.

— Ei, minha filha, não vá longe! – gritou a mãe.

— Não vou não, estou indo até o campo catar milho.

Maria era seu nome, menina curiosa que só, gostava de procurar os milhos mais “cabeludos” para fazer bonecas de longos cabelos. O milharal era perto de casa então não tinha com o quê a mãe se preocupar.

Depois de achar uns milhos, a menina parou no meio do campo e uma ventania começou do nada. Um assobio enfadonho começou fazendo com que Maria tapasse os ouvidos com as mãos, não durou muito; parou. Lá no fim do milharal um pássaro levantou voo e em seguida pousou bem perto dela. Lembrava uma coruja marrom quase preto.

— Você bica? Vem cá! – disse estendendo o braço.

O pássaro enfureceu-se e bicou seu braço que ficou pingando sangue. Não voou, ficou ali olhando para os lados. De supetão uma mulher apareceu na sua frente e pegou o pássaro na mão, usava um vestido preto que arrastava as barras no chão e um capuz cobrindo seu rosto todo, dando para ver apenas um nariz saliente e uma boca enrugada.

— Mamãe está me chamando e o seu pássaro é mau!

A mãe lhe ensinava que sempre que visse um estranho dissesse que ela estava ao redor ou lhe chamando e corresse direto pra casa, mas não adiantava de qualquer forma, ela nunca corria.

— Ora, que bela garotinha. Saudável, não? Por que está aqui?

— Eu vim buscar milho.

— Escute, Uirauná, que bela voz aguda. Por que não canta pra ela?

— É o nome dele? – perguntou Maria.

— Vamos, cante!

A menina apagou.

— Maria, menina, acorda!

Sua mãe estava batendo em seu rosto para acordar. Não sabia direito o que acontecera, mas lembrava-se vagamente.

— O que aconteceu, minha filha?

— Não sei, mamãe. Lembro-me de um grito, um assobio.

— Ela estava caída no milharal, tio! – gritaram os meninos em uníssono.

— Não tinha ninguém?

— Não.

— Sim, – começou Maria – tinha uma senhora e um pássaro.

— Com um pássaro! – exclamaram.

Todos levaram as mãos à cabeça. Ficaram extasiados com o que a menina disse. O homem chamado de tio pelos garotos foi decidido até o porão da estalagem pegar sua arma, ele tinha apenas uma ideia na cabeça: matar a velha.

— Não, rapaz! Jorge, você é louco? Ela que vai te matar. – disse o pai.

— Não se pode matar uma assombração. – completou a mãe.

Ele não ouvia nada do que diziam nem desistia quando a mãe e o pai das crianças lhe seguravam tentando tomar a espingarda. Jorge abraçou Maria e enfaixando seu braço, que nenhum deles aparentemente havia percebido que estava ferido, lhe prometeu que a velha senhora não atormentaria mais ninguém.

Ele devia saber que se a enfrentasse não teria chance, mesmo assim foi até o mesmo local em busca da velha, com a arma em punhos dirigiu-se até o centro do campo, sem medo.

— Matinta, onde você está? Trouxe teu tabaco!

Nenhuma resposta. Chamou mais uma vez o nome e nada ainda. Pôs-se a berrar ali até que enfim ouviu o assobio longo e ardido da ave (ou da velha). A senhora de preto e o pássaro empoleirado em seu ombro materializaram-se a sua frente.

— Pra você. – e jogou o pacote na terra.

— Tenha modos, querido. É senhora. – disse num tom dócil.

— Maria sempre foi a mais curiosa. – sussurrou para si – Pegue esse pacote e vá-se embora, senão...

— Senão o que? Quer que eu volte a tua casa?

— Você prometeu, antes de começar a assombrar os vizinhos; prometeu que não se aproximaria de mais ninguém.

— Ora, mas a culpa não foi minha, foi de Uirauná! Não, é mesmo, seu levado? – e riu desvairadamente.

— Não se quebra uma promessa! – bradou ele.

— Dei-lhe minha palavra e sinto muito, querido, mas palavras – ela fez uma pausa – se quebram. Certo, Uirauná?

Ao falar isso o homem partiu para cima da senhora, com toda sua fúria e acertou uma bala em cheio do lado do coração. O pássaro miserável fugiu depressa, antes que pudesse segui-lo.

Matinta ergueu seu rosto, ao redor de seus olhos era lotado de rugas e não tinham íris nem pupila, um horror. Após uma careta, ela sorriu ironicamente e desfez-se em penas negras, restando apenas uma poeira no ar. Jorge não conseguia acreditar que realmente ele havia sobrevivido. Voltou para casa, orgulhoso.

Pai e mãe o abraçaram fortemente e as crianças choraram. Somente Maria que estava indecisa se chorava ou não.

Anoiteceu e lá pelas sete, o mesmo assobio de sempre cortou a noite e os meninos correram para a porta antes dos outros e lá estava o pássaro negro voando em volta da residência. Depressa veio Jorge e o pai, incrédulos com o que viam. Mas ela não havia morrido?

O pássaro simplesmente assobiava e voava acima do telhado, nada mais. Os garotos voltaram para dentro de casa e se abraçaram com Maria, tremiam de medo. Jorge lembrou – se que a ave que acompanhava a velha havia fugido, então devia ser ele a assombrar a casa. Deixaram de lado e retornaram à suas camas, exceto o vizinho Jorge, resolvera passar alguns dias ali por precaução, não demorou a buscar a espingarda, mirou e atirou em cheio no peito da ave que despencou debaixo de uma árvore, conferiu: estava morto.

De manhã bem cedo, antes de o galo cantar alguém bateu a porta, a mãe fazia um café na cozinha, hesitante, abriu a porta. Uma pena repousava no chão, mas ninguém estava ali. Temendo, chamou o marido que num pulo levantou, lá fora não havia nada além das árvores.

Maria e os meninos foram brincar no quintal de tarde, pois estavam proibidos de chegar perto do milharal. Um dos meninos acertou a bola na boneca de milho nas mãos dela jogando-a para longe, teve de ir procurar.

Jorge ainda estava na estalagem rondando a região a procura de um vestígio de Matinta. Graças a Deus, apenas uma pena restara, apesar de não saberem quem a deixara na porta da estalagem. Mas enquanto andava pelo campo de milho sentiu uma ventania insistente e algo roçando – lhe a nuca, não conseguia crer, mas materializado às suas costas estava dona Matinta, rindo descontroladamente, sem capuz, com sua face horrenda e as garras a mostra, esvoaçando penas negras ao redor de seu corpo.

A menina encontrou a boneca, no meio do mato, for a parar bem longe mesmo. Escutou um barulho e virou – se abruptamente, um pássaro quase negro dormia num galho, idêntico ao que bicara seu braço, amedrontada deu passos leves para não acorda-lo. Um estalo. Arregalou seus olhos claros sem pupilas, como os da senhora. Sumiu de lá estabanada gritando socorro, a ave a seguia, correu desesperada e de olhos fechados, acabou batendo de frente com uma pessoa, era seu tio Jorge.

— Vamos embora daqui, a velha voltou!

Foi difícil, mas conseguiu se libertar das garras dela. O pássaro passou longe e pousou no ombro da velha. Eles deviam ser imortais.

Após entrar em casa, deixar Maria, a mãe e os meninos no quarto, chamou o pai e pediu que tentasse matar o pássaro agourento com um tiro de outra arma, ele deu a volta para pegá-lo por trás enquanto Jorge apontava para a velha.

— Já chega, Matinta! – e atirou uma, duas, três vezes.

Mas não surtiu efeito algum. Atirou mais vezes e ela continuou de pé. O pai mirou sua arma no pássaro e a velha mudou sua expressão, com um grito e uma cara de espanto disse:

— Não se aproxime de meu coração, infeliz!

Coração? Jorge chegou a uma conclusão: Matinta podia se transformar numa criatura sem asas acompanhada de um pássaro pequeno de penas escuras e numa criatura com asas, um pássaro maior que assombra as casas, então, ele havia atirado antes somente nela, nas duas formas, de pássaro e de senhora, o que queria dizer que a ave Uirauná não tinha sido tocada, devia ser seu “coração”.

Não deu tempo de nenhum dos dois homens atirarem no pássaro, sumiram. Maria estava parada ao lado do tio e correu para o mato.

Ficou tão assustada com o que viu que disparou para qualquer rumo, pôs-se a chorar num canto. Uma voz falava de algum lugar.

— Tenho um presente. Quem quer? Quem quer?

Era a voz de seu tio Jorge. Curiosa, parou de chorar e respondeu virando – se para trás.

— Eu… eu quero, tio!

Uma risada invadiu o local e a menina voltou para os braços de Jorge que a procurava junto do pai.

— Eu quero, eu quero, tio!

— Ela irá embora, está bem? – tranquilizou-a.

Jorge manteve – se sentado no campo por horas e como esperado, Matinta voltou.

— Esqueceu meu tabaco, querido!

— Não, aqui está – jogou um grande saco no chão – dez quilos. Pegue e suma.

— Ora, mas vocês me desrespeitaram, agora tenho que levar alguém junto.

— Junto? – espantou-se.

— Sim, estou de partida. Até logo. – disse acenando.

Fitava – o com seus terríveis olhos. Ele atirou em sua cabeça e em seguida no pássaro com uma pistola que estava escondendo no milharal, a velha fixou- se ali, nem mais um passo deu.

— Prometa… - e ela e o tal Uirauná explodiram em penas.

Seria o fim?

No dia seguinte após toda aquela bagunça, levantou a mãe para fazer um café, depois chamou as crianças, só os meninos vieram.

— Onde está Maria? – perguntou.

— Sumiu. – disseram.

Os pais e Jorge entraram em desespero, não conseguiam achá-la em canto algum. Anoiteceu mais uma vez. Dormiam todos até que começaram a ouvir um assobio longo, uma sensação ruim correu pelo corpo dos pais, a mulher ainda estava assombrando – os então.

Jorge tinha voltado para sua casa, era irmão da mãe de Maria, a pequena sobrinha que não conseguia nem dormir por lembrar-se dela.

Bateram na porta. Provavelmente seriam os pais de Maria, talvez tivessem a encontrado. Esperançoso, foi depressa abrir a porta. Mas quem estava parada lá era Matinta Pereira, a velha que os assombrara.

Definitivamente, ela devia ser imortal. Não havia mais o que fazer para livrar – se.

Matinta moveu – se e disse logo depois:

— Esqueci meu tabaco… tio.

Anna Julia Dannala
Enviado por Anna Julia Dannala em 01/10/2015
Código do texto: T5400836
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