O Tamarú encantado - Pescaria em dia santo.

O Tamarú encantado - Pescaria em dia santo.

Por Fernando Silva.

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O ano não lembro, pois menino eu era, de uns cinco, seis ou sete talvez. Era manhã de Domingo de Páscoa. Como de costume a vila inteira ia à missa. O padre vinha para essas bandas, sabe-se lá a razão, duas ou três vezes ao ano. A imensidão de areia que se aglutinava em altas dunas parecia tão extensa como o mar, e o sol da manhã reluzente já se fazia. Na enseada, paradas, algumas igarités e montarias solitárias quase à marca da maré. Os barcos motorizados jaziam todos em seco com seus cascos craquentos à vista.

Foi nesse dia que o velho Piquiá, como era chamado o seu Rufino pelos mais chegados, resolveu deixar para trás a tradição e conselhos de seus pais e desafiar a crendice dos mais velhos que davam conta de que se devia guardar “dia santo”. Dizia consigo mesmo – dia santo é todo dia! – e assim, munido de linhas e anzóis saiu dizendo à sua companheira que iria pegar uma “boia”, ali na boca do baixo.

Ela, senhora de seus mais de cinquenta anos de vida e tantos outros de lida, analfabeta de letra, mas mestra na fé e devota da Virgem, ainda passou-lhe um ralho na ânsia de dissuadir o companheiro, mas ele, teimoso como era, lá se foi. Levava consigo num paneiro as linhas, uma peixeira no cós, chapéu de palha já esfiapado pelo tempo e um remo às costas. Saiu para uma pesca de bagres na enseada.

Antes de empurrar a canoa para a água, pois esta estava atada quase na marca da maré, entrou no capinzal para tirar uns tamarús que usaria como isca. Encheu o fundo do velho chapéu com tamarús e voltou para lançar a montaria na água. Por pouco não desistiu, pois a canoa estava com o casco fincado na areia como se dormisse numa cama. Piquiá sentou-se à popa e pôs-se a sacudir até que a canoa finalmente despertou de seu repouso. A maré vazava ainda e daria bem tempo de pescar o restinho da vazante e pegar a reponta na boca do baixo quando os bagres vinham entrando famintos na comidia.

Com sacrifício rolou a montaria até a água e se foi. Não havia naquele dia viva alma na beira da praia. Até mesmo as garças, guarás e maçaricos pareciam guardar o dia santo, mas Piquiá estava inclinado a pescar uns bagres gordos e nada o impediria de cumprir seu propósito. Remou ao sabor da correnteza e logo chegou ao ponto em que fazia um grande remanso e ali lançou vagarosamente a âncora para não espantar o peixe. Sentiu o ferro tocar o leito do baixo e unhar no fundo.

Lembrara-se que não trouxera uma garrafa de água para beber, por sorte trouxe tabaco e resolveu enrolar um cigarro antes de lançar o anzol na água. Fazia isso como um rito inconsciente pelos anos que se repetiam desde que tinha doze ou treze de idade. Acendeu o cigarro e sentou-se sobre o bailéu da proa para conferir se a âncora estava firme e logo voltou para a popa para finalmente lançar a linha. Escolheu uma linha zero cinquenta com anzol canhoto de número treze. Pegou um roliço tamarú e balbuciando uma reza pedindo boa sorte, lançou a linha não muito longe da borda da montaria. Sentiu a linha deslizar suavemente e tocar o fundo do rio.

Logo que a linha tesou o velho se demorou com ela à mão por um ou dois minutos; não sentindo sequer um beliscão na isca, prendeu a linha entre os dedos do pé e inclinou-se para secar água da montaria. Resmungava que a mesma parecia ter uma nascente no casco já fazia um tempo e ele nunca mais tivera jeito de calafetar. Faria isso no outro dia e acabaria com aquela consumição.

Mal inclinou-se para esse ofício quando sentiu um puxão na linha que quase lhe decepava o dedo; de súbito passou a mão na linha e fisgou o peixe ou o que quer que tenha puxado a linha com tamanha violência. Sentiu o peixe tremer no anzol e fazer carreira tomando linha.

Experiente pescador, o velho sabia que podia se tratar de um peixe maior do que a resistência da linha e do anzol e logo desvencilhou o carretel e imprimiu uma luta com o peixe. Pensava consigo que poderia se tratar de uma arraia e que se fizesse força perderia o anzol e quem sabe até a linha. Deu linha sempre investindo também certa resistência. Sentia a linha deslizar como se fosse cortar seus dedos. Já se dava por vencido e teria a linha perdida quando o peixe resolveu parar de puxar. Sentiu apenas o peso firme na linha e aos poucos veio puxando ao que não sofreu obstáculo algum.

Puxava com certa cautela a linha e já planejava como faria para dominar e embarcar aquele peixe; conferiu a peixeira no cós e buscou embaixo do bailéu um anzol número cinco com estrovo de nylon trinta e seis, preparado especialmente para essas ocasiões de ter que lutar com um peixe grande; Já havia puxado seguramente uns noventa metros de linha quando sentiu o animal empreender resistência. Não puxando a linha, mas também não permitindo ser puxado. Ficou com se estivesse estacionado ou mesmo enrolado em um pau no fundo.

O velho Piquiá conhecia toda espécie de peixe. Já fisgara mero, arraias sem conta, pescada amarela, gurijubas, uritingas, tacariunas e tantos outros. Lembrara-se que quando menino passou por maus bocados com uma pirapema e outra vez com xaréus e sacurís. Nunca houve um peixe que o vencesse em astúcia e nem mesmo em força. Perdera a conta de quantas dúzias de bagres e pacamuns já pescara.

Sentindo que o peixe havia parado subitamente e que não fazia força para tornar a correr, resolveu folgar um pouco a linha e esperar uma possível reação. Esteve assim por uns dez minutos. Não sentindo movimento na linha tesou-a e sentiu que estava leve; puxou um pouco mais de pressa e imaginou que o peixe tivesse soltado do anzol; fugiu ou cortou a linha!

Já resmungava indignado por ter perdido o anzol quando sentiu novamente um peso enorme tesar a linha e empreender carreira. Dessa vez sentiu a linha cortar seus dedos e ouviu o silvo da linha como uma corda de violão desafinado. Assustado e muito afoito soltou a linha e lançou a mão ao carretel que já estava com poucos metros de linha. Nesse momento lhe veio à cabeça que perderia o peixe com toda a linha e carretel. Esperando o pior o velho sentiu novamente o peixe parar de correr e sentiu as pernas bambearem quase jogando-o na água. Equilibrou-se sentando-se de mau jeito na popa.

Como o animal havia parado de nadar e puxar a linha, Piquiá sentou-se no bailéu e se pôs a puxar suavemente a linha e percebeu que o peixe não lhe fez resistência. Mas temendo que o mesmo usasse de astúcia como havia feito anteriormente, pensou em cortar a linha e deixa-lo escapar. Porém, lhe ocorreu de puxar a âncora e ficando a canoa à deriva teria condições de lutar mais facilmente com o animal.

Com cautela se deslocou até a proa sempre com a linha firme em uma das mãos, resolveu puxar a amarra embarcando a âncora. Estava decidido a lutar com aquele peixe e leva-lo para casa para depois contar dos seus feitos de bom pescador que era. Com a montaria livre de amarras ficou o velho sentado sobre o bailéu da proa e começou a içar o peixe que aqui e ali esboçava uma reação, mas ao que parecia já vencido.

Novamente, com a linha muito próxima de terminar, o velho Piquiá já comemorava a vitória sobre aquele peixe; não tardaria a avistar sobre a flor d’água a criatura que o desafiara. Havia finalmente se dado por vencido. Não era páreo para a astúcia e tampouco a destreza do velho Rufino de Farias. Gozava de seus mais de sessenta anos de pescaria e dava-se ao privilégio de nunca ter perdido uma batalha para um peixe; não importava o tamanho ou a força que tivesse; pescador desde menino, criado no fundo de uma canoa, como costumava dizer; jamais perderia aquela batalha.

Tinha umas duas ou três braças de linha na água; não dava para ver o peixe, pois a água estava turva devido à maré baixa. Com o fisgador atado ao dormente da montaria, já se preparava para o golpe final quando sentiu um enorme peso na linha; dessa vez sentiu como se o animal tivesse uma tonelada ou mais. Temeu por um minuto que aquele animal fosse um tubarão pintado. Quando menino ouvira falar de tal criatura. Não podia acreditar nisso, visto que tal animal habita no leito profundo dos oceanos e que ali naquela enseada não teria a menor condição de estar.

Recobrou o tino quando o animal imprimiu novamente força e desabalou em direção à cabeceira do rio. O velho afoito e tomado de um pavor sem igual amarrou o carretel de linha ao dormente da montaria e passou a segurar na tentativa de freá-lo; já imaginava que o bicho estaria em maus lençóis, pois havia rumado para dentro da enseada e iria dar em um banco de areia vindo finalmente a encerrar seus dias.

O peixe seguiu essa direção até tomar, novamente, quase que por completa toda a linha de que dispunha no carretel. Parou como antes, subitamente e posto que, parece sentindo-se encurralado quase no fim da enseada, fez-se em direção contrária com tamanha velocidade que nem dera tempo do velho pescador pensar em uma reação. Seguiu dessa vez arrastando a montaria até a boca da enseada onde parou.

O velho Rufino agora estava tomado de um grande pavor e não mais acreditava que aquilo seria um peixe. O sol já se fazia à pino e a maré já enchia quando ele tomado de medo passou a mão ao cós e sacando a peixeira intencionou cortar a linha e deixar o peixe ou o que quer que aquilo fosse, ir embora. Quando ia cortar a linha sentiu-a completamente bamba e pensou que finalmente o bicho a tivesse rompido.

Sem pestanejar lançou-se a puxar rapidamente o pedaço de linha que ficara; sentia a cabeça doer; certamente pelo sol demasiadamente quente e pela sede que sentia. Puxou a linha tranquilamente até que sentiu-a tesar outra vez. Já havia até deixado a faca de lado quando sentiu a resistência da linha. Buscou com a vista e vendo-a debaixo do banco do meio abaixou-se para pegar a fim de cortar a linha. Já não queria mais saber daquele peixe. Sua alma estava tomada de um remorso sem igual.

Ao alcançar a faca, o animal subitamente fez força como que sacolejando a pequena montaria, e assustado, o velho Piquiá deixou a faca cair no mar. Agora não tinha como cortar a linha; torcia para que o animal estourasse a mesma ou quebrasse o anzol; sabia ele de alguma forma que não se tratava de um peixe comum. Em sua memória os pensamentos não se encontravam e seus lábios já balbuciavam uma reza desencontrada de “cren deus padre”; esconjurava aquele peixe ou o que fosse. O animal agora não parava de correr com a linha tesa e rebocando a pequena montaria da boca até a cabeceira da enseada em uma jornada desesperada.

A maré já boiara os barcos e na praia muitos já acorriam para ver mais de perto o que estava acontecendo com o velho Piquiá. A meninada alardeara logo após o término da missa que algo estranho estava havendo, pois avistaram a pequena montaria dar voltas da cabeceira à boca do baixo várias vezes e não se via ninguém remando. Aquilo não era nada trivial e já preocupava a companheira do velho Rufino que acudia aos parentes para irem ver o que seria.

Alguns donos de barcos motorizados relutavam em sair, afinal era “dia santo” e não iriam se arriscar; Deus ainda havia de castigar ou mesmo o padre poderia não ficar gostando daquilo. Ainda assim, apelando aos conselhos do vigário que dizia que Jesus perdoava se fosse para socorrer uma alma em aflição; saíram em três barcos ao encontro do velho pescador. Não tardaram em abalroar à montaria encontrando o velho visivelmente abatido e que dizia aos gritos que havia fisgado um peixe que o estava molestando desde cedo.

Nisso se armou uma estratégia de lançarem as redes à frente da montaria a fim de que quando o peixe corresse não tivesse como escapar das redes. Certamente, se aquilo fosse um espadarte ficaria enrolado nas redes de nylon pescadeiras. Assim se fez; um dos barcos indo à diante lançou as redes e outro fez o mesmo atrás da montaria para o caso do peixe resolver mudar de direção. De qualquer forma não escaparia.

O assombro tomou conta de todos quando o animal arrastando a montaria em direção a uma das redes, passou por ela como um raio corta os céus em dias de tempestade. Ninguém podia acreditar que o peixe passara pelas redes e nem mesmo a linha se embaraçara nelas. Logo o pavor se apossou do arrás de um dos barcos que ordenou que puxassem as redes e voltassem à praia. O mesmo se deu com os outros barcos que viram quando a montaria do velho Piquiá passou por suas redes como um fantasma.

Um dos barcos pediu ao velho Rufino que jogasse uma corda para que o pudessem rebocar e que deixasse a linha que certamente arrebentaria com a força do motor puxando a pequena canoa. O velho não hesitou, lançou a corda da âncora que logo foi atada à popa do barco que o levou em direção à praia. Ele sentado à popa de sua velha montaria apenas pilotava com o remo não se importando mais com a linha.

Ao chegar à beira da praia metade do vilarejo estava à espera para saberem o que tinha se dado. O velho Rufino, muito abatido, com o rosto desfigurado ainda sentado à popa da canoa olhou pela última vez sua linha atada ao dormente e puxando-a viu o tamarú intacto, tal qual havia colocado no anzol desde aquela manhã e que seguramente havia ficado dentro d’água umas três ou quatro horas de tempo. Não havia na isca marca alguma de que algum peixe o tivesse sequer beliscado.

Piquiá foi tomado de uma febre, e grande pavor estava em seus olhos. O padre ainda fora vê-lo e rezar com ele. Tinha os olhos turvos como as águas do embarreirado. Seus lábios não diziam nenhuma palavra e todos murmuravam que aquilo teria sido um castigo por ele ter desrespeitado o “dia santo”. Naquela mesma tarde o velho Rufino Farias partiu para outro plano, deixando para trás sua mantaria, paneiro, linhas e sua misteriosa aventura de pescaria.

Carpina
Enviado por Carpina em 05/10/2015
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