Não é Bom Sonhar

Miguel acorda mais uma vez. Tão assustador que achou que ia cair da cama. Olhou assustado para os lados esperando achar o quarto como tinha deixado, quieto e um pouco bagunçado. Passou a mão nos cabelos e lembrou do sonho: uma onda gigante vindo em sua direção. Foi até o banheiro, antes conferindo a hora no celular:

04:00

Era madrugada de segunda-feira, logo estaria de pé para ir trabalhar, mas estava exausto. Caiu na cama e dormir novamente. Pouco tempo depois, o alarme dispara, ele abre os olhos:

06:00

Levantou de uma vez. Pegou o ônibus perto de casa. No canto do coletivo, a janela, ficou a observar sua cidade, admirando-a, WaveVille. Desceu depois de longos seis quarteirões, próximo ao Centro Comunitário onde trabalhava. Comprou dois cafés, um para ele e outro para Renata, a moça simpática do prédio.

- Bom dia - disse Miguel estendendo o copo de café.

- Bom dia! - sorriu ela - Mais um café? Assim você me acostuma mal.

Era a mulher mais linda que ele conhecera desde que entrou nesse emprego. Morena, olhos amendoados e castanhos adornando o rosto longo e delicadamente desenhado com um sorriso irresistível. Depois do elevador seriam somente colegas de trabalho, e fora, Miguel queria que fossem algo mais. Era terminantemente proibido qualquer tipo de

demonstrações de afeto dentro do prédio. Miguel atendia pessoas com deficiências, mas de vez em quando lançava uns olhares furtivos em direção a mesa da pretendente. Nunca tinha criado coragem suficiente

para conversar. Um homem cego o assustou quando bateu a bengala em sua mesa, uma mulher o acompanhava. E de repente, a mesa, o teto e o chão começaram a tremer, os quadros balançavam freneticamente. Ao olhar na direção da vasta janela com cortinas, Miguel viu uma onda gigante. Acordou. Um sonho dentro de outro sonho. Pegou rapidamente o celular:

06:57

Depois percebeu o coração acelerado por causa do sonho. Mas ignorou porque estava mais do que atrasado e poderia ser chamado a atenção pelo atraso. Correu atrás do ônibus e ainda conseguiu alcançá-lo, ficou em pé, sem o seu lugar preferido na janela. Aquele sonho tinha pego todos os detalhes do seu cotidiano. Quando o elevador abriu, Miguel

estava ofegante e suado sob a roupa e com dois cafés em mãos. Enquanto ajeitava a gravata foi surpreendido por Renata.

- Miguel, achava que você não vinha... - ela timidamente colocou uma mecha atrás da orelha - quer dizer, que eu não ter meu café hoje...

Enfim, ela tinha falado algo diferente ou pelo menos gostava do café que ele lhe trazia.

- Espero que goste! - respondeu Miguel.

Só depois que sentou na cadeira que pensou melhor no que tinha dito e se arrependeu. Poderia ter dito mil coisas ou até tê-la chamado para sair como vinha planejando fazia tempo, mas então flashs do sonhos aparecem e o desconcentra, ele olha para a janela e tem a sensação de deja vu. Jefrey, um amigo e colega do prédio o chama:

- Miguel... eu... Miguel?

- Hã?

- Você poderia me emprestar seu apontador é que...

- Claro, claro.

Jefrey franziu as sobrancelhas percebendo que tinha alguma coisa errada, afinal era Miguel quem lhe dava uma boa bronca por não cuidar do seu material de trabalho, da ultima vez havia perdido a calculadora. Mas, deixando aqueles pensamentos bobos, Miguel atende a primeira pessoa, uma senhora simpática. E chegou a ser elogiado.

- Sua voz é muito bonita!

- Obrigado.

- Você também deve ser muito bonito!

A senhora era cega e mesmo assim Miguel era acanhado. Recebeu o elogio sentindo sinceridade e também uma pontada de malicia, mas sendo suficiente para deixá-lo descontraído. Escreveu em um papel e a entregou avisando que deveria voltar ao prédio após 30 dias. Ao terminar o expediente, Jefrey percebe o semblante do amigo, aparentemente calmo, e acena. Miguel é um rapaz de 20 anos que ainda mora com sua mãe, mas que planeja alugar um apartamento mais próximo do trabalho. Já sua mãe, Marta, não concorda e ele tem sempre que explicar que vem visitá-la. Mais uma rotina se passou e tudo o que ele queria era trancar a porta do quarto e não ver mais ninguém. Livrou-se das roupas suadas e caiu na cama exausto. Ao abrir os olhos estava submerso, ao lado de pessoas submersas. A caminho do trabalho ficou pensativo e um pouco intrigado com os últimos sonhos. Pelo que se recordava não havia assistido nenhum filme com o tema. Pagou dois cafés na barraca da esquina, e antes que fosse embora o vendedor agradeceu a preferência, mas Miguel

não entendeu, as palavras dele saíram embaralhadas como se estivesse embaixo d'água. Confuso, perguntou de novo e as palavras saíram normalmente, porém aquilo o assustou. Deixou o café na mesa de Renata e seguiu apressadamente para sua mesa. Ligou o computador e pesquisou na internet significado de sonhos. Sonhar com ondas. E de acordo com o site sonhar com ondas previa-se a chegada de problemas, e dependendo do tamanho seriam grandes problemas, a força delas seriam o tamanho do impacto na vida de quem sonhou,

mas assim como ondas vem e vão, os problemas seriam solucionados.

Não demorou muito para que aparecesse a próxima pessoa para ser atendida. Renata olhou Miguel por cima do muro que a dividia. Mesmo com a tal resposta, Miguel se sentiu incomodado com aqueles sonhos. Olhando bem a onda deveria ser um problemão... algo haver com o chefe?

No dia seguinte acordou perturbado e estressado. Dessa vez sonhou sua mãe sucumbindo as águas medonhas. Quando sonhos com a mesma temática são meras coincidências? Xingou todo o vocabulário que existia e inventou mais. Não conseguindo mais dormir levantou-se, e sem que sua mãe notasse, ficou a observando fazer o café: cabelo bagunçado, um blusão de time cobrindo parte do seu quadril e um short velho. Ao se virar, ela flagrou o filho:

- Miguel? - perguntou surpresa - O que está fazendo aí parado?

- Hã? Nada

- Quer tomar um café hoje aqui?

- Adoraria... mas tenho que chegar mais cedo hoje, ganhar pontos com o chefe.

Ela sorriu. Tal expressão surtiu um alivio instantaneo no coração do filho. Ele pegou sua mochila e alguns acessórios.

- Tenha um bom dia! - ele puxou a maçaneta da porta, mas ela interrompeu.

- Para você também... eu te amo, filho.

- Eu também te amo, mãe... - largou a maçaneta e a abraçou, era mais alto seu queixo se encaixava com os cabelos perfumados, depois beijou-a na testa. Passou pela barraca e pensou em levar os dois cafés, mas se tivesse problemas com o chefe aquela onda viria, então achou melhor não arriscar. O elevador se abriu: Miguel estava sério e concentrado. Jefrey notou uma diferença, apenas um café. Ele ligou a máquina, deixou a mochila encima da mesa na lateral e começou a formular os cadastros do prédio. Bebeu um gole de café e o deixou proximo de si.

- E ai, Miguel? - aproximou-se Jefrey. O rapaz de oculos quadrados, magrinho e inteligente - tudo bem?

- Jefrey - ele ao menos olhou - tudo bem... e você?

- Só um café?

Miguel suspirou. Complicado explicar o motivo, e imagine para Renata se viesse perguntar. Se

- Pois é... meu sistema capitalista estava baixo.

- O que aconteceu? - insistiu Jefrey.

- Nada, cara

- Beleza - Jefrey se afastou.

Em meio a uma decisão cirrada de falar sobre o que o perturbava, Renata chama por ele.

- Bom dia, Miguel

- Bom dia, Renata - balbuciou - tudo bem?

- Quer uma ajuda?

De inicio, estranhou a pergunta, mas depois se deu conta de que ou ela estava querendo compensar os cafezinhos ou que estava sentindo falta de um, aquele que ele escolheu não comprar hoje.

- Não, está tudo em ordem, agora. Tudo bem.

- Está bem - ela sorriu sem graça.

Miguel prendeu a respiração e depois soltou quando ela saiu. Primeiro: não trouxe o café porque provavelmente estava incomodando o chefe com essas demonstrações de afeto dentro do ambiente de trabalho, e segundo, que aqueles sonhos estavam o atormentando. Em meio ao fluxo de pensamentos, pediu licença ao casal que estava atendendo para ir rapidamente no banheiro. No momento em que urinava tentou não pensar no assunto. Sentiu alivio porque estava muito apertado. Fechou o zíper. Abriu a torneira para lavar as mãos. Uma pequena janela que dava para fora do prédio iluminava parcialmente o banheiro, quando ele olhou: uma mulher morta boiando com os olhos fixos nele. Miguel quase derruba a porta do banheiro e acabou dando de cara com Renata.

- Miguel? Tudo bem?

Miguel não deu ouvidos, antes estava muito assustado.

- Miguel!

O casal que era para ser atendido ficou apenas olhando quando ele saiu pela porta.

- Miguel! - Jefrey o interrompeu - O que você tem?

- Não sei, não sei - repetia ele.

- Antes me diga o que é...

- Me deixa ir!

- Você não trouxe café para Renata e andou meio estranho esses dias... O que...

- São pesadelos. Estou tendo pesadelos!

- Como é? - estranhou seu amigo.

- Eu vi uma onda gigante vir atrás de mim e acabava com todo mundo.

- Miguel, você fumou? Está usando pó? São só sonhos, Miguel.

Quando ergueu a cabeça, Miguel viu a porta se abrir violentamente pela força da água. Jogou Jefrey contra a parede e saiu para calçada pela porta dos fundos. Em vez de água, ele sentiu uma brisa em seu rosto suado. O céu parcialmente nublado e seu coração parecia

sair pela boca. E antes que saisse sem rumo, desorientado pelas visões mais frequentes, ele escutou Renata chamá-lo mais uma vez. Olhou.

- O que foi? Miguel? Por que você está fugindo de mim?

- Não, não é isso... - ele baixou a cabeça - eu só quero ir para casa, por favor

- Por que você quer ir para casa?

- Eu não quero lhe causar problemas com o chefe...

- Mas, Miguel...

Miguel desejava continuar falando até que sentiu sua garganta se fechar, e ela o viu cair no chão, pálido e as orbitas brancas dos olhos expostas. Jefrey que observava a cena de longe, correu na direção do amigo e a ultima coisa que Miguel escutou foi a sirene de uma ambulância.

Foi somente enquanto não via nada e não escutava nada que sentiu segurança. Sem pesadelos, sem medo. Mas, o silencio durou pouco, até começar a escutar ruídos, vozes, e aos poucos abria os olhos. Foi só um pesadelo? pensou.

- Como está se sentindo, rapaz? - disse um medico ao seu lado.

Logo Miguel enxergou Jefrey pela janela da vigia, o olhando preocupado, imaginou também se Renata estaria ali.

"Jefrey, depois me liga me dizendo como ele está, viu? Até mais" Renata falou ao celular.

A televisão suspensa na parede dava um plantão:

"Recebemos um alerta para risco de tsunami. Tsunamis não possuem sistema de rastreamento como na meteorologia, mas é possível que uma onda gigante se forme após a erupção de um vulcão submerso em um ilha próxima da cidade (...)"

No mesmo instante, Jefrey olhou para o amigo paciente que estava dentro do quarto cheio de agulhas perfurando seu pulso, enfim havia entendido a aflição.

- Não posso ficar aqui! - Miguel ficou nervoso.

- Seu cérebro apagou! Calma! Você precisa de no minimo 24 horas de repouso - avisou o médico.

Quando acordou, Miguel se viu sozinho no quarto. Retirou os aparelhos de suas mãos e pegou carona com Jefrey até sua casa.

- Temos que sair daqui, mãe - avisou Miguel.

- Sair pra onde? - indagou Marta.

- Mas, você nem sabe se essa onda vem mesmo pra cá... - comentou Jefrey.

- O quê? Que história é essa?

- É uma longa história, mãe - respondeu Miguel.

Jefrey ficou do lado de fora esperando, enquanto que Miguel e sua mãe arrumavam rapidamente as malas e alguns caixotes com pertences importantes, mas a maioria ficaria porque não dava para levar no carro pequeno, e com a noticia iminente de desastre para se programarem. Antes de desligar a TV, Miguel viu o noticiário: ventos de 200km por hora varriam o litoral em direção ao sudeste da capital, onde Renata morava. Seus pesadelos e visões apareceram de novo. Sua mãe descia as escadas com as mãos ocupadas, quando escutaram um barulho crescente vindo do lado de fora, Jefrey chegou assustado até a varanda e apontou para o céu: um sistema negro de nuvens se aproximava. A mãe de Jefrey, dona Monroe estava desesperada dentro do carro acenando para que eles se apressassem. Um jornal molhado foi arrastado em direção a tempestade.

No carro quatro pessoas: Miguel, Marta, Jefrey e Monroe.

- A avenida principal está congestionada - avisou Jefrey - mas se pegarmos a pista

contrária sairemos antes deles.

- Espera! - disse Miguel - Vamos pegar Renata.

- Não há tempo, cara, a essa hora eles devem ter saído de lá e se voltarmos vamos morrer

- Calma, filho - murmurou Marta

Uma chuva pesada começou a cair dificultando a visão da pista, o para-brisa parecia não resolver. Uma arvore foi atingida por um poste e ambos caem no mesmo instante que o carro atravessa a pista, o incidente acaba desorientado o motorista que gira o volante para a direita e caem em uma estrada lamacenta. O pneu afunda, mas ele acelera.

- Liga o radio - pediu Miguel.

"A chegada iminente de um furacão andou causando estragos por onde passou e agora, vem provocando turbulência no transito da cidade de WaveVille. Ao que tudo indica que se depender do transito, as pessoas serão alcançadas não só pela tempestade como também pela onda que fica maior a medida que se aproxima do litoral. E com a força dos ventos ela pode chegar a qualquer

momento(...)"

Miguel sentiu a garganta apertar, quase sufocando-se. Jefrey conseguiu enxergar a linha da pista embaixo, pisou com força no acelerador que o carro caiu violentamente no piso de concreto.

- Conseguimos - disse ele olhando pelo retrovisor, a cena escura por cima da cidade.

- Só vamos ter certeza quando tudo isso passar

Marta ficou olhando para trás vendo seu antigo lar ser destruído, olhando com terror e pena

ao mesmo tempo.

- Você foi abençoado com um dom, meu filho - disse Monroe

- Não me diga

- Você salvou nossas vidas, do contrário estaríamos morrendo agora. Você não deve ignorar os...

- Mamãe agora não tá?! - interrompeu Jefrey, sabendo do seu lado supersticioso.

As arvores se sacudiam, e no meio de algumas delas viram um posto de gasolina, daqueles que você abastece o carro e se abastece, tanto em combustível como em bebida, mulheres. Desceram do carro. Os empregados pareciam não se importar com a chegada da tempestade,

tudo em que estavam concentrados era no seu pagamento, portanto quem não trabalhasse não ganhava. O pequeno bar se resumia a cinco mesas redondas com banquinhos velhos, um extenso balcão mais na frente e longas prateleiras com bebidas antigas. Em uma dessas mesas, havia um grupo jogando cartas e se entupindo com a fumaça de cigarros.

- O que vão pedir? - perguntou o dono do bar. Sujeito de aparência grosseira, sobrancelhas e bigode espessos com um charuto na boca e uma camiseta velha.

- Tem água? - disse Miguel. Jefrey estava na retaguarda de Monroe e Marta.

O grupo lançava olhares curiosos.

- Dez pratas

- Como?

- Dez pratas - respondeu o homem mordendo o charuto.

Miguel, de inicio não quis dar o dinheiro, mas como estava estressado demais naquele dia, entregou o dinheiro ao homem. Sua mãe chegou de mansinho e cochichou no seu ouvido querendo saber onde era o banheiro. Eles ficaram do lado de fora esperando, observando as nuvens negras se aproximarem. Ao voltarem para o carro, a viagem se seguiu em um misto de pressa e silêncio perturbador. O sinal da rádio mal sintonizava, mas era possível ouvir:

"É impressionante a força com que onda destrói tudo pela frente(...)"

Finalmente seu pesadelo se tornou verdade. Infelizmente, pensou Miguel. Ficou perplexo e calado por um bom tempo.

"(...) a cidade está sendo varrida por todos os lados: ruas alagadas, casas inundadas, as arvores que foram arrancadas agora boiam na superfície. É difícil achar alguém que tenha sobrevivido..."

Jefrey desligou o rádio. Miguel fechou os olhos na tentativa de descansar um pouco, havia dias que não dormia direito, mas imaginou Renata, não como gostaria, mas afogada e sem vida. Seus ombros subiram e desceram e se perguntou até quando duraria aquele momento. Breve iria descobrir.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 09/10/2015
Reeditado em 01/11/2015
Código do texto: T5409335
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