O menino que virou caranguejo

O menino que virou caranguejo

Por Fernando Silva

Fazia três dias que o menino nada comia e duas noites que não dormia e sequer deixava alguém pregar os olhos, como se dizia. Andava por toda a casa, sempre com o olhar perdido em algum lugar vazio. Não falava uma só palavra. Por vezes balbuciava sons ininteligíveis e sussurros sombrios tal canto fúnebre.

Dona Tomásia, a mãe, senhora já idosa lá na casa dos cinquenta e tantos anos, passava horas à fio tentando, em vão, agradar e fazer comer o menino. Era preciso muita atenção, pois o infante, ao fim do dia, queria sair correndo em direção à “pancada”, como se ouvisse o chamado de alguém. Era uma luta conter o “acesso” do garoto. Naqueles dias, uma única vez foi possível banhá-lo. Muitos vizinhos acudiam a toda instante a pobre Tomásia, que já sem forças não sabia o que mais fazer pelo filho.

O menino era tomado de uma força brutal. Não era agressivo, mas não cedia aos quereres de sua velha mãe nem de ninguém que o quisesse contê-lo. Como não se sabia o que fazer, chamaram rezadeiras, pajés e até umbandistas para benzer o menino na tentativa de curá-lo daquele mal. Nada conseguia quebrar aquele feitiço que se apossara dele.

Muitas pessoas alheias à pequena vila indagavam o que sucedera com o menino. Apesar de todos ali terem vivenciado os fatos, as respostas obtidas eram muito variadas. Por vezes, tão perdidas quanto o olhar do infante.

O menino devia ter uns dez anos. Sua mãe já o tivera na sua quase velhice. O pai havia morrido fazia uns três anos e a pobre Tomásia cuidava do seu único filho ao qual dedicava o seu precioso tempo. Ele era um menino esperto. Apesar de não frequentar escola, sabia ler, pois a mãe o ensinara numa velha carta de ABC e também fazia muitos cálculos de cabeça como se dizia. Jogava bola com as outras crianças e tinha por costume fazer arapucas e armar laços para pegar saracuras e maçaricos.

Tudo sucedera, diziam, quando um dia o menino teria sumido. Dizia-se também que ele ficara assim depois de ter vindo lá das bandas do poço da campina já depois das seis da tarde; embora algumas vezes se dizia que tudo se dera após uma forte febre que o acometera após teimar em correr atrás de “caranguejo-feiticeiro” na pancada. Outros ainda afirmavam que o garoto teria sido flechado por matinta de tanto que vivia armando arapucas para saracuras na hora de meio-dia.

Os mais velhos sempre aconselhavam que não se podia estar no mangal ou pela pancada nessas horas. Meio dia é hora sagrada e as almas andam no mundo. É a hora delas. Não é bom duvidar das coisas. Também não é aconselhável ir lá para o poço da campina perto das seis da tarde.

Desses conselhos dona Tomásia repetidas vezes ralhara o filho para não sair de casa naquelas horas. Falava isso como um presságio que algo viria a acontecer com seu menino. Ela, sempre que podia jamais se descuidava do filho e nem deixava que este contraviesse tais conselhos. Por vezes fazia o menino entreter-se com alguma tarefa de casa para que não viesse a fugir de sua vista nesses horários.

Todos os cuidados da mãe não foram suficientes para evitar o que se dera com o garoto num daqueles dias. Envolta com afazeres de casa e desatenta do filho, não viu a hora em que ele saiu em direção à Ponta, rumo à campina. Não era preocupada em demasia, pois o menino era conhecido por todos e na sua maioria havia entre eles certo grau de parentesco. Ninguém o faria mal. Razão pela qual deixava o filho a brincar com os primos e outros. A comunidade era pequena e não se podia perder alguém por lá, a não ser que caísse na maré lá no embarreirado e não soubesse nadar. O menino nunca ia para lá sem que fosse acompanhado da mãe para pegar siris uma vez ou outra.

Entretanto, naquele dia algo diferente acontecera. Já era hora do almoço quando dona Tomásia saiu a avistar o filho nos arredores para que viesse comer. Não o vendo, saiu pelas casas dos parentes e vizinhos a buscar pelo menino. Alguém o teria visto ir em direção a casa do Tio Deco, um parente que morava lá mais distante. Assim, ela se dando por conformada voltou para casa e almoçava sozinha com o tino sempre apreensivo no menino. Preocupava-se ela se ele já almoçara ou mesmo se estava na casa do tio; quem sabe se não fora ele tomar banho no embarreirado. Dona Tomásia não conseguia comer sossegada, pois o pensamento fixo no filho ausente só lhe enchia de preocupação.

Terminado o almoço dona Tomásia cuidou das louças e de sobressalto ia até a janela, levava as mãos à testa para empatar o sol que lhe ofuscava os olhos; buscava a imagem do menino que não chegava. A areia fina da praia refletia a luz e fazia arder os turvos olhos de dona Tomásia. Pensava ela, é bom que ele nem venha agora, a areia tá escaldando os pés. Que cristão poderia suportar andar numa terreira dessas...

Absorta em suas tensões de mãe, ela foi até o fogão de lenha onde estava um bule com o restinho de café, sobra da manhã; atiçara as poucas brasas que jaziam em meio às cinzas e pusera para aquecer. Tomou um pouco do café ainda morno e observara que estava com borras; o coador devia de estar furado; mais tarde eu vou consertar ou fazer outro - dizia. Sentou-se em seguida ao batente da porta com o olhar fixo em direção à Ponta, ansiosa pela aparição do menino que certamente não tardaria voltar.

Como se lhe caísse um véu sobre os olhos a pobre mulher foi tomada de uma sonolência e acabou por adormecer ali mesmo recostada à porta sob o vento da tarde a refrescar lhe a face já enrugada pelo tempo.

Após aquele ligeiro cochilo dona Tomásia acordara subitamente acreditando que o menino havia entrado sorrateiramente para não incomodar o sono da pobre mãe que estava cansada. Ela ergueu-se e procurando com o olhar, chamando-o pelo nome, não obteve resposta alguma. Estaria ela sonhando?!

O sol já se inclinara ao ponto das quatro da tarde quando dona Tomásia tomando um velho chapéu de palha, um pedaço de pano para fazer uma rodilha e um pote, decidiu sair em busca do menino. Ele certamente estaria entretido lá pela casa dos tios em companhia dos primos, brincando e não se lembrava de voltar para casa. Pensou consigo em aproveitar para apanhar água de beber lá no poço da campina. Era água da mais excelente qualidade; límpida e de um gosto que não se tinha igual. Antes de sair ela ainda atou à cintura uma tira de couro, resto de um cinturão de seu falecido marido; pensava em aplicar um corretivo no garoto para que aprendesse a não deixá-la preocupada daquela forma.

Saíra pela pancada por onde a areia era mais firme e lá se foi a pobre mulher com o pote na cabeça e sempre a correr os olhos de um canto a outro da praia na captura da imagem do moleque que bem poderia estar por ali em algum lugar. Não o avistou de forma alguma. Buscou na casa do tio e nada; por lá ele não passara.

A velha senhora teve os olhos embotados de lágrimas e um pensamento atroz lhe sobressaltou a alma. Por um instante pensara que o filho pudesse ter caído no embarreirado de maré cheia e que não sabendo nadar direito, poderia ter sido levado pela correnteza. Caiu em prantos e abandonando o pote e a rodilha, bem como o velho cinturão, clamou para que todos os que ali estavam ajudassem a procurar o menino.

De repente, a pequena vila foi tomada de grande alvoroço e todos saíram a procurar o menino. Alguns tomados de pavor diziam que o menino poderia ter se afogado, outros diziam ter avistado ele indo em direção do mangal com arapucas, perto do meio dia; alguém dissera que alguém o havia levado para pescar e que só chegariam com a maré enchente. As notícias eram desencontradas e só angustiavam o coração da mãe do menino que não sabia o que pensar.

Já se fazia quase noite, o sol se punha e por todos os cantos já se havia procurado o menino. Algumas senhoras se contriam em preces como que pressagiando e encomendando aos anjos a pobre criança. Muitos choravam e buscavam de alguma forma consolar dona Tomásia que só rogava à Virgem que lhe mostrasse o seu menino vivo ou morto.

Buscavam-se lanternas e tochas para continuar a busca na beira do mangal e novamente lá para as bandas do embarreirado e da campina. Homens, mulheres, jovens e velhos, todos procuravam aos gritos pelo menino e buscavam por todas as casas e lugares onde se poderia ter se metido o infante.

A noite impiedosa fez descer seu véu tenebroso que implacavelmente já não deixava a vista nada. As canoas que haviam ido ao mar já se faziam à praia e nenhuma noticia se dava do menino. Ninguém o teria visto por lá, nem mesmo sabia-se que alguém pudesse tê-lo convidado para ir pescar. Todas as canoas haviam chegado, mas em nenhuma delas o garoto se encontrava.

Alguém surgiu gritando vindo da direção da campina dizendo que por lá havia visto um vulto, perto das seis da tarde e que ia em direção à beira do embarreirado. Não sabia dizer se era o menino, mas que poderia até ser.

Sem hesitar todos correram para lá e chamando pelo nome do garoto insistiam na tentativa de encontrá-lo. Acorreram em três grupos de homens dispostos a trazer de volta o filho de dona Tomásia. Ela em prantos não tinha mais forças para caminhar, foi carregada até sua pequena choupana onde morava sozinha com o filho. A vila estava tomada de pavor; não se sabia o que poderia ter acontecido com a criança e o medo se apossara da alma de quase todos.

Tamanho espanto se deu quando adentraram na pequena casa e acenderam uma lamparina e a puseram sobre a mesa. As chamas amareladas revelaram o menino de pé com os olhos esbugalhados e fixos na escuridão da pequena choupana. Estava o menino com aspecto assombroso. Suas roupas sujas de areia e tijuco. Sem dizer uma só palavra nem mesmo piscar. Não aparentava ter passado o dia brincando como de costume.

Dona Tomásia de súbito tomou-o em seus braços e o apertou contra o peito, chorando uma mescla de alegria e tristeza. Sentiu o corpo do menino em chamas e trêmulo. Perguntava ao pobre menino onde estivera o dia todo, mas não obtivera qualquer resposta, nem mesmo choro do menino se podia notar. Tinha o semblante pálido e a mente perdida como se ele ali não estivesse.

Em pouco tempo correu a noticia que o menino tinha sido encontrado e toda a casa fora tomada de parentes e mesmo estranhos que buscavam saber o que se dera com o menino. A noite se tornou numa vigília e a criança não comia; nada falava e não aparentava querer dormir. Todos estavam extasiados com seu aspecto.

Sem que se soubesse como, a febre do menino misteriosamente sumira e ele acenou que queria água. A mãe estava tomada de espanto e cultuava os olhos do filho. Procurava diligente fazer todas as coisas para satisfazer o menino como se recebesse dele alguma ordem mental. Estava ela agora tomada de um vislumbre sem igual pela criança.

Lá pelas duas horas da madrugada a maioria do povo já se havia retirado, ficando apenas uns poucos parentes que não ousavam deixar dona Tomásia sozinha com o menino que, embora ela estivesse em êxtase pelo menino, ele mais parecia uma assombração. Dessa feita, apenas pela manhã todos se foram e deixaram a pobre mulher com seu filho.

Conta-se que ao caminhar à pancada pela manhã ainda cedo no dia seguinte um parente do garoto se deparou com seus rastros que a certa altura se transformara em pegadas como de um caranguejo gigante. Os rastros só retornaram a sua forma natural quando chegava bem próximo da casa onde o menino morava.

Ao relatar isso para a mãe do menino ela pediu que não se contasse essa história para mais ninguém. Daquele dia em diante todas as noites o menino ficava em claro como se ouvisse uma voz que o chamava para brincar lá fora. Os olhos sempre fitos em algum lugar durante o dia e as seguidas noites em claro. Ele raramente adormecia.

Depois de quase um ano a vida da pequena família já havia se tornado rotina. Dona Tomásia extremamente envelhecida pela lida com o menino e ele feito fantasma a vigiar por toda a noite. Por semanas não dormia e raramente comia como antes.

Certo dia subitamente o menino recobrou a fala e contou à mãe o que se dera naquele dia em que desaparecera. Disse que havia conhecido um menino que o levara a um grande palácio e que oferecera a ele uma grande variedade de comidas e um salão repleto de brinquedos e muitas joias. A mãe escutava espantada a história. De repente o menino reclinado sobre o seu peito adormecera e ela sentindo-se confortada com aquele afeto também adormeceu. Dormiram juntos aquela noite derradeira.

Na manhã seguinte ao despertar a mãe encontrou à porta as sandálias do menino e viu pela última vez os seus passos se converterem em pegadas de caranguejo que caminhou em direção à praia e desde então não mais se viu o menino. Ela dera-se por conformada, pois sabia que o menino que cuidara nesse tempo, desde que voltara no dia em desaparecera não era o seu amado filho, mas alguém que ela sabia que um dia desapareceria para sempre.

Carpina
Enviado por Carpina em 27/10/2015
Código do texto: T5429129
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