O Ataíde da Mariquita

O Ataíde da Mariquita

Por Fernando Silva

Os dois homens ancoraram a igarité na enseada e rumaram pela praia até o pequeno rancho. Uma barraca de pescadores coberta de palha de babaçu, tendo como assoalho, tábuas de paxiúba e paredes tapadas com varas de tinteira nova.

Estavam cansados do sol e ressequidos de tanta sede. A fome também lhes apertava o estômago, ainda ressacados do chibé ingerido pela hora do café da manhã. Nada haviam comido e estiveram o dia inteiro até a essa hora a lancear nas enseadas à captura de caícas e o que conseguissem pescar. No verão os peixes somem e o sustento das famílias se torna um desafio sem par.

O sol lançava seus últimos raios sobre as marolas que chegavam quase sem forças à encosta das pequenas dunas que se faziam sob o vento e desfaziam-se às marés altas. Naquelas paragens nenhuma canoa mais à vista se tinha. O vento soprava brandamente e a noite já era anunciada com a revoada dos taquirís e guarás que buscavam o abrigo de seus ninhais tecidos sob a copa das altas tinteiras vermelhas.

Chegando ao rancho chamaram por alguém que pudesse lá estar abrigado, porém nada de respostas. Não havia ali viva alma. Um deles subiu pela frágil escada e atingindo o limiar, olhou para o interior da palhoça e deu-se por convicto que não havia ninguém por ali. Adentrou cuidadosamente e notou umas poucas tralhas de pesca e algumas roupas velhas jogadas em um canto. Comentou com o companheiro que parecia que o local não recebia visita há muito tempo. O outro subiu e pode constatar o que o amigo dissera. Conjecturaram em abrigar-se ali naquela noite. Sairiam de madrugada para a pesca.

Imediatamente, após tomarem tal decisão, foram até a canoa que estava na entrada da enseada e resolveram ancorar um pouco mais adentro em segurança e escolhendo uns poucos peixes para comerem, retornaram em direção ao rancho. Antes de lá chegarem, dividiram as tarefas. Um iria apanhar lenhas para o fogo e o outro iria buscar água em um poço que sabiam haver lá por entre as dunas. O sol já estava sumindo e preludiava a noite, por isso disseram um ao outro que agissem rápido e com cuidado.

Sabiam eles que por aquelas bandas se ouvira falar que o ataíde costumava aparecer, por isso todo cuidado era necessário. Ataíde é um ser fantástico que povoa o imaginário popular daquela região. Costuma aparecer de muitas formas; os relatos dão conta de muitas aparições sob a forma humana de um menino e por vezes homem já feito; costumeiramente ele ataca homens que se encontram sós e tem sempre a tendência de violenta-los sexualmente. Algumas vezes também se fala em uma ou duas aparições em forma de mulher de aparência grotesca. Aparecem sempre nus e com as genitálias avantajadas. Seus corpos são hominídeos.

Um dos homens que se pusera a ajuntar lenha entre os restos deixados pela maré na encosta das dunas, terminada sua tarefa se dirigiu ao rancho e caminhando lentamente à espera do companheiro que havia ido apanhar água no poço. Visto que não avistava o outro, pensou que este pudesse ter ido por sobre as dunas e não vindo pela beira da praia, e que já poderia estar no rancho. Adiantou um pouco mais o passo e vinha pensativo a olhar a canoa na enseada com os braços envoltos ao feixe de lenha que fizera.

Aproximando-se do rancho sentiu um odor muito forte como que de carniça e estranhou, pois não havia notado tal cheiro na hora em que chegaram. Levantou a vista em direção ao barraco e vislumbrou um homem sentado aos degraus da escada da palhoça. Devido já se fazer escuro, assentiu que fosse seu companheiro que já o esperava. Foi subindo a duna devagar e, à medida que caminhava em direção ao rancho intensificava aquele mau cheiro e notara que o homem havia aumentado de estatura e estava abstraído em coçar a genitália. Percebeu que não se tratava do seu companheiro, mas de um ser com forma humana bruta. Não tinha dúvida, era o ataíde que estava ali a sua frente.

Tomado de pavor, arriou o feixe de lenha e pensou em apanhar um cacete para atacar o bicho. Olhando em volta, nada encontrou e sentiu seu corpo arrepiar e as pernas trêmulas já não o suportavam de pé. Agachou-se e ficou a observar a reação daquele ser. Sua mente se encontrava em estado de dormência e sentia que as forças que tinha não lhe permitiam alguma reação. Se fosse avistado pelo bicho estaria perdido. Certamente seria dominado.

Sentiu a terra tremer à sua volta como se houvesse caído algum peso gigantesco atrás de si. Olhando em direção à praia viu o companheiro indo em direção a canoa e pensou em gritar por ele, mas sentiu a voz embargada pelo medo. Viu quando o estranho ser erguera-se na escada do rancho e de um salto desceu e caminhava em sua direção. Quase vomitou ao sentir o odor intenso a medida que o bicho vinha em sua direção. Não tinha como escapar agora. A monstruosa criatura o havia visto ou sentido seu cheiro e agora vinha a sua procura no meio do capim que ali se fazia.

Sentiu como que se suas forças voltassem subitamente e sua mente tivesse despertado do torpor em que se encontrava. Sorrateiramente esgueirou-se por entre as sarças e capins e arrastava-se em direção oposta ao monstro que o procurava. Não ousava levantar-se e correr, pois sabia que seria visto e alcançado rapidamente. Olhava em direção ao companheiro, que não sabia a razão, já afastara a canoa para fora da enseada e parecia intencionar deixa-lo ali.

Arrastou-se até a ribanceira e jogou-se para baixo. Por sorte esta era baixa e não se machucara. Alcançando a beira sentiu coragem para correr e largou-se em desabalada carreira em direção à beira da maré. Não olhara para trás para ver a criatura, mas sentia sob seus pés a terra tremer com os passos do bicho que parecia estar se aproximando dele. Sua esperança era chegar até a maré e mergulhar. Ouvira dizer que a criatura não entrava na água e, portanto, não o alcançaria se assim o fizesse.

Aproximando-se da beira d’água ouviu os gritos do companheiro que o chamava em direção a canoa e que corresse mais depressa, pois a criatura já o estava alcançando. Sentiu como que uma força brutal atingir suas costas e jogá-lo ao chão. Não lhe restava mais tempo. A criatura o alcançara e estava ela enfurecida pela fuga que ele havia tentado. Rugia a criatura como um leão feroz ao abater sua presa.

Atordoado pela queda e com as costas como que dilacerada pelo golpe recebido, deu conta de que estava sendo puxado para dentro da pequena canoa pelo seu companheiro que o acudira tão logo o viu caído à beira mar. Tinha este avistado o amigo assim que o bicho o atingira e descendo à terra com um facão em punho conseguiu tomar o companheiro das mãos do Ataíde e puxando-o para dentro d’água, onde o bicho não o podia alcançar, levou-o até a embarcação e logo zarparam dali, pois temiam que com a maré baixa a criatura pudesse alcança-los. Viu quando a criatura deu dois longos passos e desapareceu em direção ao manguezal.

Por dias o pobre homem fora acometido de fortes dores de cabeça e febres intensas. Suas roupas estavam contaminadas de um odor indescritível e seus olhos estavam sempre tomados de pavor. Chorava como criança e tinha sua mente aprisionada naquela criatura fantástica que o tinha encontrado naquelas paragens da Praia da Mariquita. Sabia que por lá não voltaria a pescar jamais. Lá habitava um ataíde do qual, apenas por milagre dos céus havia escapado com a ajuda do seu companheiro de pesca.

Carpina
Enviado por Carpina em 29/10/2015
Código do texto: T5431606
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