A Chamada

O garoto dormia serenamente. Acordou de uma vez, sem motivo, de repente após o despertador tocar três vezes, ele nada ouviu. Esse foi o dia em que acordou zangado por perder, pela primeira vez, a hora. O pai pediu que esperasse e lhe entregou uma caixa dizendo ser herança do avô.

— Aqui. – entregou-lhe aquela caixa – Não se esqueça disso.

— Não quero, não quero isso! – pirraçou o menino.

— Pegue! É herança de seu avô, eu nunca cheguei a usar por relaxo, mas agora é seu.

Saiu pela porta da frente da casa ajustando a tal herança ao braço. O sinal já tinha batido e os professores estavam nas classes. Entrou disfarçadamente e sentou na primeira carteira, como de costume. A professora entrou na sala depois dele, feliz, pegou seu diário e pediu silêncio a todos, logo começou a chamada.

O menino aguardava tranquilo seu nome ser chamado e enquanto não chegava, levantou-se e foi até o lixo ao lado da porta apontar seu lápis. Alguns segundos antes da letra J ele percebeu que a tal herança de seu avô não havia sido ajustada corretamente. Pronto. E voltou ao seu lugar. A professora pulou seu nome e terminou a chamada. Ela não o via nem ouvia, fechou o diário após anotar algo e levantou, como que se lembrando de algo, depressa foi até a porta, abriu-a e saiu sem dizer nada à classe. Bem, talvez ela estivesse distraída. Decidiu esperar ela voltar. Esperou então vários minutos.

As crianças jogavam bolas de papel umas nas outras e nada de dona Olívia. Um sentimento de vazio correu o corpo do menino que preocupado, resolveu sair de cena e procurá-la. O corredor estava completamente em silêncio, só o vento corria por ele, a janela do segundo andar estava aberta e o céu nublado com aquela cara de tempestade. Desceu os primeiros degraus da escada do corredor da esquerda, foi até o da direita e então começou a ver marcas vermelhas na parede, marcas de dedos, de sangue. No pé da escada estava a professora sumida, sentada. Ele chamou seu nome, não foi atendido, claro. Pôs a mão em seu ombro nu, gelado. O pânico alastrou-se pelo garoto que foi à classe chamar todos, ninguém o via e nem o sentia tocar seus braços e gritar por seus nomes. Era frustrante.

As horas passaram. O menino pálido sentado no corredor viu três garotos saírem com expressões de preocupação. Os corredores desertos encheram-se de gritos de pavor quando contaram aos outros. “Dona Olívia foi assassinada.”, diziam.

Ficou largado ali, os vendo correr de um lado para o outro, pisarem e até tropeçarem em seus pés como se ele existisse, mas fosse invisível. Foi pisoteado até às nove quando os policiais e o IML vieram fazer a perícia e levar o corpo. As crianças foram embora evidentemente e ele ficou se perguntando se valia a pena voltar para casa estando invisível. Estava morto? Como? Ir para casa era sua única opção.

Chegando lá o pai estava no sofá lendo jornal. Tirou o “presente” que lhe dera do braço e correu o olhar triste pela sala; subiu as escadas. Surpreso, desceu-as, o pai havia chamado seu nome.

— Como foi o dia? – perguntou ainda olhando para as letras miúdas do jornal.

— Bom. – mentiu.

Saiu da sala, subiu as escadas novamente e jogou-se na cama de seu quarto com uma ponta de felicidade por seu pai ter podido o ver. Mas a tristeza cobriu até essa pontinha. Sua professora estava morta, ele havia acabado de mentir para seu pai sobre o dia ter sido bom e com certeza passaria nos noticiários o assassinato de dona Olívia.

Almoçou e passou a tarde lendo qualquer coisa e vigiando a TV quando seus pais não estavam na sala, nada sobre a morte da professora passava no jornal local. Isso era bom por um lado, não queria ser pego de mentiroso. No jantar, ninguém percebeu seu olhar triste. Foi dormir as oito, se é que era possível dormir. Após esvaziar completamente a cabeça, pregou os olhos e tentou dormir. Nada sobre a professora passou na TV, ainda bem. Amanhã seria o dia de descobrir o que estava acontecendo.

Acordou atrasado, de novo. O pai pediu que esperasse.

— Aqui. – entregou-lhe aquela caixa novamente – Não se esqueça disso.

Não quis retrucar, mas ficou atônito com o como a caixa e o que havia nela foram parar nas mãos do pai. Não se atentou a isso, seu objetivo era descobrir tudo do dia anterior.

Chegou à classe um minuto mais cedo do que ontem e sentou – se a espera da professora substituta. Achou muito estranho e curioso o fato de as crianças conversarem normalmente sobre coisas aleatórias, não ouvia uma conversa sequer do assassinato. Ficou quieto. A maçaneta da porta girou e alguém entrou. Só faltava seus olhos saltarem para for a pela tamanha surpresa que teve quando viu quem entrava na sala: dona Olivia! Momentos de aflição se seguiram ao pedir silêncio e começar a chamada. Uma apreensão maior ainda quando ela se aproximava da letra J e depois, novamente, pulou seu nome e terminou a chamada. Com aquela mesma expressão de felicidade dirigiu – se a porta e saiu. Era um sonho ou uma alucinação? Temeroso dos fatos seguintes saiu de sua carteira e foi direto até a escada da direita, cinco minutos mais cedo do que “ontem”. De parou – se com um homem de preto, estava parado no pé da escada de costas. A professora vinha do corredor esquerdo com um caderno na mão. Tentou com todas as suas forças impedir que ela descesse as escadas, mas ela resistia e insistia em descer de encontro ao homem. Ele tentou, desesperadamente, porém o homem fincou a faca em seu peito, depois a retirou e sumiu no nada. A professora morreu na hora, o garoto postou-se a chorar por seus esforços inúteis. Enxugou o rosto; a professora não conseguia ver o homem, assim como não o via. Sentou no corredor e ficou esperando as horas se passarem e tudo acontecer de novo. Os alunos correndo gritando em pânico, o IML e os policiais, o corpo, os alunos indo embora para suas casas…

Ele foi para casa, pois sabia o que aconteceria em seguida. Seu pai o veria e tudo voltaria ao normal. Mas isso não aconteceu. Ficou parado esperando que seu pai o chamasse e nada, tentou subir as escadas, colocou – se então ao lado do pai e o chamou, cutucou – lhe e até tentou tomar seu jornal, mas ele puxava de volta. Estaria o garoto desaparecendo por completo? Era um paradoxo, como morrer estando vivo.

Tirou o uniforme e deitou na cama, fitava o teto de seu quarto com os olhos marejados. Tão distraído que nem ouviu a mãe o chamar na porta, teve que ir e dar-lhe um tapa. Seria só o pai que não o via? Confuso. Foi se arrastando jantar e ficou observando bem o pai, o encarando tanto que ele notou e perguntou se tinha algo em seu rosto. O menino alegrou-se por um momento, seja lá o que aconteceu mais cedo, sua família não havia o esquecido. Certamente, um dos maiores temores do ser humano é ser esquecido.

Triste, foi dormir no mesmo horário. Rezou para que o dia seguinte realmente fosse o amanhã, contudo, decepcionou – se logo cedo quando acordou atrasado pela terceira vez. O menino não acreditava em coincidências. Amuado, esperou o pai lhe chamar e entregar a caixa, em passo lerdo chegou um minuto mais tarde e a professora, a mesma dona Olivia, estava já organizando seu diário. Sentou – se e apoiou o rosto na mão a espera da tal chamada. Ela começou, o pulou e terminou-a, anotou algo no diário e levantou-se com a mesma expressão. Mas o garoto esperto criou um pingo de ânimo e foi junto com ela para o corredor esquerdo, a professora tinha ido buscar um livro na secretaria e nesse meio tempo o menino teve uma ideia, já que ele podia tocar nas coisas, arrastou uma carteira da sala vizinha que estava vazia até o primeiro degrau da escada da direita e ficou aguardando o momento certo. O homem de preto estava ali de costas já de prontidão, a professora veio e assim que pisou no primeiro degrau, o garoto jogou a carteira bem em cima do homem o que fez um estrondo gigantesco, passou direto por ele como se ele fosse um fantasma e bateu na parede, dona Olivia não esboçou reação alguma, simplesmente foi até o último degrau e foi morta pelo homem-fantasma, no mesmo lugar e hora, pela terceira vez. O barulho feito pela carteira fez com que os alunos saíssem de suas classes e fossem investigar. Isso foi só um artifício para que o pânico começasse e terminasse mais cedo. A perícia e o IML vieram logo e os alunos foram embora antes das nove, possibilitando que o garoto investigasse toda a escola deserta até o meio dia. Ambos não encontravam uma única pista, o menino e os policiais. Nem um grampo, uma nota, uma digital, nada, somente escadas ensanguentadas. A professora apoiava as mãos sujas de seu próprio sangue na parede antes de morrer então as marcas de suas mãos ficavam ali, dando um ar fantasmagórico ao lugar. O menino era um fantasma enquanto estivesse ali dentro. Ficou no corredor pensando até o meio dia, foi para casa e mais uma vez só foi visto por seu pai e mãe após trocar de roupa, foi o que percebeu. Seria o uniforme o que o tornava invisível? Acabou descartando essa ideia.

O homem que matava a professora era invisível como os outros, porém as coisas o atravessavam. Descartou também a ideia de tomar a faca dele, talvez sua mão o atravessasse ou o homem o matasse também, se pudesse vê-lo. Não sabia o que fazer para impedir que a professora fosse morta e nem que o dia parasse de repetir. O mesmo dia frustrante o esperava após fechar os olhos e quem dera fosse um sonho.

Os dias acumulavam em suas costas, não aguentava mais a mesma sequência de fatos todos os dias, já haviam se passado seis dias. No sétimo ele resolveu observar o máximo de detalhes possível para descobrir o que acontecia com ele, o que se passava dentro daquela escola? Amanheceu, pegou a caixa sem dizer nada com o pai, ajustou o presente ao braço e foi ainda mais devagar para a escola. Chegou tanto tempo depois que a professora já estava na letra G da maldita chamada. Como sempre, pulou seu nome. Aparentemente, nada de incomum na sala, o ventilador desligado, as janelas abertas e o mesmo dia cinza lá fora. O que a professora anotava em seu diário antes de sair e morrer não era nada surpreendente, apenas a data de hoje. Resolveu observar os horários, mas ela já estava indo para o corredor da direita. Não daria mais tempo. No dia “seguinte” ele faria isso. Não quis nem assistir a cena trágica para não perturbar – se ainda mais. Pôs a mochila vazia nos ombros e foi para casa mais cedo, logo após a morte de dona Olivia. Ver o homem de preto assassiná-la todos os dias estava se tornando cansativo e o garoto se tornava mais frio e insensível a cada dia repetido, a cada mesmice dos dias.

Tinha um plano hoje: não dormir. Acreditava que era enquanto dormia que o dia voltava. Passou a noite conversando com a Lua, contando sobre a dor que era fazer a mesma coisa e ver a mesma cena de terror e pânico todos os dias, ser esquecido, ser lembrado… ele estava perdendo a vontade de viver, quase preferindo morrer a voltar e voltar o relógio. Quase. Ainda havia essa tentativa.

O dia amanheceu e ele se arrumou ansioso, procurou a tal caixa, mas não conseguiu encontrá-la. Mas é claro que ela estava com seu pai, mais uma vez. Ajustou ao braço e seguiu em frente, chegando primeiro que todos, cheio de olheiras e cansado, mas ele não podia dormir. Concentrou – se no relógio da sala. Sete e cinco a professora iniciava a chamada, pulava seu nome as sete e nove e saía as sete e doze, o homem a matava as sete e dezesseis precisamente. Num primeiro momento foi totalmente inútil observar essas coisas, porém talvez servissem se melhor observadas no “próximo” dia.

Os horários batiam, se ele não interferisse em nada. Olhava sempre pelo relógio da classe, tudo batia. Esteve observando cada detalhe e pôde perceber algo de muita importância. No outro dia resolveu fazer tudo diferente. Começou abandonando a caixa entregue por seu pai em casa. Isto sim foi inútil, o pai foi atrás dele e colocou o objeto no braço do garoto, era como se fosse impossível que ele se esquecesse disso, partiu para o próximo passo: não entrou na classe, ficou esperando o homem chegar ao pé da escada. Foi libertador não ter de ouvir a voz da professora e a chamada. Notou que na escola era como se e não existisse, nunca tivesse estudado lá, por isso seu nome não estava na lista. Assim que o homem chegou, seu coração acelerou, estavam se aproximando os infelizes minutos. Quando a professora começou a descer as escadas ele entrou na frente e por milésimos de segundo, conseguiu enganar o homem que atingiu a faca em seu peito. Então pôde ver, ele não tinha rosto, era a própria morte. Tudo estaria resolvido então, a professora salva e ele esquecido. Ficou aflito, sentia dor, porém nenhuma gota de sangue jorrava, ele não morria. Do mesmo jeito, a faca atravessou seu corpo e matou Olivia.

Apagou todas as memórias ruins de sua mente, retirou a herança detestável de seu braço antes de entrar na sala e seu pai lhe chamou na hora, um detalhe importantíssimo foi descoberto, colocou de volta e o pai o viu.

— Pai, de que jeito que o vovô morreu?

— De traumatismo, não se lembra?

— Ele usava isso? – disse mostrando o objeto.

— Sim, acho ganhou de um amigo. Coitado, – levou a mão a testa lembrando-se – caiu e bateu a cabeça na quina da escada.

— Obrigado.

O pai ficou surpreso com a frieza do filho. Nessa noite, o menino pediu em sua oração antes de dormir: “Por favor, fique viva amanhã, professora”.

Acordou disposto antes dos despertadores tocarem. Ele estava convicto de que havia descoberto seu erro. Buscou no fundo de sua memória em que momento havia ajustado sua “herança”. Na classe ficou já preparado, com a mão no botão de ajuste do objeto em seu braço, assim que a professora fez a chamada e chamou a última pessoa com nome iniciado por I o garoto desativou a coisa e sentiu imenso alívio ao ouvir seu nome pela primeira vez em muitos dias. Apareceu instantaneamente na lista. Correu apontar o lápis no lixo ao lado da porta, estava convicto, após ouvir seu nome, de que hoje a professora não morreria. Esperançoso e cheio de felicidade por ter desvendado o mistério, aguardou que algo acontecesse e ficou pasmo: ninguém entrou na sala após o término da chamada. Pensou então que algo devia acontecer as sete e dezesseis, então foi até o pé da escada. Já devia passar das sete e vinte, logo eles vieram lhe chamar de volta para a classe, agora ele existia na escola.

Foi terrível, o dia seguinte era o mesmo do de ontem, porém ao desativar o tal presente de novo no mesmo horário teve a ideia de ir até a porta e abri-la, uma visão turva dele mesmo estava na porta, uma sombra, como o homem que matava dona Olivia, era ele em versão de morte, porém não carregava nada e agitava as mãos freneticamente. Foi um sinal, um sinal crucial para que ele fizesse tudo certo no próximo dia repetido.

Determinado, redigiu sua maior descoberta em mente: “Meu avô não partiu por acidente e sim de propósito”. Enfiou uma coisa a mais na mochila e seguiu para a escola. Fez o mesmo processo, esperou a última letra I e desativou – o, ouviu pela última vez seu nome na chamada, calmamente retirou a arma branca da mochila. Os alunos se assustaram, mas não conseguiram impedi-lo, levantou-se e fincou a faca em seu coração. O sangue escorreu, ele caiu de lado no chão e antes de fechar seus olhos viu claramente o fantasma dele mesmo que espreitava pela fresta da porta dissipar-se, viera ele do futuro, ouviu os gritos e o pânico que ouvira tantas vezes, tantos dias repetidos antes e enfim, partiu. “Alguém tem que morrer e esse alguém não é dona Olivia”. O relógio velho desativado em seu braço permaneceria até que a próxima vítima o pegasse. Talvez, quem sabe, a velha herança tenha tentado ajudá-lo, mantê-lo tirando a vida de outro, mas o último pensamento que o garoto teve foi que o que tem que acontecer acontece, seja lá de que forma for, ninguém impede algo, nem nós mesmos, nem o tempo. Foi assim o dia em que o garoto perdeu a hora.

Anna Julia Dannala
Enviado por Anna Julia Dannala em 04/11/2015
Reeditado em 04/11/2015
Código do texto: T5437760
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