A matinta

A matinta

Por Fernando Silva

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Lua alta se fazia quando seu Ludovico saiu em direção à pancada de dentro. Às costas uma tarrafa de linha recém-tecida e curtida em tinta de cumatê. Em uma das mãos um cofo e na outra o facão afiado. Tinha o velho a visão ampla da alvura daquelas areias que se banhavam à luz do luar de setembro.

Saiu de casa na intenção de pegar alguns bagres e tainhas na beirada à maré alta. Tinha por hábito pescar de tarrafas em noites de lua. Dona Josica, como era chamada a esposa, sempre pedia que levasse consigo um dos filhos, mas ele não gostava de levar os meninos.

Naquelas paragens se falava, fazia um tempo, que uma matinta assombrava os pescadores solitários, atacando-os e pondo-os para correr assombrados. Quando estes buscavam o fruto de suas pescarias, não os encontravam. Muitos já haviam abandonado a pesca à noite ou quando faziam, iam sempre, em duplas ou trios; nunca sozinhos.

Seu Ludovico, no entanto, era um homem destemido. Desde a infância pescava com seu velho pai e com seus três irmãos. Conhecia cada palmo daquelas areias e não havia um único pesqueiro que não soubesse. Conhecia o fluxo das marés, os rumos dos ventos e, sabia onde e quando iriam estar os peixes. Acostumado que era, sempre pescava sozinho em noites de luar.

Havia tomado conhecimento da história da tal matinta, mas não era homem de acreditar nessas coisas. Dizia sempre que aquilo não passava de história de pescador preguiçoso. Homem que só ficava debaixo das saias das mulheres e que não zelavam pelo bem estar das famílias, e que amanheciam nas bordas das canoas pedindo peixes ou ainda, fazendo suas pobres mulheres e filhos pegar siris e mariscos, para sobreviver. Ele que não ia querer isso para si e sua família. Era um pai cônscio de suas obrigações.

Dona Josica era uma mulher religiosa; católica fervorosa, mas também, profundamente supersticiosa. Sua família, de origem nordestina, trazia consigo uma mescla de crendices populares e religião oficial. Nunca sabia distinguir os limites de uma coisa e outra. Possuía a mulher, uma fé sincrética. Sempre alertava ao marido, teimoso, que o mundo tinha mistérios.

Naquela noite enluarada de setembro, após tomar um café forte que Dona Josica havia coado para ele, saiu seu Ludovico em sua aventura pesqueira. Atravessou uma fina linha de mato que principiava um manguezal que teimava em crescer entre a vila e a beirada da praia. Saiu em direção oposta ao costeiro. Logo estava na pancada e rumava calmamente em direção à beira d’água. Um bando de gaivotas e maçaricos entoavam, sob o intenso luar, seus cantos, pios e algazarras.

Caminhava pela beira d’água com a leveza de uma garça real. Sempre a espreitar o salto ou rebújo de algum peixe. Em pouco tempo sentiu o pitiú característico dos cardumes de bagres. Subiu em direção à terra um pouco mais. Arriou ali o cofo e enfiou o facão na areia a fim de segurar o cesto para não ser levado pelo vento. Não esboçava pressa alguma o velho pescador.

Baixou a tarrafa na areia e conferiu o filame. Estava com o cheiro do cumatê ainda entranhado. Era a primeira vez que usaria aquela rede. Tudo estava em perfeita ordem. Ouviu um taquirí esgarçar o pio em direção à beira d’água. Ajeitou a alça do filame ao pulso e, armando a tarrafa às costas e se dirigiu lentamente até a beira da maré. Resmungou uma prece pedindo boa sorte e lançou a tarrafa no ar. A rede bem chumbada abriu-se como uma imensa lona de circo. Arriou na superfície da água e logo sentou.

Tirando um pigarro da garganta, o pescador sentiu a tarrafa vibrar. Havia caído sobre um cardume, na certa. Tesou o filame da rede e começou a puxá-la para fora d’água. Um cardume de caícas se havia assustado e saltava em desespero. O velho sorriu e sussurrou uma prece de agradecimento à Deus pela dádiva.

Içou a tarrafa toda para a beira. Estava repleta de peixes de várias qualidades e tamanhos. Foi um lance de sorte. Estava encantado com a tarrafa e com a quantidade de peixes. Fazia tempo que não tinha uma rede tão boa, nem teria havido uma pescaria tão farta e rápida como essa de agora.

Deixou a tarrafa e foi apanhar o cofo e o facão que deixara mais à diante. Ainda estava eufórico com a rede e a quantidade de peixes que pegara, além do cardume que se havia espantado e saltitava como se fosse sair da água para a terra. Não lançaria a tarrafa novamente, pois não daria conta de carregar os peixes que certamente pegaria. Naquele instante lamentou não ter ouvido o conselho da mulher em trazer consigo um dos meninos. Se tivesse trazido, levaria para casa tantos peixes que daria para alimentar toda a parentada.

Despescou a tarrafa acomodando os peixes maiores no cofo e soltando os menores; só não os baiacus; estes não mereciam ser soltos; só servem para roer as redes. Limpou a tarrafa retirando as folhas e pequenos gravetos. Deixou o cofo e foi lavar a rede à beira d’água. Voltou, apanhou o cofo e o facão e rumou de volta para casa.

A lua já se inclinava para o poente, mas ainda estava alta. O velho caminhava à beira da maré onde a areia era mais firme. O cofo e a tarrafa molhada pesavam aos ombros. Ele havia cortado uma vara e usava como pau-de-carga. O cofo enfiado na ponta traseira e a tarrafa atada à frente.

Já se aproximava do local em que havia atravessado a pequena ponta de mato. Logo estaria em casa. Olhando mais à frente avistou um vulto que parecia vir em sua direção. Pensou, em princípio, tratar-se de um pescador. A maré estava baixa e os que pescavam de curral já deviam estar indo para despescar.

Mantendo o ritmo dos passos seguiu em direção à beira do mato onde a areia era mais fofa. Percebeu que o vulto o acompanhara, seguindo sua trajetória, e continuava vindo em sua direção. Notou, porém, que não era um pescador; mesmo não podendo definir claramente, devido à distância, tinha o aspecto de uma coisa sem forma. Parecia alguém encoberto em uma espécie de lençol.

Por alguns instantes o velho Ludovico arriou a carga dos ombros e buscou alcançar com a vista, do que se tratava; esta já comprometida devido à idade do pescador. Não era homem de ter medo, mas era cauteloso. O que quer que fosse aquela coisa, permanecia parada à distância. Tomou novamente, o velho, a carga aos ombros e continuou sua caminhada.

Mais adiante sentiu a perna direita reclamar uma dor a altura da coxa. Julgava ser o maldito reumatismo que há muito o atormentava. Como era uma faixa de areia fofa, sentiu o cansaço aumentar; estava ofegante. Decidiu voltar para a beira da maré e ir caminhando até mais próximo do ponto em que havia atravessado.

Ao caminhar no intuito de alcançar a beira, percebeu que a coisa também se movia naquela direção, como se o estivesse cercando. Por um instante lembrou-se da tal matinta que ouvira falar. Hesitou em continuar e mudou novamente de direção, caminhando para alcançar a ilhota. Aquilo, agora mais perto, seguia sua trajetória. Via mais claramente que se tratava de algo fantasmagórico.

Sentiu suas pernas bambearem por um instante. Não tinha dúvida, aquilo era a matinta. Como não era de fazer alarde por medo, decidiu ir em direção à maré e foi imediatamente seguido pelo fantasma. Dessa vez seu coração pulsou forte e ele sabia que seria atacado.

Não tinha dúvida estava diante de algo que não acreditava existir, mas que agora estava ali, prestes a ser vitimado por ela. Subitamente tomou a fieira da tarrafa dobrada à mão em duas voltas, pois intuía defender-se caso viesse a ser atacado.

Movido por sua bravura costumeira, o velho Ludovico apoiou a carga ao ombro esquerdo e com o filame da rede armado, avançou em direção a tal matinta. Quando o estranho fantasma percebeu os passos do velho indo ao seu encontro, abriu os braços e soltou um grito ensurdecedor e partiu para cima dele como se voasse.

Era um ser fantástico envolto em uma mortalha arroxeada clara de cetim que brilhava sob a luz do luar. Demonstrava uma fúria horrenda e lançava-se desesperada sobre o pobre homem.

Seu Ludovico, ao ver a criatura sobre si, deixou cair o cofo e com o facão cortou ou filame da tarrafa, partiu a enfrentar a matinta. Estavam ambos tomados de espanto e puseram-se frente à frente, lutavam. O velho foi surpreendido por um grito que a criatura soltava feito um animal furioso e sentiu seus braços presos com força. Jogou-se ao chão para desvencilhar-se daquela criatura.

Com a destreza de um cão feroz, o velho ergue-se e lançando-se sobre a criatura desferiu dois golpes certeiros com a linha que trazia atada à mão. O fantasma sentindo a linha como que a queimar sua pele. Soltou um grito desesperado e vacilante, ainda tentou uma reação, mas foi surpreendido por uma nova sequência de lambadas que o velho desferia implacavelmente.

Não mais podendo resistir ao ataque do velho pescador, a criatura gritou chamando-o pelo nome e implorando clemência. O velho já se preparava para golpear novamente o fantasma quando foi surpreendido pelo chamado de seu nome. Tomado de pavor não ousara desferir novo ataque.

Atônito o pescador partiu para cima da criatura e puxando-a pela indumentária percebeu se tratar de um ser de carne e osso. Não era de fato um fantasma. Sua surpresa foi tamanha quando descobrindo o rosto da criatura, viu que se ocultava sob a mortalha, uma senhora que ele bem conhecia. Era uma viúva que morava perto de sua casa.

Seu Ludovico estava surpreso, mais ainda, assustado. Pensou em amarrar a mulher ali e chamar os pescadores da vila para vir ver o que os atacava feito fingindo-se matinta. A mulher implorava para que ele não a denunciasse. Ela era viúva e já idosa; não tinha filhos e nem parentes; fazia aquilo, pois tinha vergonha de mendigar, além do mais, só havia feito isso algumas vezes por não ter meios de se sustentar; havia começado os ataques quando começaram a falar da tal matinta.

O pescador estava revoltado, mas também comovido pela história e os rogos de clemência da pobre mulher. Era ele um homem rude, mas tinha um coração bondoso e o espirito humano. Após uma longa e tensa conversa o velho concordou em deixa-la; pediu que não voltasse a fazer aquelas coisas.

Antes de deixar a mulher ali, retirou alguns bagres do cofo e deu a ela; pediu desculpas por ter atacado-a com tamanha violência e despediu-se dela. A mulher o agradecera e prometeu não mais fazer aquelas incursões.

Seu Ludovico ao chegar a casa ouviu distante o alarido de cachorros que pareciam enlouquecidos com algo que os atacava. Tomou banho à beira do poço e antes de recolher-se, ainda tomou um gole de café. Dona Josica e os filhos dormiam.

Era madrugadinha e o dia não demoraria muito. Já se avermelhava o horizonte timidamente. Dali a pouco o sol surgiria como se saísse das profundezas do oceano que se contemplava da varanda da casa. Pensou em tudo o que se passara com ele e a mulher-matinta; enquanto buscava o sono, deitou-se sobre uma esteira de junco, ali mesmo na cozinha. Adormeceu antes que o sol raiasse.

De manhã cedo, Dona Josica o acordou com o cheiro forte do café que acabara de coar. Não gostaria de ter acordado o marido, pois ele estava cansado da pesca. Pedira aos meninos que não fizessem barulho. Ela viu os peixes sobre o jirau, ainda no cofo e estranhou o filame da tarrafa cortado. Não ousou perguntar.

O velho levantou-se e foi lavar o rosto. Voltou e sentando-se à mesa tomou o café. Estava pensativo e tinha sua feição abatida. Dona Josica perguntou se queria um caribé, ao que ele assentiu que ela fizesse. Saiu para o quintal para estender a tarrafa e cuidar dos peixes que trouxera.

Estava ocupado tratando dos peixes quando um dos garotos chegou ofegante chamando pelo pai e pela mãe e logo foi relatando que haviam achado Dona Chiquinha, morta lá perto da Ponta de Dentro.

Não sabia direito, mas ouvira dizer que ela podia ter saído de madrugada e foi atacada por algum bicho. Algumas pessoas haviam ouvido os gritos feios como de um animal feroz a lutar com os cachorros que também gritavam desesperados. Os cachorros do seu Manoel estavam feridos. Teriam sido atacados por alguma coisa. Dona Chiquinha devia ter sido atacada pelo bicho e os cachorros a teriam ferido mortalmente durante a luta. A pobre mulher estava morta.

Carpina
Enviado por Carpina em 12/11/2015
Reeditado em 29/06/2023
Código do texto: T5446861
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