O Incêndio

Levantei, me vesti e fui para a varanda, a noite estava linda e eu sem sono. O motivo da insônia eu sabia, uma conversa que tive com meu amigo Zé do Pão.

Estávamos à tarde na padaria e depois de algumas cervejas, começamos a falar de morte, assunto que normalmente eu evito, mas como os sentidos já não estavam cem por cento, continuamos com aquela insensatez, até que Zé me propôs um pacto e eu aceitei. Era o seguinte, o primeiro que morresse viria dizer ao outro como era lá do outro lado.

Depois que voltei para casa e o álcool perdeu o efeito me dei conta da sandice que fiz. Sempre fui muito respeitoso com estas questões de morte, outro mundo, espírito e tudo mais, você talvez até pense que seja medo, mas eu prefiro chamar de respeito.

Abri o portão da varanda e saí, a noite estava tão linda que resolvi dar uma volta para espairecer. Esperaria amanhecer para desfazer aquela aposta ridícula.

Logo pus os pés pra fora, vi que no final da rua saía fumaça de alguma das casas, me aproximei e percebi que era da padaria. E não era só a fumaça dos fornos a lenha, parecia mesmo incêndio.

Liguei para os bombeiros e tentei quebrar os vidros para entrar. Nesta hora começou a chegar pessoas para ajudar, o vidro era grosso à beça e demoramos um bocado para quebrá-lo.

Quando entramos, na cozinha não tinha mais o que fazer, estava tudo tomado pelas labaredas. Começamos a salvar os outros cômodos, móveis, alimentos…

E como tinha gente ali para ajudar, acho que a cidade inteira estava ali correndo risco para salvar a padaria. É incrível como a tragédia imerge solidariedade das pessoas. Até os inimigos nesta hora se mobilizam.

Aquela padaria era fruto de uma vida de trabalho do Zé do Pão. E agora estava ali em chamas, era muito frustrante. Estávamos quase terminando de tirar o que restava quando ouvimos um grito:

-Corre, o bujão vai estourar.

Nesta hora tudo ficou silencioso, apenas pessoas correndo desesperadas, tentando se proteger.

Primeiro um pequeno estouro, e vimos o fogo correr pela fiação, ninguém havia se lembrado de desligar a energia. E enquanto olhávamos para o fogo nos fios, um estrondo maior fez com que começássemos a correr de novo. Agora era o bujão de gás, que por sorte estava quase vazio e não mudou nada naquele cenário devastador.

Neste momento apareceu o carro dos bombeiros, dobrou a esquina com a sirene e pisca alerta desligados. E em momentos não se via mais fogo, só aqueles estalidos que continuavam em nossas cabeças.

Era a primeira vez que eu via um incêndio de perto e pra ser sincero estava meio decepcionado com os bombeiros, esperava aquela apoteose e movimentação que vimos nos filmes. Mas aí entendi era madrugada e as ruas estavam desertas, o que não justificaria o uso destes artifícios.

Estava tudo quieto, apesar da quantidade de pessoas, quando uma mulher chegou correndo e chorando.

-Salve o Zé, pelo amor de Deus, ele está aí dentro.

Os bombeiros que estavam trabalhando tranquilamente se desesperaram com a possibilidade de ter vítimas e as pessoas queriam entrar para procurar.

As prioridades naquele momento se inverteram, os olhares que choravam os prejuízos daquele amigo, agora receavam por uma perda imensamente maior: a vida de Zé do Pão.

Eles vasculharam toda a padaria ainda quente pelo fogo, e deitado num cantinho da cozinha um objeto como um carvão, totalmente desfigurado, era nosso amigo.

Aquilo me chocou, era a prova do fogo, como se passa o trigo, mas ali o mais importante foi o primeiro a queimar. Tudo aquilo que conseguimos salvar e que parecia tão importante agora virou joio, o trigo o fogo tinha levado.

Estava afundado na tristeza quando me veio meu último encontro com Zé do Pão, o nosso trato idiota. Entrei em desespero, não houve tempo para desfazer a aposta.

Perder um amigo também se tornou secundário, agora meu maior desafio era cuidar para que ele não voltasse para me dizer nada.

Fui pra casa e onde minha mãe ia, eu ia atrás, não queria ficar só. A aposta era comigo e ele não iria aparecer para outra pessoa também, dividindo assim o premio. Isto era pelo menos o que eu acreditava.

Fui atrás do padre:

-Mortos não voltam, meu filho.

Tentei acreditar naquilo, mas o padre também nunca tinha morrido, como é que poderia saber.

Chegou a hora do enterro, e eu continuava junto de minha mãe. Pra me proteger, levei flores para o defunto, conversei baixinho com ele, joguei sete punhados de terra e tantas outras simpatias que dizem dá certo.

Se deu, não sei, agora é aguardar e confiar que uma delas funcione, e confiar também na amizade, se os valores continuam com a gente depois que morremos, o Zé do pão não vai querer ver um amigo da vida toda numa situação tão constrangedora.

Se bem que ele sempre foi metido a engraçadinho.

Criei coragem e fui sozinho pra cama e…

-Uuuuuuuuuu.

-Vuuuuuuuuuuuuu.

Calma gente, hoje está ventando muito e eu deixei a janela aberta. Depois o medroso sou eu.