O mágico

O mágico

Naquela noite de sábado a casa estivera cheia. O produtor do espetáculo esfregava as mãos, satisfeito. Um mágico, desde que fosse famoso e real-mente sensacional, podia lotar um teatro grande, em qualquer cidade do.

planeta Terra!

No camarim, o grande César relaxava após um gostoso chuveiro morno. À noite fora realmente ótima. E sua nova assistente se saíra muito bem, apesar da relativa inexperiência. O truque da explosão causara sustos e logo depois, aplausos entusiasmados. Inspirava-se nos homens-bomba da guerra iraquiana. E havia, naturalmente, Toni, o pássaro que realizava operações matemáticas, como somas e subtrações, com acerto total, sob o comando preciso de César. Toni era um papagaio da Malásia, cinza claro, com as pontas das asas enfeitadas de penas vermelhas e bico azul escuro. Tinha a raríssima virtude de aprender muito depressa e fazia muito sucesso quando gritava em sua voz estridente o nome do estado ou país onde estava se realizando a temporada de César, seguido de vários Vivas! Bateram de leve na porta do camarim. Logo, Miriam, a assisten-te entrou e beijou o mágico na boca apaixonadamente. Não era hábito de César envolver-se com suas assistentes, era perigoso para a disciplina. Mas essa garota nova, além de muito bonita e inteligente, tinha alguma coisa, um charme especial que conquistava os homens. O mágico bem que tentara, mas acabara por sucumbir a seus encantos. Miriam apresentava-se com trajes ousados que deixavam a mostra suas coxas e pernas deslumbrantes e decotes que revelavam uma parte generosa de seus lindos seios. Agora, sentada no colo do amante, ela procurou com as mãos de dedos longos e apoderou-se de seu pênis.

- Não, Miriam! Aqui no camarim não!

- Por que, minha paixão? Meu tesão por você não tem local certo nem

hora marcada...

César afastou-a com delicadeza e levantou-se. Como sempre acontecia depois de um espetáculo, queria comer alguma coisa e beber uma cerveja geladinha.

- Vamos! Deixe eu me vestir e iremos ao bar do nosso hotel beliscar alguma coisa.

- E o Toni?

- O Toni ficará com o contra-regra. Ele a mulher, sabem cuidar do Toni muito bem.

- Pelo menos me dê mais um beijo na boca. Assim...hummmm

César Marcondes tinha nascido em Paris. Seu pai, brilhante diplomata de carreira, era, na ocasião, segundo secretário na embaixada. O menino cresceu em parte no Brasil e também na Europa, seu pai servira, sucessivamente, na França, na Turquia e ao se aposentar, já como embaixador, em Londres. E durante cinco longos anos, tinha sido cônsul em Buenos Aires. Claro que esses anos também tinham se passado, em parte, em Brasília, onde César terminara seus estudos. Foi uma decepção para seu pai quando ele anunciou que cursaria artes cênicas. O pai ambicionava ver o único filho homem, tornar-se um diplomata como ele próprio. Felizmente Rosário, também filha do casal Marcondes, revelara uma surpreendente vocação para a diplomacia. Estava iniciando o curso Rio Branco, para o grande contentamento de seus pais. César fez seu curso de teatro no Rio. Apesar de sua bela figura e boa dicção, acabou descobrindo que sua real vocação era para a difícil profissão de mágico. Desde menino habituara-se a fazer pequenos truques com moedas, lenços e folhas de papel. Era surpreendente ver como a mão pode ser mais rápida que o olho humano. Depois foram as cartas de baralho. Em suas mãos ágeis e rápidas, as damas, os ases, os valetes, pareciam adquirir vida própria, aparecerem ora no topo, ora no fundo, ora no meio do baralho, sempre onde ele indicava. Em sua adolescência isso lhe valera bons trocados em apostas com amigos, mas ele nunca utilizou essa incrível habilidade em jogos como pôquer, por exemplo. César era basicamente honesto. Em pouco tempo sua notoriedade cresceu. Conseguiu uma oportunidade de apresentar-se em Miami. O sucesso levou-o sucessivamente a Washington e Nova Iorque. Finalmente começou a conquistar a Europa.

As mulheres, em geral, sentiam-se atraídas por ele. Não apenas por sua beleza física. Ele tinha um fascínio que vinha da profundidade do olhar, da segurança que transmitia. Foi natural que sua primeira aventura amorosa ocorresse com uma mulher mais velha. Ele tinha apenas quatorze anos quando a mulher de um colega de seu pai, insatisfeita com a pouca virilidade do marido, o arrastou para sua cama.

Não era a primeira vez que ela fazia isso, era uma fêmea ávida de prazeres sensuais e discretos. Para César, até então inexperiente, ela foi a grande revelação do universo do sexo proibido. Em suas mãos sábias e seu gostoso corpo, o garoto aprendeu, durante alguns meses de delírio carnal, todos os segredos da sensualidade feminina. Ela o usou com a voracidade de uma cadela e depois, deixou-o, já interessada em outro parceiro, era mesmo uma pesquisadora insaciável... César sofreu bastante com essa perda. Mas logo percebeu que ela lhe preparara com grande eficiência para seus futuros relacionamentos amorosos.

Mesmo frustrado em seu desejo de ver seu filho tornar-se um diplomata, Pedro Marcondes nunca perdeu seu interesse pelas atividades dele. Era até com um prazer mesclado de humor que se referia a ele como “meu”.

Filho, o mágico. “Já sua mulher, esnobe até a raiz dos cabelos, evitava falar sobre César com suas amigas”. Tinha cultivado, involuntariamente,

uma espécie de rancor, como se ele tivesse escolhido sua profissão unicamente para causar-lhe vergonha e desgosto. Claro que, no fundo ainda o amava, mas passou a dedicar-se mais e mais à sua filha, que ela moldara à sua própria imagem e que, além de tudo, resolvera tornar-se diplomata como o pai. Aposentado, Pedro começou a escrever uma biografia do barão do Rio Branco. Suas pesquisas extensas ocupavam suas horas e deixavam-lhe menos tempo para a prática de seu esporte predileto, o golfe. Gostava de dormir tarde e sempre despertava às seis da manhã, descansado e bem disposto, quando lia seus dois jornais favoritos e tomava o desjejum, acompanhado de Luther, seu fiel pastor belga. Morava em Brasília.

Em São Paulo, o domingo amanhecera. No hotel, Miriam espreguiçou-se como uma gata, na cama de César. Tinham vivido uma noite tórrida de paixão. Ela olhou em volta, mas o mágico não estava no apartamento. Dirigiu-se então ao banheiro, lavou-se e vestiu uma bermuda curta que valorizava suas formas e uma frente única. César voltou ao apartamen-to. Tinha descido mais cedo e dado um rápido mergulho na ampla pisci-na. Eles resolveram tomar seu breakfast no refeitório do segundo andar.

Tinham um único espetáculo para realizar, uma matinê às três da tarde.

O espetáculo foi, mais uma vez, um sucesso.

Quando viajava pelo Brasil, César utilizava seu próprio caminhão para transportar cenários e mágicas. Ele mesmo e sua assistente viajavam em separado, no meio de transporte que mais lhes conviesse. César há-bituara-se a usar o Rio de Janeiro como base fixa. Tinha uma casa num condomínio na Barra da Tijuca. Nela havia espaço mais que suficiente para guardar seus apetrechos. João e Conceição, o contra-regra e a esposa, ocupavam a casa de caseiro. Um jardineiro ocupava-se da manutenção do terreno. Java, uma cadela akita era a encarregada da segurança.

Esse arranjo doméstico era bem conveniente. O condomínio tinha três quadras de tênis e uma pequena academia de ginástica, era fácil para César manter-se em boa forma.

O mágico pensava em criar um novo número, do tipo desaparecimento em cena. Nada de “serrar” corpos ou utilizar jogo de espelhos. Sonhava com um desaparecimento que parecesse realmente autêntico. E então, três dias depois, numa tarde em que fora a um salão de beleza na própria Barra, Miriam desapareceu. César esperou em vão que ela regressasse. Após um dia inteiro nessa espera, procurou a polícia. Não era, visivelmente, um desaparecimento voluntário, pois ela deixara todas as suas roupas em casa.

A policia sugeriu que tinha havido um seqüestro.

- Um seqüestro? Mas não recebi qualquer pedido de resgate... E não sou um homem rico. Vivo do meu trabalho.

- Sim, mas o senhor é famoso no mundo artístico. É fácil um criminoso

Imaginar que ganhe muito dinheiro. Com certeza, alguém vai telefonar e fazer suas exigências. Outra hipótese é a de um crime sexual. Sua assistente é muito bonita. Vou mandar grampear, com sua permissão, o telefone de sua casa.

- Crime sexual?Nem me fale numa coisa dessas!

- Calma! Estou apenas sugerindo alternativas.

- O que a policia vai fazer a respeito?

- Vamos pedir aos veículos de comunicação que divulguem a foto dela.

E também vasculhar os possíveis pontos onde a bandidagem se reúne. De repente alguém dá com a língua nos dentes. Não fique apavorado. A policia tem resolvido muitos casos de seqüestro.

- Não estou apavorado. Apenas não é do meu feitio ficar parado, esperando que alguma coisa aconteça.

Na noite seguinte, César recebeu uma chamada. Vinha de um orelhão e a pessoa usava um lenço ou alguma coisa do gênero para camuflar a voz. Falava lentamente.

- E aí, mandrake, quer sua assistente de volta? Ela está aqui pertinho, bem amarrada e amordaçada.

- Diga logo quanto quer para soltá-la!

- Calma, cara! Não vai ser tão fácil assim.

- Como vou saber se ela está viva e bem?

- Está sim! Bem alimentada. Tem um corpo maneiro sua assistente. Se quiser tê-la de volta, viva, não procure mais a polícia. Volto a ligar para você, panaca. Tchau!

César ficou indeciso sobre o que fazer. Não tinha como encontrar Miriam sozinho. Havia dezenas de casos de seqüestro acontecendo quase todos os dias no Rio. E se ele voltasse a procurar a delegacia? Esses bandidos matavam sem piedade, num piscar de olhos. Calma! Tinha que manter a calma a qualquer custo. A policia telefonou para informar que o carro que Miriam utilizara para ir ao cabeleireiro tinha sido achado, intacto, num estacionamento pago. A perícia não encontrara vestígios nele. Telefonou para seu pai em Brasília. O embaixador Pedro Mar-condes tinha um amigo delegado, na polícia carioca, o doutor Afrânio Moreira. Só que seu amigo era titular da delegacia de homicídios e não havia um corpo para comprovar um homicídio. Mesmo assim, Afrânio interessou-se pelo caso. César foi recebido por ele e contou-lhe sobre a ameaça telefônica.

- Então é o senhor o famoso mágico. Conheço seu pai há muitos anos. É um homem de bem e super solícito. Vou tentar corresponder à consideração que ele sempre teve por mim, embora o caso esteja fora da minha alçada. Diga-me se tem alguma suspeita.

- Nenhuma, doutor Afrânio, infelizmente.

- Bem, convide-me à sua casa para que eu possa me assenhorear de alguns detalhes. Digamos que vai me oferecer um drinque, que sou um empresário teatral. Avise ao funcionário encarregado da portaria que vai receber dois amigos hoje à tarde. Digamos às cinco e meia. o inspetor Gonçalves irá comigo.

- Pode deixar. Estarei lhes esperando.

César agradeceu ao delegado e retirou-se. Voltou para o condomínio. A-franio chamou o inspetor Gonçalves ao seu gabinete.

- Então, Gonçalves, o que acha de bancar um produtor de teatro por uma tarde?

- Produtor de teatro, chefe? Que roupa terei que vestir?

- Não seja bobo, Gonçalves, até atores se vestem como todo mundo.

- Esse mágico é um tremendo boa pinta, chefe.

- Você achou? Veja estas fotos da assistente dele a que desapareceu.

- Minha nossa! Parece uma estrela de cinema ou Tv.. Se eu fosse o mágico nem a deixaria sair sozinha por aí.

- Pois é. Mas ela saiu anteontem para ir ao cabeleireiro e desapareceu.

- Será que ainda está viva, chefe?

- É o que vamos tentar descobrir. Não gosto nada da idéia de encontrar uma garota assim bonita assassinada.

- Bem, doutor Afrânio, pelo menos não estamos iniciando uma investigação a partir de um homicídio. O senhor deve ter uma amizade grande por esse mágico para fazer isso por ele.

- Na verdade, devo um grande favor ao pai dele. Mas isso é uma outra estória. Bem, mande trazer o meu almoço.

- É para já, chefe!

No condomínio, o sol começava a se por quando Afrânio e Gonçalves se aproximaram da portaria. Passaram sem dificuldade pelo segurança uniformizado, mostrando os documentos falsos que usavam quando havia necessidade. O homem da portaria indicou-lhes como chegar à residência de César. O mágico recebeu-os com uma expressão preocupada.

- Nenhuma ligação até agora, doutor Afrânio, nada...

- Não fique tão preocupado, César. Pelo que vi ao entrar, você receberá uma chamada logo. E de um local bem próximo daqui.

- Pelo que viu? Pode explicar melhor, doutor Afrânio?

- Não sou um mágico como você, meu amigo. Mas tenho uma memória privilegiada, principalmente para fisionomias e vozes.

- E?

- O funcionário da portaria. Eu seria capaz de jurar que já o vi depondo numa delegacia. Mas não como testemunha. Como suspeito de algum crime. Está usando bigode, é verdade e o cabelo está cortado mais curto. Mas é ele mesmo.

- É incrível, doutor Afrânio!

- Ah, senhor César! Eu já me acostumei com as coisas que o chefe é capaz de descobrir.

- Mas e a seleção? Será que os funcionários admitidos pelo condomínio não passam por uma seleção rigorosa?

- Devem ou deveriam passar. Mas sempre podem acontecer casos em que a peneira tem algum furo. Vamos ter que agir rápido, César.

- E o senhor tem como fazer isso?

- No rigor da lei, não teria. Mas por que deveríamos ser benevolentes com criminosos cruéis? O seqüestro, seguido de morte, é um crime horrendo! Vamos agir ao nosso modo, não é, Gonçalves?

- E se não for o homem, doutor Afrânio?

- Olhe, moço. Trabalho com o doutor Afrânio há quase quatro anos. Se ele acha que o cara é o criminoso, pode apostar quanto quiser que é.

- Bem, César, temos que saber a que horas ele deixa o serviço. Eu não gostaria de ligar para o administrador do condomínio para perguntar isso. Num momento desses todo o cuidado ainda é pouco. Por falar nisso, você tem dois empregados, não é?

- Na verdade são três, contando com o jardineiro. São três pessoas em quem deposito minha inteira confiança. Trabalham para mim há mais de quatro anos. E, sem querer me auto elogiar, são muito bem remunerados os trato como gente amiga.

- Ótimo. O jardineiro já saiu do serviço hoje?

- Vai sair às seis horas.

- Então vamos perguntar a ele se sabe o que queremos.

Sebastião, o jardineiro foi chamado. Sim, sabia a que horas o funcionário da portaria saia, às seis da noite. E eram cinco e quarenta e cinco... Afrânio, Gonçalves e César correram para o carro do delegado. Em menos de cinco minutos estavam junto à portaria do condomínio. César foi o primeiro a saltar do carro. Francisco Esteves, o porteiro pareceu tranqüilo ao lhe encarar.

- Boa noite, Francisco. Tudo bem?

- Tudo, seu César.

- Meus amigos aqui gostariam de algumas informações, acho que você tem como ajudá-los.

- É sobre o condomínio? Eles estão procurando casa para comprar?

- Não, Francisco, a voz do doutor Afrânio era gentil. Queremos apenas que você nos diga onde está a senhorita Miriam. Onde a escondeu? Você não deve ter agido sozinho. Quem são seus cúmplices?

Instintivamente, Francisco olhou na direção do guarda que estava parado a uns cinco metros se tanto, junto ao orelhão. Afrânio empunhou sua arma com surpreendente rapidez.

- Vá lá pegá-lo, Gonçalves. Não estamos num teatro. Não quero que um dos atores desapareça!

Como um gato sorrateiro, Gonçalves chegou até o segurança. Com grande eficiência desarmou o homem e o imobilizou. A seguir algemou-o.

- Bem, vamos fazer esses dois pássaros falarem. E ai deles, se a moça estiver machucada ou coisa pior.

Felizmente essa hipótese não se confirmou. Miriam estava presa, amarrada e amordaçada na casa do segurança, vigiada pela namorada desse. O seqüestro de Miriam terminara. Houve grande repercussão na mídia, impressa, radiofônica e televisiva. O doutor Afrânio, generosamente, atribuiu a solução do caso à delegacia da Barra . César, agradecido e encantado com o delegado de homicídios, perguntou-lhe o que poderia fazer para expressar essa gratidão.

- Bem, César, o que eu gostaria mesmo é que você me ensinasse a fazer truques com cartas de baralho. Apenas os mais simples, claro.

- Só isso? Considere-se um mágico profissional, doutor Afrânio.

Teresa, a mulher de Afrânio, ficou um pouco surpresa ao ver a freqüência com que seu marido brincava com um baralho de cartas novo em folha naquelas semanas. Mas bem mais espantada ficou quando ele anunciou aos amigos que jantavam com eles na varanda da casa do Alto da Boa Vista, numa noite gostosa e fresca, que iria mostrar-lhes alguns truques interessantes. O jantar foi um sucesso!

George Luiz
Enviado por George Luiz em 29/06/2007
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