A porta

Entender a mente humana é algo complexo, mas confesso, muitas vezes, me esforço para mergulhar nesse abismo, dessa forma, torno-me tranquilo. Ao ser procurado por antigos sonhos, coloquei a prova minha ânsia em compreender psique humana.

Há meses ninguém me procurara, estava isolado em meus pensamentos, em meio a livros velhos, e discos que me traziam nostalgia, minhas velharias lembravam-me uma época gloriosa de minha vida. Porém nenhuma gloria era tão impactante quanto a visão daquela pessoa em minha porta. Ela tinha boca lisa, porém avermelhada, usava roupa de festa, porém incomum, o corte não correspondia a moda da época.

Observei os pequenos sapatos, eles pareciam sair de outro século. Tudo se resumia em observar, quanta coisa um ser humano pode sentir ao ver alguém; medo, dúvida, paixão, angústia. Os cabelos da distinta mulher estavam em frangalhos, porém ainda era belo, como nos meus sonhos, os fios cortavam seu rosto branco, escondendo a extremidade de seu olho esquerdo, tudo com uma perfeição divinal em um olhar diabólico. Suas finas mãos enfeitadas com seus sapatos, estes que já citei, escondia algo pequeno, talvez uma chave, uma joia, ou quem sabe, algum tipo de metal. Seus lábios nem grandes, nem nanicos, compactos com seus enfileirados dentes, ocultava seu falar; algo que me causava agonia, aflição por não saber, não saber o que estava para acontecer.

Pego pelas garras da surpresa, o branco de não lembrar o nome daquela que estava em minha porta, me causou um profundo calafrio; estranho um homem se sentir menino, depois de anos de esquecimento das sensações infantis, a fragilidade juvenil ressuscitou de meu passado; algo como: temor de parecer tolo, quem sabe? Nem eu mesmo sei, se não tolo, apenas alguém inocente, não tolo, mas bobo...

Minha porta era antiga, feita de carvalho, herança da casa de minha avó. Ai, como sinto saudades da minha generosa avó, tão boa que até doía. Eu sempre dizia:

- Nada como ir à casa da vovó, os bolinhos de chuva são ótimos, contudo melhor são as histórias de terror. Dizia ela, todas são reais.

Como sou prolixo, preciso voltar aos fatos, não quero me perder, as palavras nos levam a caminhos inesperados, às vezes nos submergimos, afogamos e morremos antes de compreende-las.

Enfim, continuando: O carvalho ilustrara à mulher, que só conheci na meninice, é óbvio que o tempo fora generoso com seus traços. Já falara de sua boca, seus olhos e de se cabelo, no entanto, esqueci-me de mencionar do seu belo corpo; lindo como da primeira vez que a vi. Afinal quantos anos se passaram? Uns 13 ou 15 primaveras, aposto que não mais que 20. O álcool me fizera perder a noção do tempo, maldito vinho barato, além da cefaleia, sempre me pregara terríveis peças.

Jamais tinha parado para pensar, quão importante é a porta de uma casa, nela as coisas tem início e fim diariamente. Por que os poetas não escrevem sobre portas, em vez de amor, seria mais criativo, sem dúvida, parcialmente curioso.

Lembro que naquele dia houvera uma chuva torrencial, as arvores do quintal estavam agitadas, parecia que suas raízes não suportariam a violência dos ventos. Pensei:

- Como é possível essa chuva de verão em meados de julho? Minha avó sempre dizia que chuva de inverno, é mau presságio, nunca intendera, até hoje aquele nove de julho.

Minha velha memória não me deixa esquecer, a campainha estava quebrada há meses, obrigando aquelas frágeis mãos golpear o velho carvalho. Nesse momento eu estava longe, não em corpo, em pensamento. Bebia gole a gole vinis surrados, que comprara no sebo próximo à igreja matriz da cidade vizinha. Algumas doses eram amargas como aquela fruta de nome estranho, outros quinhões eram suaves a ponto de me fazer sonhar com os olhos arregalados. A maldita ressaca, junto à estranha chuva fora de época, me obrigara ausentar do mundo, lugar tão chato e sem graça; agora menos chato e menos sem graça, devido a vozes divinas saídas de uma agulha.

Sem pestanejar, contei os passos até a porta, me esquivei de uma ou duas garrafas, ajeitei a roupa porcamente e tentei colocar meus cabelos sem corte em ordem simétrica. Não lembrara onde estavam meus óculos, fui com a miopia e a coragem de encontro com meu passado, pensando ser apenas uma manifestação contemporânea do pseudo-presente. Minhas mãos estavam tremulas, talvez pelo excesso de álcool, talvez por falta de alimentos. Envergonho-me da caixa de cigarros que estava no armário da cozinha, sempre condenei os fumantes, fiz campanhas contra o tabagismo, quanta hipocrisia, nada adiantou, o solitário é alvo fácil de todos os males, e o vício adora o deserto de uma mente atoa. Girei lentamente a maçaneta, lembro-me do ranger da dobradiça, essa não era velha, comprará no semestre passado, pensei que era boa, parece que nem tanto, ou quem sabe, era a umidade, na verdade, confesso que nunca fui bom em marcenaria.

Lá estava eu, face a face com ela.

- Olá!

Enfim ouvira sua voz, mas como isso era possível? Parecera que um nome surgiria em minha mente, talvez esse nome seria exatamente o que representara aquela figura; infelizmente nada acontecera. Eu estava nervoso, nervosíssimo na verdade, um simples “olá” me derrubou, piorara a situação. Nesse momento já perdera minha habilidade perceptiva, já não era um observador nato, o mestre da psique humana deixara o receptáculo, é usurpado pelo vazio.

Por um momento, fui fraco, incapaz de pronunciar uma simples saudação. O meu ócio fora terrivelmente atingido por um coice, um fortíssimo golpe, tivera vergonha de ter a honra de viver, qualquer verme, seria até então, mais habilidoso na arte de falar do que o simples homem, este que agora se reduzira a pó.

Porém, não resisti:

- Entre!

Esse foi meu erro, ou quem sabe meu acerto!

Eu gritava por não saber o que fazer, mas meus gritos pareciam silenciosos, afinal ninguém viera ajudar-me, parecia que estava sozinho e meu coração apertara em meio a batidas violentas que pareciam o início de uma parada cardiorrespiratória. Após muito gritar surgiam lágrimas que banhavam meu rosto. Era muito real para ser um simples sonho ou um horrível e medonho pesadelo.

Após lágrimas de dor e lamentação e o gotejar violento do sangue minhass forças iam diminuindo e a tontura acompanhada de uma forte dor me jogara ao chão, sobre uma poça de sangue eu estava de joelhos e parecia que a morte não demoraria a chegar.

A sedutora de presas afiadas colocou as mãos em meu ombro, nesse momento toda dar e agonia desapareceram, também o sangue não mais existia, estavam em outro lugar; agora eu estava em um belo e perfumado campo de flores campestre, iluminado pelas estrelas.

Ela disse que me conhecia de vidas passadas, e viera buscar-me para novamente vivermos juntos em um laço eterno. A voz penetrante fazia tilintar como um sino em minha mente; estava mesmo acordo! Eu já não mais sábia o que estava acontecendo, a confusão estava envolta a uma paixão de várias vidas e que novamente voltara para arrebatar meu coração humano. A cada palavra da misteriosa mulher de meus sonhos de criança, tornava-a mais unida a mi, sem dúvidas estava sobre o domínio de seus desejos desconhecidos.

Após esse dia, o retorno da amante sombria tornara frequente, ela me desejava cada vez mais e mais. Minha humanidade estava no fim, apenas espera a morte. Eu sentira a falta da desconhecida, abrirá mão da luz, as trevas tornaram minha companheira, perdera o gosto pela comida, nenhuma bebida me atraia. O que me restara era dormir.

Eu estava cada vez mais pálido, estranhamente, não havia mais sofrimento, os sonhos eram mais reais, estava confuso, morrera para vida e nascera para ela.

Meu corpo não resistiu, agora o óbito era o motivo da tristeza daquela casa, os que a meses tinham me abandonaram, cruzavam minha velha porta para se despedir. O enterro foi um ritual melancólico para todos, mas eu estava somente em um sono, um profundo e confuso sono. Trancado em um caixão eu despertei, gritos de pânico e socos na madeira, estava fraco e sem forças, sentia sede de vitae, não me lembrara do sangue que tinha ingerido, sangue oferecido pela amante, a vampira que me transformou em um caçador.

Hoje não sou fraco, muito menos tolo, ainda tenho minha porta de carvalho e de vez em quando, vago próximo a minha velha casa. Apesar de ser um predador, conservo minhas memórias humanas.

Para minha assassina ninguém deveria viver mais mil anos sem um amor, ela acreditara que até mesmo nas trevas poderia haver luz, em meio as gotas de sangue, era possível sentir o perfume das rosas campestre. Amar-nos até o fim dos tempos era seu objetivo, como me encontrou, e porque me escolhera nunca soube. No meu sono profundo penso no seu egoísmo, questiono se devo ou não, dar vida eterna a esse amor e vagarmos juntos nas noites desta terra de pecadores.

Sem discos velhos, sem bebedeiras e ressacas. Este sou eu. Um ser da noite, sem conceitos de felicidades e ideias falaciosas sobre coisas simples. Meu nome ainda não será revelado. Talvez um dia lhe conto ao visitar-te.

Willians Rodrigues
Enviado por Willians Rodrigues em 28/12/2015
Código do texto: T5493559
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