A LOUCA DO CONDOMINIO

Todos viam aquela como a família mais excêntrica de todo o condomínio. Viviam apenas os dois: a mulher, oh, que mulher, talvez fosse a única compreensivelmente louca- fora diagnosticada há muitos anos com Alzheimer, segundo o filho e estava no ápice da doença. Ruan, o filho, era o responsável pelos cuidados da mulher, percebia-se que ele realmente a amava, mesmo ela não sabendo quem era. Ora achava que era sua filha, ora achava que era sua irmã... Sempre algo diferente, mas nunca lembrava que era na verdade sua mãe. Todos os sentimentos maternos ficaram perdidos dentro dela e sabe-se lá quando iria reencontra-los- bom, muito em breve. Apesar de tudo ela tinha energia, incrivelmente descia as muitas escadas do prédio. Do quinto andar ao térreo. Em condições normais uma pessoa de sua idade levaria o dobro do tempo para chegar ao mesmo destino, claro, isso em casos de extrema necessidade, pessoas com essa idade não desciam as escadas daquele condomínio, preferiam o elevador. Mas ela era diferente, tinha uma energia e uma convicção positiva acerca de alguma coisa. Era uma sonhadora. Quando chegava ao térreo, saía porta afora cantarolando, sempre alegre. Ninguém entendia de onde aquela senhora tirava tanta energia e o mais intrigante como seu filho permitia que a mãe fizesse aquilo, ''ela devia estar na cama'', pensavam. Muitos o consideravam irresponsável por isso. Com orgulho ela ia até o parque do condomínio contar estórias para as crianças que estavam por perto, era incrível a capacidade criativa daquela mulher, ela as contava de uma forma tão real... parecia ter vivenciado de fato aquelas aventuras. Mas tudo não passavam de fantasias criadas pelo filho que sempre antes da mãe dormir contava alguma estória que escrevera na hora do almoço do trabalho para a mãe moribunda. Era ele o mentor de tudo, ela só repetia de forma esplêndida para aquelas crianças que a adoravam.

Mas naquela madrugada de janeiro tudo acabou- a senhora se jogou do quinto andar de seu apartamento, ninguém entendeu. Só se ouviu um estrondo do corpo que caíra sobre o capo de um carro... foi horrível! Não se sabia o que houve para aquilo acontecer. Porque uma senhora aparentemente tão contente se jogaria daquela altura? Seria este um caso de assassinato? Um surto psicótico? Todos estavam ao redor do carro com essas e outras mil perguntas na mente. De supetão, apareceu Ruan que num pulo subiu rapidamente no capo do carro, agora com um amassado provocado pelo impacto do corpo que caíra, levantou a face envelhecida daquela que o pôs no mundo- não tinha mais o que fazer, estava morta. Uma lágrima percorreu seu rosto, molhando seus lábios secos, parecia só existir os dois ali, tudo ao redor foi esquecido, era o ultimo momento que teria com sua mãe. O ultimo beijo, sim- vagarosamente, trêmulo o rapaz encostou seus lábios carnudos nos lábios finos da pobre mulher, aquela imagem estaria circulando todos os jornais da cidade na manhã seguinte como se fosse o anuncio de um filme dramático. Parecia aliviado, enfim tudo havia acabado, descansaria finalmente aquela mulher. A morte, mesmo sendo a única certeza da vida, quando chega, deixa um sentimento de confusão no momento em que perdemos alguém que amamos. A morte nos tira tudo. Tudo.

Depois de longas investigações a perícia confirmou com convicção que aquilo fora um suicídio. De fato foi um suicídio, mas a senhora não esperava que fosse. Veja bem, um amigo meu que morou nesse mesmo condomínio sabia de tudo que aconteceu, mas como era uma criança não se deu conta da verdade que tinha o tempo todo consigo. Horas antes do acidente, este meu amigo estava no parque, sozinho, num dos balanços sentindo a brisa no rosto. Quando de repente viu a frágil senhora- estava mais feliz do que nunca- mas ele, por sua vez estava com medo, quando ela percebeu isso sentou em outro balanço vago do parque e com uma voz doce tentou acalmar o moleque. Começou a contar uma de suas histórias, bom eu não sei se foi exatamente com essas palavras, entenda, fazem muitos anos que isso aconteceu. Mas o que importa mesmo é a gravidade de tudo isso. Segundo a senhora, o filho (a quem ela se referia como pai, em outros momentos como irmão) revelou um segredo para ela, disse que ela tinha um poder especial- podia voar! Sim, voar. Flutuar entre as estrelas e sentir o vento frio da noite no rosto, seria uma sensação de liberdade absoluta ao qual jamais esqueceria. Era só ter confiança. Dizia. Estava empolgadíssima. Era fascinante a forma como ela contava os detalhes e meu amigo, na sua inocência, fascinado, acreditou em toda aquela aventura que o tal Ruan inventara para mãe e que a mesma repetia com orgulho. Ela disse que voaria naquela madrugada e o convidou para acompanha-la na sua viagem, o garoto aceitou e assim o fez, na madrugada daquela mesma noite estavam ambos no telhado do prédio, os dois voariam. Ele se jogaria logo depois dela. Ela se jogou e, bom, vocês já sabem tudo o que aconteceu em seguida. Meu amigo assistiu a tudo e não pode fazer nada, sequer entendeu o que se passou. Sorte que não pulou.

Isso parece não fazer o menor sentido, também não fez para meu amigo a principio, mas foram anos mais tarde que meu amigo, recentemente formado em farmacologia, começou a estudar como remédios que tratavam doenças psíquicas- como esquizofrenia e Alzheimer- reagiam no organismo, descobriu que, o desuso desses medicamentos pode levar a situações onde o doente perde a noção e o controle, começa a delirar e consequentemente a longo prazo seu estado de saúde piora. Tudo fazia sentido agora, o filho da senhora propositalmente cortou o uso dos medicamentos que mantinham sua mãe lucida e contava a ela histórias malucas e sem nenhum nexo com a realidade, induzindo-a a cometer barbaridades como pensar que poderia voar simplesmente com confiança e jogando-se do quinto andar. Que loucura! Tudo isso foi arquitetado para finalmente herdar a fortuna que a velha deixaria só pra ele quando morresse, era a única explicação. Bem engenhoso para alguém que não quer sujar as mãos e se tornar suspeito de assassinato. Era muito mais vantajoso convencer alguém a fazer isso ''deliberadamente’’. É muito louco tudo isso. Depois que tudo acabou, o homem vendeu o apartamento e sumiu do mapa, nunca mais ninguém o viu. A morte realmente leva tudo da gente, mas isso só ocorre quando a pessoa é o Tudo, do contrário é interessante que, pelo menos, o morto deixe alguma herança para alimentar a maldade de quem é vazio de sentimentos. Não que seja o caso de Ruan, talvez ele a amasse e por isso não cometeu o crime com as próprias mãos, pode ser que estivesse desesperado. Enfim, nunca se sabe o que sabe na cabeça dessa gente esquisita.

Escrito por

Artur Sanfournt.

Artur Sanfournt
Enviado por Artur Sanfournt em 14/01/2016
Reeditado em 14/01/2016
Código do texto: T5510782
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