O exame
 
         Epitáfio começou a sofrer já na véspera, uma coisa estranha que não sabia explicar. Levou a mão no estômago, não era, era um trem esquisito, mexia mais com seu humor, do que com os nervos.

     Devagarin, bem devagarin, foi entrando num estado de cólera. Meu-deus-du-céu! Se remoendo por dentro. Não tinha lugar para ficar. Sair de casa. Não! Nem pensar! Seguiu até a cozinha, olhou a geladeira, pensou, pensou; pensou e nada!
     Retornou para sala, nem sentou, foi até o quarto, não havia luz para alumiar o quarto, as paredes estavam cinza escuro e o teto quase preto. Olhou para cama, para o travesseiro e não conseguiu distinguir qual era o dele, qual era o da esposa!

     De maneira inesperada, num passe de mágica, descobriu a origem do seu rancor, a dor que lhe remoía por dentro, foi embora assim como chegou. A paz agora reinava. Epitáfio deitou para orar e agradecer a Deus.

     Na quarta-feira tinha que fazer um exame, embora um exame não seja motivo para se irritar, seu inconsciente, na véspera começou a manifestar todos os sintomas do dia seguinte.

     Todas as vezes que ele vai fazer exames, a esposa sempre o lembra bem cedim:
     __ Epitáfio hoje tem exame. Olha, faça direitinho tá. Amor, seja paciente ...

     É assim desde que eles se casaram, mil recomendações. Não sabia o que o incomodava mais, se é por ela lembrar, ou pelas recomendações. No fundo, no fundo eram as duas coisas.

      O dia seguinte rompe, mais um dia, mais uma data.
         Epitáfio levantou mais cedo do que o acostume, se moveu o mais lento, sem brusquidão, não calçou as chinelas, passinhos de gueixa, bem juntinhos, sem levantar os calcanhares. Se vestiu na sala, num breu danado.

     Quando ele dirigiu para o banheiro parou num supetão! Pensou: Se eu escovar os dentes, ela pode acordar? Pode. Decidiu pegar a escova, um pouco de pasta e escovar lá no laboratório. Epitáfio ficou feliz com sua esperteza e estratégia!
     __ Amor, acende a luz pra escovar os dentes. Era ela!
      __ Não queria te incomodar.
     O cabelo da criatura parecia um ninho, vestida com um pijama estampado com joaninhas, elefantes e tartarugas, ela retornou para a cama.


          Epitáfio acordou duas horas mais cedo pra nada! Ela não o lembrou do exame, nem sequer uma recomendação. Escovou os dentes em casa e voltou para a sala, ficou pensando e se olhando no reflexo da televisão.
     Não elucubrou muito, nem tentou entender, apenas se olhava na TV despretensiosamente, mantendo-se ali como um bicho a ruminar, um bicho ruminando com hora marcada e com uma ideia fixa: quem entende esse bicho mulher!

     Epitáfio chegou no laboratório como saiu de casa, pasmo. Antes de adentrar olhou para trás, viu sua estratégia e sua inteligência amarradas a um cordão, atrapalhando-o a andar.

     Retrocedeu quatro passos e ponderou consigo: é melhor minha inteligência e estratégia ficarem aqui de fora, por hoje basta de ajuda. Amarrou-as ao pé do poste. Avançou seis passos e penetrou na clínica.

     A clínica tinha um formato em L. A primeira sala a esquerda, as outras duas em frente para quem entra. A separação das salas a frente se davam pela disposição das cadeiras. Cada sala tinha umas quinze cadeiras e um monitor. As atendentes ficavam na primeira sala em frente.

     Epitáfio pegou uma senha e sentou, aguardando ser chamado para preencher um formulário. Não demorou, na tela do monitor apareceu o número de sua senha, uma voz artificial repetiu-a várias vezes. Epitáfio partiu em direção à recepcionista, entregou tudo a ela, documento pessoal, solicitação do médico; e autorização do exame.

     A recepcionista pergunta:
     __ É convênio né?
     __ Sim.
     __ Preciso ligar no convênio, o senhor aguarde só um pouco, tá! Pode ficar aqui mesmo.

     Ficou ali como um dois de paus, paradim, só olhando-a. Quando de repente, assim do nada, aparece uma criancinha, loirinha; esperta; girando em volta da cadeira a sua esquerda.

     Epitáfio ficou perplexo, duas pernas perfeitas descansando na cadeira do meu lado. A mãe da menininha era a dona das pernas. Meu-deus-du-céu! ele nunca tinha visto duas pernas tão perfeitas, torneadas como um taco de sinuca, não eram grossas ou finas, eram simplesmente perfeitas. Epitáfio compreendeu, o belo não é pra ser desejado, é pura contemplação.

     Simulando que estava olhando para a menininha, mantinha os olhos nas pernas, procurando uma espinha, um queimado de escapamento de moto, uma estria, uma celulite! Nada.

Epitáfio estava quase de frente para aquele par de pernas cruzadas, a filhinha rodopiando a mãe, quando de repente, a menininha parou de rodopiar bruscamente, olhou para trás e falou:
--Papai, papai…

     Epitáfio lentamente apoiou as costas no encosto da cadeira, posicionou-se de frente para a recepcionista, engoliu um torrão de nada e fixou o olhar nela.

     As mulheres, ah! Como mulheres sabem ser maquiavélicas. A atendente olhou-o bem nos olhos, dos seus olhos ela não tirou mais os dela.

     Com o cotovelo na mesa esticou o braço mantendo a palma da mão aberta sobre a mesa. A outra mão levou à base do pescoço, mantendo o dedão pressionando um lado, com a unha do dedo médio alisava o outro lado do pescoço.

     A recepcionista abriu só um cadiquinho a boca, o lábio superior manteve os dentes de cima escondidos, o lábio inferior deixou apenas os quatro dentes debaixo frontais a vista. Assim como se ela estivesse fazendo uma insinuação, vai saber do quê!
     A comunicação entre Epitáfio e a atendente, era pelo olhar! Ela percebeu a aflição dele olhar para trás, avaliar o pai da menininha. O olhar dela era uma provocação, tipo, tem coragem de olhar?

     Epitáfio tentou ler uns banners a direita dela, não conseguiu, o olhar dela cerceava os dele.

     Ela desceu a mão que estava no pescoço só um pouco, com a mão espalmada coçava com os quatro dedos um lado, do outro lado o dedão indo e vindo, norte oeste, sul leste. Enviesou alguns centímetros a cabeça, contraiu os músculos faciais só de um lado suavemente; inclinou um lado dos lábios e serrou só um pouquinho os olhos.

     Com certeza, aquela expressão gritava nos ouvidos dele: Olha de novo as pernas, vai, olha lá. Aquele torrão de nada que engoliu, agora era como se estivesse engolindo um Baiacu. Era o inferno astral dele, aquela capeta que estava a sua frente, aprontou outra.

     A atendente se divertindo, juntou as mãos, cerrou mais os olhos, relaxou a musculatura da face, levou a ponta da língua no canto da boca, inclinou na direção dele esfregando as mãos. A danada corria a língua lentamente de um lado ao outro da boca expressando: você não tem coragem, você está com medim.
     Epitáfio tinha a sensação que todos que estavam atrás dele, a espera dele virar, dele tomar uma atitude. Ele não temia, não amarelou, nem perdeu a cor. Toda a sua angústia, não era voltar-se para trás, não! Era ela, a atendente.

     Ela recostou na cadeira, cruzou as pernas; cruzou os braços. Olhou-o com indiferença. Cínica, sarcástica; malvada. Com seu olhar ameaçador, lhe dizia:
     __ Vou perguntar qual o exame que o senhor vai fazer; todo mundo vai ouvir!

     Epitáfio pensou, dizem que o uso da violência é a prova que, quem a usa, não tem mais argumentos e não consegue lidar com a situação racionalmente. Entretanto como controlar o emocional, se a razão foi para as cucuias! Portanto tudo tem limites!

     Epitáfio tomou uma decisão drástica, não chamou a recepcionista de cretina, não! Ele é um homem, digamos bom; com seus 1,90 de altura, pesando 90 quilos, cabelos encaracolados até os ombros, boca pequenininha, olhos pequenos e escuros como uma jabuticaba bem madura. Por ele ser braçal, ele é muito forte, não é pouco.

     Levantou-se da cadeira lembrando um frango com calor. Infelizmente ao girar rápido, empurrou a criancinha para trás. Ela não andou para trás, cambaleou alguns passinhos inocentes e caiu. A menininha não se machucou. Assustou? Muito! No cair fez um rolamento ao contrário, todavia apoiou todo o peso do corpinho no pescoço e na cabeça.

     Epitáfio não viu o pai ou a mãe da pobrezinha virada com as pernas para o ar. Apenas ouviu um grito. De dor? Não! Um grito de pavor, consecutivamente o choro, chorinho de dar dó.

     A situação lembrou um jogo, quando um jogador vai bater o penalty aos 49 minutos do segundo tempo, todo mundo em pé, aguardando o chute, o gol, a festa.

     Ahnão! É PÁ’CABÁ MESMO1! O pai da criancinha era Estenovaldo. Juntos balançaram as cabeças olhando para o piso, por alguns segundos, poucos, tamparam os rostos com uma mão, desceu-as e cumprimentaram-se. Estenovaldo era chefe, melhor amigo de Epitáfio e padrinho de seu filho.

     Epitáfio fez o exame, deu tchau ao chefe, a menininha, para a mãe não! Disfarçou com uma tosse e olhou para a recepcionista, esta moveu apenas e tão somente a boca. De boca fecha esticou-a até aproximar das orelhas, nada mais, só, mantendo os olhos no monitor do computador.

     Epitáfio chegou ao poste em que estratégia e inteligência estavam piadas, recolheu-as, entremente ouviu de inteligência, se tivesse me levado lhe diria: Olhe para o rosto da mulher primeiro, sua besta!


 
1É PÁ’CABÁ MESMO = é o fim.
Eder Rizotto
Enviado por Eder Rizotto em 30/01/2016
Reeditado em 09/04/2018
Código do texto: T5528031
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