Não pisarás!

Deus, meu Deus, onde andava o Mateus com a cabeça, que viram estes olhos meus, para cometer uma loucura daquelas, naquela já longínqua tarde de setembro de 1958?

Na certa havia saído do Evangelho - e da escola, o que fez em minha companhia - e seguiu em direção oposta à que tomava todas as tardes rumo a sua casa, no bairro da Penha.

E não era de muita conversa o comprido colega Mateus, pois além de zarolho, padecia daquela notória dificuldade com a língua pátria, com a aritmética e mesmo com os folguedos no pátio da escola. Ensimesmado e mais que um bocado.

E me surpreende até hoje como é que lhe ocorreu me convidar para acompanhá-lo naquela louca aventura. Vai ver que nem convite formal fez. Afinal aquele era meu caminho normal de voltar pra casa, saindo da rua da vetusta escola, o Grupo Escolar Professor José Valadares, passando em volta do Forum Municipal e vendo a Matriz em plano mais baixo, tendo a separá-la do Forum tão-somente aquele gramado verdinho, aveludado, em aguda rampa...

Pois era ali que se fixava a mente do bom Mateus...seus olhos, não sei, pois com aquele grau de estrabismo, a volúpia é que os dominava, ainda que evitasse a manifestação explícita, vocal. E, eis que, num átimo, após falar-me que queria mostrar-me um coisa, precipita-se o Mateus rampa abaixo, e pasta embaixo, como se assentado num tobogã, a se deslizar naquele acelerado e deleitoso transe. Até um certo ponto. Pois havia o fim da rampa, uma mureta baixa, ...e a rua que circundava os fundos da Matriz. Mas havia mais: havia uma postura municipal que proibia aquelas evoluções e ameaçava com multa, cadeia, sei lá. E havia ainda, para o mal dos pecados, um homem, um policial estrategicamente à espreita, justamente no fim do passeio do tobogã gramado.

Do alto, com o coração na mão, vi ainda a aterrissagem e imediata abordagem do jovem Mateus. Mas ali já não foi mais que um ofegante relance, de pavor - e de correria. Não vi o Mateus no dia seguinte na escola, e noutros, se pouco veio, foi de menos conversa ainda.

Já se iniciava ali o seu tobogã para o oblívio.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 03/02/2016
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