Assassino entre amigos

Dois estranhos entram no ônibus e sentam distantes um do outro. O primeiro senta na parte de trás, tem uma postura relaxada e descontraída, assim como sua aparência. Usa uma bermuda cargo, chinelo e uma blusa qualquer. Ostentava algumas tatuagens nos bracos e pernas e sua barba estava por fazer a uma semana. Já o segundo senta-se logo a frente e estava nervoso, estressado, falando com alguém ao celular, como se algo ruim tivesse ocorrido. Parecia ser o oposto do homem que entrara na sua frente. Usava um terno novo ajustado para suas medidas, sapato social, relógio de prata e uma maleta de couro, provavelmente algum advogado ou empresario.

Meia hora se passa percorrendo as ruas esburacadas do Rio de Janeiro e o ponto se aproxima para aquele que estava sentado na frente. Ele levanta, esmaga o botão de parada, até ceder a sua vontade e acender o sinal de parada, e percorrerá até o final do veículo, ao passo que o segundo homem repara na movimentação do que acabara de levantar enquanto o encara a medida que se aproxima. Faltando um metro para se cruzarem o sujeito em pé repara alguém o espia e olha direto para seu observador.

- Bina?! É você mesmo!!?

- Barbixa!!!! De onde você surgiu, seu cachaceiro!!

- Pera ai que vou descer contigo. Ô Motor abre aqui campeão!!

- Ô doidão!! Ta morando por aqui agora?

- Na Tijuca sim, mas bem mais la pra frente, depois pego outro. Ta tranquilo de pegar busão por aqui.

Ao Descerem do ônibus, gargalhando e botando os assuntos em dia, um deles aponta pra um pé sujo de esquina, assim poderiam continuar a conversa.

- Quanto tempo em Brunão, não acredito que você ainda esteja morando aqui, gosta mesmo disso aqui. E agora não posso nem te chamar de barbixa, com essa cara limpa ai.

- Olha quem fala Renato!! E Pelo visto se rendeu ao Tijuquistão, fazem o que? Uns 10 anos?

- Pois é, tive que arrumar um lugar barato pra alugar. Nossa 10 anos, muito tempo.

Passaram o resto da noite retomando a vida um do outro. Família, trabalho, dinheiro, viagens, filhos, hobbies, etc. Próximo da meia noite, a mulher de Bruna liga preocupada afinal ele saia cedo do trabalho e deveria vir direto para casa, ele explica seu

atraso e onde estava, afirmando que logo estaria de volta.

- Então Renatão tenho que ir, a patroa me chama.

- Sem problemas, já tomei muito do seu tempo.

Na tentativa de tirar a carteira do bolso e pagar sua parte, Renato o impede.

- Nada disso, essa e por minha conta.

Meio surpreendido pelo ato do amigo, visto que ele tinha fama de ser pão-duro, toma ar para responder mas eh interrompido.

- Antes que você vá embora, me diz, como anda o pessoal? Tem visto?

Mais constrangido do que antes, Bruno limpa a garganta para responder.

- Hum, a gente marca de encontrar de vez enquanto, ou quando tem algum aniversario, sabe como e.

- Eles ainda acham que eu fiz aquilo né? Eu to me tratando já faz algum tempo sabe, psicologo duas vezes na semana e psiquiatra todo mês.

Dizia isso enquanto tirava um pequeno vidro marrom, com algumas pilulas brancas e uma tarja preta no rótolo. Antes que pudesse discorrer sobre o medicamento ele eh gentilmente interrompido.

- Ate onde eu sei você não fez nada, foi muito bom eu ter te encontrado hoje, parece ate destino, ja ta na hora deles esquecerem isso. Eu vou falar com eles amanha mesmo. O seu numero ainda eh o mesmo?

Um suspiro de alivio, preso a dez anos, se desprende do seu peito fazendo o guardar as pilulas e voltar a se sentar.

- Não precisa forcar a barra, eu sei que a sua mulher, digo, a Márcia, nem em mil anos vai me perdoar ou pensar na minha Inocência. Quanto aos outros, não sei o que eles pensam de mim depois de tanto tempo. Bom vai indo, antes que ela te ligue de novo e complique as coisas pro seu lado. Tem uma caneta?

Ele pega a caneta da mão do amigo e rabisca alguns números no guardanapo da mesa.

- Aqui, meu telefone novo. Depois do que aconteceu foi impossível continuar com o antigo. Pode me ligar, ou mandar mensagem mesmo.

- Ok, falo com você essa semana.

Em alguns minutos Bruno estava em casa. Um condomínio grande e luxuoso no meio de alguns outros prédios menores.

- Fala seu Jorge, boa noite!

- Ta chegando tarde em Doutor Bruno, ta pulando a cerca?

- Que isso! Não fala isso nem brincando!

E assim se deu a conversa com o vigia noturno da portaria.

Ele abre a porta de casa e em menos de três passos.

- BRUNO FIGUEIREDO!!!

Márcia esperava na mesa da sala enquanto seu filho mais velho jogava vídeo game no sofá. Ela não sabia com quem ele estava , talvez isso piorasse a situação , mas apenas com o atraso, já demonstrava feições furiosas. Antes de descarregar sua raiva sobre o marido, deu a deixa para ele tentar se defender.

- Amor….

- Amor o caralho, desembucha logo!!

- To tentando ! Lembra o que eu te disse mais cedo? O carro quebrou no trabalho, que eu tive que pegar um ônibus, ia chegar atrasado em casa?

- Ahn sei, atrasado em 6 horas!!

- Bom eh que você não sabe o que aconteceu.

- Obvio que não, se eu soubesse não estaria aqui puta, esperando uma resposta sua!!

- Então, encontrei com um velho amigo no ônibus, estava ali na esquina no bem-te-vi ate agora, nada de mais.

Um pouco mais aliviada mas sem perder a postura.

- Ok, com qual amigo? Marquinhos, Alex, Pedro?

Ele engole a seco, pois sabia que ela não iria gostar de ouvir o que estava prestes a ouvir, e sussurra.

- Com o Bina…

- Que?! Fala mais alto né.

- Com o Bina!

Antes de responder, sua feição de raiva virou angustia, medo voltando a raiva, não mais pelo marido mas pelo nome que acabara de ouvir. Percebendo a tempestade de desgosto pintada no rosto dela, ele se apressa em interromper o trovão.

- Olha eu sei oque você vai dizer e pensa. Também sei o que ele fez com a Lúcia e o que você acha que ele fez. Ele tem problemas sim, mas agora esta se tratando, tomando remédios controlados, fazendo terapia.

- E você acredita nisso?! Esse homem não eh louco, ele eh um monstro!!

- Nada foi provado, eu não posso imaginar como deve ter sido pra você e sua família. Não acha que ta na hora de perdoar ele e parar de exclui lo da nossa vida? O Renato eh Tio dos nossos filhos Márcia.

- Não fala o nome desse fantasma na minha casa! E se você quer incluir ele na sua vida, faz isso! Mas ate onde eu sei ele não eh porra nenhuma da nossa família!!!

Com a discussão, ou guerra, a filha mais nova acorda e entra na sala, cambaleante e cocando os olhos.

- Mãe que gritaria eh essa, to tentando dormir.

Surpresos e envergonhados com a presença da filha, antes que pudessem responder, o filho mais velho se antecipa e responde sarcasticamente.

- Nada de mais, só estão discutindo sobre o maluco do tio Renato…

-Pedro…., Rafaela… vão para o quarto.

-Pô mãe deixa eu acabar a partida aqui, não posso sair ag….

-JOÃO PEDRO, QUARTO AGORA!!

-Nossa ja vou, deixa eu desligar aqui né. Vamo Rafa, parece que alguém vai dormir no sofá. - susurra.

Com os olhos arregalados ela da meia volta e desiste de pegar um copo d’gua; ou fazer qualquer outra pergunta.

- Bruno, nossa conversa ainda não acabou.

-Marcia eu…

Ela se aproxima novamente, sussurra meia duzia de palavras e volta pro quarto, onde bate a porta e vira a chave. Toda a postura e autoridade que restavam nele, foram tomadas com duas frases.

Enquanto Bruno ia dormir no sofá, Renato terminava de pagar a conta no bem-te-vi, o pé sujo onde os dois estavam a pouco.

-Valeu Chicão, leva o troco de gorjeta que hoje eu to feliz! Portuga, forte abraço, semana que vem tamo ai pro jogo heim!

-Valeu Bina, vou guardar pra mais tarde ali na Rua das Gimba.

-Vais pela sombra heim o muita lata!

Logo em seguida atravessou a rua e pegou um ônibus qualquer na direção oposta em que vinha mais cedo no inicio da noite.

Ia sonolento, recostado cabisbaixo no banco , meio bêbado, tentando não dormir e perder o ponto.

“Meu ponto é depois da segunda curva, não posso dormir.”

Desce do ônibus, vai esbarrando nos postes de luz, quase tropeça em um mendigo desavisado, esbarra na carrocinha de cachorro quente e começa a subir uma ladeira comprida. Por todos os lados, estruturas modernas e espelhadas que um dia já foram casebres e pequenos prédios, no topo da ladeira, espremido entre dois arranha-céus, uma passagem estreita para o ultimo monumento do seculo xx, um prédio de quatro andares, velho, acabado, caindo literalmente aos pedaços e sujo. O portão é de grades de ferro igualmente velho e acabado. Qualquer dia desses não vai precisar de chave pra entrar, pra que também? Ele é o único do edifício.

Vai subindo as escadas de concreto, cheias de limo, musgo, baratas e insetos. O corrimão não existem mais, luzes? Só a da lua mesmo, que atravessam as pequenas janelas com feixes cálidos. Primeiro, Segundo, Terceiro. Parece que a cada andar a situação fica pior, menos claridade, mais sujeira. Ele mora no quarto no numero 402, a porta à esquerda. Na hora de enfiar a chave, precisão cirúrgica.

-Olha que me veio me receber! Estão morrendo de fome aposto. Deixa eu ligar as luzes.

Dois gatos desesperados de fome ou atenção veem recebe-lo na porta. Um deles pequeno e minguado, bem magricelo, camuflado na escuridão que inundava a sala. O outro branco, imensamente gordo e peludo.

A luz se acende e o apartamento? Impecável, limpo, arrumado, decorado, nada fora do lugar; um milimetro que seja.

-Cuidaram direitinho da mãe de vocês? Espero que sim.

Agora, na claridade, sua expressão mudara completamente, seu rosto cansado desapareceu, sua postura era confiante, agressiva e parecia estar tão sóbrio quanto os felinos. Após de dar comida a eles e ajeitar uma coisa ou outra, abriu a geladeira semi vazia pegou uma maça e fechou, se dirigindo para o banheiro em seguida.

Igualmente organizado, branco, desinfetado. Lavou o rosto, escovou o dente meticulosamente. Fio dental, escova, pasta, listerine. Serviço completo. Depois de limpar a pia, foi pro quarto. Colocou a carteira , as chaves e o celular no criado mudo ao lado de outros dois celulares, tirou a roupa e deitou na cama. Meteu o plug do carregador em um dos celulares , fechou os olhos e respirou fundo.

Em um do celulares que ele não estava portando naquela noite apita.

“Você foi adicionado ao grupo “Galera Marota””

A luz do aparelho ilumina seu sorriso nefasto enquanto vira se para o lado.

-É Lulu, parece que encontraremos com a sua irmanzinha querida e nossos velhos amigos logo mais. Boa noite querida.

Uma nuvem tampava a lua e lentamente vai saindo do caminho e iluminando o travesseiro da sua esposa, ele beija sua testa e se volta para dormir. Mesmo naquela penumbra, a pele dela reflete como a própria Lua. Isso porque a pele dela não era pele nenhuma. Era o reflexo de um crânio, apoiado no travesseiro, como um troféu.

Guilherme Rabelo
Enviado por Guilherme Rabelo em 08/04/2016
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