O CADERNO

Não deixava ninguém ver o que tinha naquele caderno. Uma espécie de diário. Ali, todos os seus segredos. Inclusive o maior deles. Quando morreu atropelada, na saída do colégio, estava com o caderno. Que voou longe com o impacto. E desapareceu.

Mas quem daria falta daquele caderno? Denise era uma garota solitária e infeliz. Os pais nem aí para ela. Não tinha amigas. Sonhava acordada com um garoto que, como todos, só fazia rir dela. A rolha de poço, a hipopótama, a elefanta, o botijão de gás.

Denise aliviava as dores comendo. Doces, salgados, as mais variadas guloseimas. Não bebia água, só refrigerante. Obesa, chamava atenção por onde passava. Uma aberração da natureza.

Caio era a paixão de Denise. Justamente o mais bonito da escola, o mais cobiçado. Que gatinho! Que olhos aqueles do Caio, que olhos! Daria tudo por um beijo de Caio. Mas esse era um sonho impossível.

– Isso pertencia à sua filha. Acho que gostaria de ficar com ele.

E uma colega de classe de Denise passou às mãos da mãe desta o tal caderno. Ainda no velório. O caixão maior para suportar o corpo tão pesado.

Só um mês depois, a mulher teve a curiosidade de abrir o caderno. Leu trechos aleatórios:

“O Caio é tão lindo, tão lindo! Se ele ao menos conversasse um pouquinho comigo, me desse um minutinho de atenção... Mas ele parece ter nojo de mim. Como eu sou infeliz! Por que eu não morro logo?!”

“Acho que ele não me quer. Foi tudo um sonho. Um sonho lindo, mas um sonho. Queria reviver eternamente aquela tarde!”

“Enjoada de novo. Vomitando, indisposta. Detesto ficar dodói.”

“Como eu fui idiota, babaca, otária! Eles devem ter rido muito de mim. Que ódio!!! Passei o dia trancada no quarto chorando. Meu travesseiro está molhado de lágrimas. Por que as pessoas são tão cruéis? Então é isso que o meu coração vale? Uma caixa de Big Apple?”

“E agora? O que eu faço? Meu Deus, me ilumina!”

“Eu sou uma covarde mesmo. Mas como eu poderia? Aquele lugar era imundo...”

“Ainda bem que minha mãe não presta atenção em mim. Ser gordinha pelo menos nesse caso me ajudou. Ainda não sei o que fazer. Meu Deus, me dá uma direção. Se pelo menos eu tivesse alguém pra desabafar...”

“Meu pai não pode saber, minha mãe não pode saber, o Caio não pode saber. Ninguém pode saber. Nem Deus. Às vezes acho que Deus não existe.”

“Nem acredito que minha mãe vai viajar por três semanas. Obrigado, Senhor, por ter posto a Adriana no meu caminho. Vai ser melhor pra todo mundo, tenho certeza. Agora é rezar pra dar tudo certo. Tem que dar!!!”

“Chorei muito hoje, foi muito triste. Eu não queria fazer isso. Deus sabe que eu não queria. Puxou o pai, tão bonitinho! Não gosto nem de lembrar. Mas vai ser melhor pra ele. Que Deus o proteja e o faça feliz!”

Abraão Baêta
Enviado por Abraão Baêta em 02/06/2016
Reeditado em 02/06/2016
Código do texto: T5654793
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