A lápide de mármore rosa

Os dois irmãos gêmeos passavam dos oitenta anos e moravam juntos num pedacinho de terra nas proximidades do perímetro urbano de Londrina, cuidavam da criação de galinhas, de alguns porcos magros, de uma minguada hortaliça, de umas poucas árvores frutíferas e do cavalo que puxava a carroça para serviços de baldeação de entulhos dos moradores da cidade. Mas raramente os velhinhos pegavam no batente, o dinheiro da aposentadoria por idade era uma mixaria, é verdade, mas bastava para ambos: compravam uma peça de roupa só quando a do corpo havia se transformado em molambo, comiam pouco, o suficiente para um homem ficar de pé, e coisas simples, um prato de arroz com feijão e um ovo estrelado era uma iguaria e tanto. A luz era de lamparina, a água de um poço cavado entre as pedras até encontrar um veio a uns nove metros de profundidade. Um chamava-se Cosme, o outro Damião. Cada qual tinha o seu hobby. De manhãzinha, depois de tomarem uma caneca de café, ambos sentavam-se em seus banquinhos de madeira, ali no alpendre, e protegidos pela sombra entregavam-se aos seus afazeres sem tomar conhecimento dos dias compridos – Cosme entalhava cabeças de bode, vaca, onça e outros bichos em pequenos pedaços de pau, Damião usava formão e martelo para cinzelar em pedras, nunca maiores que uma mão fechada, imagens de santos ou de amigos já mortos. Cada qual queria humilhar o outro com um trabalho que beirava à perfeição, competiam com tamanha e silenciosa rivalidade que o produto final cheirava a ódio – pois é de senso comum que o ódio tem a virulenta flagrância do capeta; às vezes Cosme demorava semanas para conseguir reproduzir num toco os olhos meigos e o bico recurvo de uma arara; às vezes Damião precisava de um ou dois meses para esculpir com infinitos detalhes o rosto de uma pessoa que conhecera durante suas andanças pelo mundo. Quando chegava a época das festas natalinas, dona Arminda, presidente do grupo de arrecadação de objetos para o leilão em prol dos necessitados do município, vinha com a Kombi recolher as peças. E vinha preparada para recompensar os velhinhos – no mês de dezembro deixava de depilar os sovacos e os mostrava aos irmãos. Isso é o quanto bastava para os dois alimentarem nebulosas fantasias sexuais até a próxima visita, no final do ano seguinte.

Na juventude Cosme e Damião tinham formado uma dupla sertaneja e faziam algum sucesso nas redondezas cantando em festas de reisados, festas juninas e bailes de fins de semana nos bairros de Londrina, nas fazendas e sítios. E se apaixonaram por Cesária, jovem prostituta que ganhava a vida no desmiliguido bordel de dona Jandira. A moça – sem perspectiva de futuro, cansada de ter o cangote babujado por homens nojentos de bêbados e de levar todos os dias na frente e atrás –, não se mostrou indiferente aos avanços dos rapazes, aceitava com prazer os presentes que lhe eram ofertados, o grande problema é que ambos compravam mimos exatamente iguais. Um dia Cesária exigiu que lhe trouxessem cada qual uma coisa diferente, a melhor dádiva falaria mais fundo ao seu coração. Cosme lhe trouxe um corte de cetim vermelho estampado com grandes rosas amarelas; Damião optou por presenteá-la com uma muda de orquídeas brancas. E Cesária não teve dúvida, escolheu Cosme. Em poucos meses o gêmeo felizardo arranjou um trabalho sem registro de carteira na Serraria Borges & Irmãos, comprou o meio alqueire de terreno pedregoso onde tudo o que se plantava só nascia por milagre, construiu o rancho, tirou Cesária do puteiro e amasiaram-se. Um ano depois se casaram no civil e religioso.

Damião continuou a carreira musical cantando suas músicas sertanejas sem a companhia do irmão e, seja dita a verdade, se deu muito bem, tinha uma voz vigorosa, entristecida, própria para as melodias de paixão e traições; ganhava seus cobres – com a mesma irregularidade dos tempos da dupla – e os dissipava com a sanha dos que não mais se importavam com o dia seguinte. Os sobreviventes daquela época ainda se recordam dos porres homéricos de Damião nos bares mal-afamados da cidade, varando as madrugadas com o violão ao peito chorando as mágoas lacerando-lhe o coração. Mais que dores do amor não correspondido, feriam-no a felicidade do casal Cosme e Cesária. Porque, sim senhor, eles viviam harmoniosamente.

Um dia Damião ensacou a viola e rumou para a rodoviária, os olhos ardentes de cachaça, os passos trôpegos, os cabelos desalinhados, a barba por fazer, a roupa amarfanhada, tomou um ônibus qualquer que acabara de estacionar e sumiu no mundo. Os antigos contam que assim que o veículo partiu, Damião meteu a cabeça na janela lateral e amaldiçoou todos os moradores que ousavam lançar-lhe um olhar de singela curiosidade, todas as árvores ressequidas das calçadas, todos os animais domésticos que ciscavam no capim à beira da rua de terra batida ou chafurdavam na imundície de algum esgoto a céu aberto – aos berros prometia nunca mais sujar os sapatos com o pó vermelho de Londrina.

Cinquenta anos após estava de volta. Numa manhãzinha Cosme, viúvo há mais de dez anos, estava jogando uns punhados de milho para as aves quando viu caminhando em sua direção um mendigo – tal o estado das roupas de Damião – calçando um par de chinelas de couro endurecido e sem nenhuma bagagem. Apesar do longo tempo de separação, reconheceram-se imediatamente. Não houve abraços nem sorrisos. Mediram-se da cabeça aos pés e viram que não se diferenciavam no aspecto físico: ambos mostravam-se esqueléticos, os corpos tinham se encolhidos os mesmos centímetros – haviam sido castigados pelas vicissitudes da vida com a mesma intensidade.

– Entre e tome uma caneca de café. Estou ocupado com a criação – disse Cosme.

Foi o que fez Damião. Depois lavou uns pratos de plástico com restos de comida que jaziam sobre a pia, avivou o fogo nas achas enfiadas na boca do fogão a lenha na esperança de espantar o frio eterno alojado nas juntas do corpo, sentou-se numa cadeira encostada à parede e ferrou no sono – só foi acordar por volta do meio dia, alertado pelo sentido olfativo. Viu as panelas em cima da chapa do fogão com o alimento fumegante, fez um prato com arroz e cenoura, feijão mulatinho com charque, foi para a mesa, pegou umas fatias da salada de tomate, comeu como há muito tempo não fazia, encheu a caneca com um resto de café, bebeu, saiu para o quintal e lançou um olhar comprido pelo terreno pedregoso, não viu nem o cavalo nem a carroça, sinal que o irmão estaria fazendo algum carreto. Retornou à cozinha, sentou-se na cadeira, ajeitou os trapos no corpo e voltou a dormir. Por volta das quatro da tarde acordou, sentindo-se bem, o corpo descansado após a longa jornada. Remexeu nas cinzas do fogão à procura de brasas, encontrou algumas, jogou gravetos em cima, assoprou suavemente até a chama brotar trêmula e começar a devorar os galhinhos – colocou achas, o fogo ficou forte, intenso, lambendo tudo com voracidade. Buscou um balde de água no poço, pôs para amornar numa grande panela de alumínio – enquanto isso não acontecia, foi ao quarto do irmão e pegou uma troca de roupas limpas. Então foi tomar banho no puxadinho com um chuveiro precário feito com uma lata de vinte litros com uns furinhos na base. Quando Cosme chegou, ao entardecer, o jantar estava pronto: um ensopado de abóbora madura com pedaços de linguiça, arroz e o indefectível feijão. Jantaram em silêncio; depois, na sala, acomodaram-se em cadeiras em torno da mesa, Cosme ligou o rádio a pilha transmitindo A Hora do Brasil; em seguida sintonizaram uma emissora AM e se deleitaram com músicas sertanejas até as nove e trinta da noite. Sem combinação prévia, foram para o quarto de Cosme e deitaram-se na cama de casal, vestidos, um com as costas voltadas para o outro. Damião acordou primeiro, por isso fez o café e tratou da criação. No dia seguinte, foi Cosme quem despertou com o canto do galo – dirigiu-se à cozinha, acendeu o fogo, passou o café, bebeu uma canecada, saiu para o quintal e alimentou os bichos domésticos. E assim viviam há mais de cinco anos.

Foi uma pedra no meio do caminho, literalmente, que abalou o convívio de ambos. Numa manhã do comecinho de outubro tinham realizado na cidade um trabalho de carreto e, por volta das dez da manhã, retornavam para casa quando alguma coisa rosa choque faiscando ao sol atraiu os olhos de Damião.

– Para a carroça – disse a Cosme. Assim que o cavalo imobilizou-se com os puxões da rédea, Damião saltou afoito do veículo e correu trôpego pela estradinha de terra, o coração aos pulos ao identificar o objeto, assim que se aproximou. Era uma pedra de mármore rosa choque. Não uma pedra qualquer, era uma lousa tumular maravilhosa, do tamanho de um assento de cadeira, tão polida que parecia um espelho. E não tinha nenhuma inscrição. Com dedos de escultor experiente, Damião acariciou a face da pedra como quem oferta toda a ternura do mundo à amada. E visualizou seu nome e um epitáfio escritos caprichosamente na lindeza daquela planura. Abarcou a pedra com força sobrenatural e a carregou para a carroça. Sentou-se ao lado do irmão com um sorriso que há muito, desde a juventude, não lhe resplandecia no rosto.

– O que é aquilo? – perguntou Cosme enquanto tangia o cavalo.

– Uma lápide. A minha lápide.

– Grande merda! – rugiu Cosme, a voz carregada de inveja.

Quando chegaram a casa, Damião colocou a pedra em cima do banquinho, ali na varanda, depois buscou um balde de água, uma bucha e sabão, sentou-se no chão, o móvel entre as pernas abertas, e começou a tirar as nódoas da lápide. Esfregou vigorosamente as manchas enquanto assoviava afinadamente melodias do seu tempo de cantor sertanejo. Sentado no outro banquinho, Cosme olhava o irmão sentindo o gosto amargo da cobiça lhe subir do estômago para o céu da boca. Damião terminou a limpeza, observou longamente o trabalho bem feito, voltou-se para o irmão:

– Vá buscar o formão e o martelo.

Cosme nem se mexeu.

– Só se você escrever o meu nome também – disse.

– Nem pensar.

– Por quê?

– Por quê? Porque não quero o nome de um ladrão perto do meu.

– Ladrão? Nunca roubei nada na vida!

– Você me roubou a Cesária.

– Isso não é verdade, Damião...

– É a pura verdade. Vá logo pegar minhas coisas, mas que caralho!

Cosme levantou-se do banquinho e foi buscar o formão e o martelo na edícula onde guardavam suas coisas de artesãos – espumando de ódio. Voltou com uma velha garrucha engatilhada. Damião nem olhou para Cosme quando pressentiu sua presença às costas, apenas estendeu a mão para acolher os instrumentos. E recebeu um tiro nos miolos. Tombou a cabeça estourada sobre lápide, estrebuchou e morreu – as pernas distendidas nas laterais do banquinho. Cosme ergueu a cabeça do irmão segurando pelos cabelos emplastados de sangue e com a mão livre puxou a lápide rosa choque, o peito arfando por causa da adrenalina a mil. Deu alguns passos abarcando a pedra e caiu no quintal bem no meio de umas moitas de alecrim selvagem. Largou a lápide e engatinhou-se em direção ao alpendre, o coração em ritmo cada vez mais acelerado. Uma pontada aguda o imobilizou quando chegava perto do irmão.

Quando veio buscar as esculturas para o leilão, dona Arminda surpreendeu-se com os animais domésticos, inclusive o cavalo, muito ariscos, como se tivessem retornado à ancestral origem selvagem, depois encontrou o que restava dos dois irmãos comidos pelos urubus, vermes e outros bichos. Sentiu uma súbita tristeza, lembrando-se de como ficava excitada ao mostrar os sovacos peludos para os taradinhos. Em seguida buscou as peças produzidas naquele ano e armazenadas na edícula, presumindo sensatamente que o falecimento dos artistas iria render lances espetaculares entre os compradores. Então viu a pedra rosa choque parcialmente encoberta pelo mato e apresentando umas manchas escuras de lama, fezes de animais ou mesmo sangue. Não teve dúvidas, carregou-a para a Kombi. De retorno à cidade, relatou ao delegado o encontro dos cadáveres e foi para casa. Levou a lápide para a oficina aos fundos, onde seu filho montara uma oficina de consertos de motocicleta, e pediu-lhe que a fragmentasse depois de uma lavagem caprichada. Uma hora depois recolheu os pedacinhos da pedra numa bacia, foi para a sala de visitas da casa e os espalhou cuidadosamente no fundo do seu grande aquário. As partículas rosa choque da lápide combinaram maravilhosamente com os coloridos peixinhos tropicais.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 15/06/2016
Código do texto: T5667770
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