O vulto escapa pela Janela

Eu não sei quem você é, mas você sabe bem, muito bem quem eu sou. Em detrimento da verdade, eu também sei quem sou, por sinal, muito mais que o seu conhecimento sobre mim. Em contrapartida, não sei quem você é. Verdade! E amar quem não se conhece, faz bem à contradição vivencial e por incrível que possa nos parecer, faz bem à espécie pensante do planeta. Amar sem ser amada: por você não posso afirmar, mas por mim, sim! Se não é seu caso, é o meu, e duvido muito que conheça pormenorizadamente com quem e sobre quem andas! Olha, para ser sincera, ninguém se conhece, quanto mais a outrem. Afinal, servimo-nos, só e somente, das simplórias imprevisibilidades das imaginações. Somos falhas em nossas intuições. E se nem tudo que penso ser, sou; ainda assim, inexplicavelmente, posso te amar através do postulado de dois pesos e duas medidas. Do tapa e o sopro. Do apanhar e sorrir. Do sangue e o ralo leite condensado esparramando sobre os lençóis. Dos shoppings, praias, viagens e o sexo obrigatório, aquele sexo mecânico de abrir as pernas e fechar a cara numa carranca assombrosa; ponho-me a esperar pacientemente a finalização da tarefa a qual me submeti. Negar, dizer não, é correr perigo. Essa vida que escolhi é pior que o mundo do tráfico: entrou, sair é difícil. Impossível. Sim, lamentavelmente, não tenho vergonha de abrir publicamente o que sou para você.

Um vulto intruso assalta meu quarto diariamente, mais comumente à noite, adentrando-o pela janela. Mas nada d´isto me mete medo; o medo reside no que poderá acontecer de pior. Vultos são temperamentais, estranhos, mutáveis e sofrem do Transtorno da Bipolaridade. Às vezes me arrependo de ter caído em sua lábia sedutora, macia, que chegava leve como pluma aos meus ouvidos, fazendo com quê eu melasse meus carnudos lábios. Rendesse-me fácil aos seus caprichos e dengos apetitosos. Tudo isto ficou no passado, e agora encontro-me num arremedo de terror e ira. Tornei-me solo árido. Seco.

Em certos casos, pode-se falar, mas jamais pensar, e ao decifrar esse pensamento insultuoso proferido pela visitada, um berro fúnebre escapuliu pela janela, ganhando a imensidão do mundo, indo alojar-se no IML; que por coincidência, fora plantado não mais que 20 m de distância dos encontros.

Não resistiu. Calou-se para sempre; morreu de arrependimento, porém, livrou-se das malquerenças impetuosas daquilo que amou, e com o tempo aprendeu a ter ojeriza. Nojo. Paura.

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 20/07/2016
Reeditado em 22/07/2016
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