Sangue de Cristo

A casa era simples e pequena, do muro amarelo e portão de ferro. Sua moradora era uma senhora crente. Todos os dias ela entregava seu jejum e saia de casa, voltando somente a noite, por vezes demorando mais por ocasião de algum evento na igreja.

Sempre bem vestida: uma saia comprida, blusa branca e coque. Era conhecida por todos mas pouca gente entrava na sua casa, somente irmãs iguais a ela.

Quando a primeira estrela apareceu no céu, aquela senhora chegou em casa passando o cadeado no portão, atravessando o pequeno jardim, trancando a porta e as janelas.

Um homem, fora do seu campo de visão, já a observava há muito tempo acompanhando sua rotina. Seus pensamentos obscuros retornavam após um trago. A droga queimava a boca e as narinas, envenenava o cérebro e danificava o corpo. O coração acelerava, a pele suava excessivamente e seus olhos tornavam-se vermelhos. A cor da pele ébano combinava com o negro do céu estrelado, e a lua cheia, com o branco do seu sorriso malicioso.

A senhora era viúva, há muito tempo sozinha; o marido morreu e os filhos estavam todos casados. O eco da sua voz preenchia todos os cômodos. Não possuía cachorrinho nem pássaros, e quando o silencio parecia incomodar, ela cantava em alta voz:

"Fica Jesus mais um pouquinho. Não vá sem eu antes lhe falar. Como Tu és maravilhoso! Tua presença alegrou este lugar..."

Após o jantar, ela apagou as luzes e seguiu para o quarto onde tirava um momento de oração.

O jardim da casa daquela senhora era pequeno porém encantador: o corredor repleto de plantas de tomates misturado com o de flores multi-cores de perfumes variados. Lá tinha botões de alface, tufos de rabanete, cenoura, alcachofra e outras hortaliças. E mais duas árvores que balançavam com o vento.

O vento trazia nuvens pesadas de chuva.

O homem encarou a casa, olhou a rua que ficava deserta e esperou mais um pouco. O lugar não tinha cães ou cerca eléctrica nem cacos de vidros no muro.

De forma ligeira, o homem rodeou toda a casa. Pulou o muro, foi até a porta da frente e forçou a maçaneta mas sem sucesso. Surgiu uma ideia inusitada: entrar pelo telhado. Percebeu que as telhas eram velhas e quebradiças. Com passos leves como os de um gato, ele passeou no telhado incapaz de adivinhar onde era a sala ou a cozinha. Com agilidade, ele desceu e quando seus pés pisaram no chão, a chuva caiu.

Com a chuva torrencial como aquela, os buracos nas telhas ficaram maiores. A roupa úmida d'água em contato com o vento frio fez arrepiar os pelos do seu braço. A luz do poste lá fora atravessava a janela de vidro, o tecido fino da cortina e dava contorno aos poucos moveis: uma TV pequena, uma máquina de costura, um baú de madeira no canto da parede, roupas encima da mesa e um ferro de passar. Antes de se decepcionar, o ladrão pensou na possibilidade de haver um cofre no quarto.

Um trovão o assustou e clareou tudo.

De repente, ele escutou uma batida na porta da frente, a porta do quarto da senhora estava encostada e ele pulou para dentro; e fechou a porta. Tirou a faca do bolso e virou para pegar a pobre a mulher quando

a viu deitada na cama coberta de sangue da cabeça aos pés. O desespero foi tão grande que ele saiu rapidamente do quarto. Ele pensou que se alguém tinha chegado primeiro, roubado e matado a mulher, estaria escondido e ele seria o próximo! O ladrão não conseguiu abrir a porta então arrombou com força e saiu.

Na saída, deu de cara com um homem muito alto e vestido de branco.

- Ela tá morta, cara! Não fui eu! Não me prenda! Eu não fiz nada!

- Vá embora e não volte mais! - respondeu o homem.

O ladrão correu até perder o fôlego, e chegando a certa distancia, ao olhar para trás não viu mais o homem de branco.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 29/12/2016
Reeditado em 23/02/2021
Código do texto: T5866947
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