Fantoches

A cabana era um amontoado de toras sobrepostas uma sobre a outra. Fora construída em uma clareira no meio dum bosque sombrio e distante há muito tempo, tanto, que havia nas toras um musgo crescendo que a cobria tornando-a quase inteiramente verde. Era como se ela fosse um animal metamorfo e quisesse se esconder no ambiente em que estava inserida. Por quilômetros e quilômetros não havia nada por perto, apenas sons distantes produzidos pela natureza embrutecida daquele lugar inóspito e desabitado. Ali, até os pássaros pareciam pedir permissão para cantar. Não havia muitas variações. Os dias eram úmidos e o entardecer lúgubre. A noite descia rápida, devido às árvores altas e centenárias. O dia custava a chegar. Era preciso ter nascido ali ou criado raízes profundas, muito profundas, para sobreviver às intempéries do tempo e da hostilidade daquelas terras, que cobrava um preço alto pela sobrevivência dos que conseguiam manter-se vivos.

Nascera ali. Esta era a vantagem que tinha acima dos outros. Fazia parte daquele lugar e aquele lugar fazia parte dele. Era duro, embrutecido, vivia com pouco numa praticidade que daria inveja há muita gente. Quando você se acostuma com o pouco, não sente necessidade de coisas que não conhece.

Era um lugar fácil para se perder. Havia placas alertando o perigo de quem se aventurasse a entrar, um labirinto sem volta. O isolamento confundia e dificilmente era possível encontrar a saída sem um guia.

Poucas vezes precisara se ausentar e não gostava de ficar longe dali. Tinha medo de lugares abertos ou de ficar cercado de pessoas, não era seu ponto forte e sentia-se desapropriado de seu território. Não era um lavrador, mas produzia o que precisasse para viver. Caçador por instinto. Jamais passara fome em sua simplicidade e isso lhe bastava.

Tentara seguir a profissão do pai, taxidermista, mas achara enfadonha e monótona aquela arte, onde os animais eram apenas arremedos deles mesmos. Ele não, era um artista nato que enveredara para outro tipo de esplendor. Algo superior que achava glorioso em sua magnitude. Poderia parecer estranho um homem rústico e ignorante com mãos capazes de tanta delicadeza. Ele resolvera ser criador, criador de vida. Dizia para si mesmo cantarolando.

- Sou um criador, pai dos seres que crio, senhor da própria criação...

Em seu orgulho de criador sabia que era o melhor no que fazia, talvez fosse até mesmo o único. Gostava de pensar assim e a satisfação que sentia ultrapassava até mesmo seu sentido de posse pelo que criava. Não havia outro igual a ele, porque criava o incriável com suas mãos. Eternizava o que fenecia.

Ele tinha um dom.

Nesses momentos de euforia, em que tinha consciência de seu poder, batia com os punhos fechados no peito e bradava com todas as forças dos pulmões.

- Eu tenho o dom!

Sua habilidade consistia em criar pequenos seres a partir da pele do que caçava. Não um simples enchimento de seres mortos, mas a recriação do ser. Era uma arte detalhada, que lhe custava grandes preparações, minuciosos e delicados acabamentos, além de paciência, até finalizar um fantoche poderia demorar meses ou até mesmo anos, dependia muito da criação do momento e do que precisava para finalizá-lo.

Depois da morte da esposa e da filha, a solidão e a reclusão quase o enlouqueceram por completo. Um dia em que a sanidade lhe fugia, teve a ideia. Desde então, não parara mais. O serviço dispensado preenchera todo o seu tempo e era todo o objetivo de sua vida agora...Seus fantoches.

Companheiros incapazes de praticar escárnio ou desafiá-lo. Estavam sempre ali a esperar por ele quando se ausentava para caçar. Nunca iam embora e com o passar dos anos aumentavam de número. Havia mais de meia dúzia deles no momento, distribuídos pela cabana. Fazendo companhia e ocupando os espaços antes vazios. Seres quase perfeitos. Cuidara de todos os pormenores. Quando manipulados suas bocas abriam e fechavam, precisava apenas imprimir-lhes a voz que desejava.

Eram seus únicos amigos.

Muitas vezes acordara no meio da noite e podia jurar que ouvia a conversa entre eles, sussurradas, com leves risinhos marotos. Seus sorrisos petrificados no rosto, suas peles lisas e macias, isso o fascinava e o fazia sorrir. Imaginava a vida que eles tinham e sua independência quando ele fechava os olhos e dormia. Tinha muito orgulho de sua arte. Às vezes se sentava e ficava por muito tempo observando-os, interagindo com eles. Quando sentava à mesa sempre havia alguns ocupando as cadeiras vazias.

Cada detalhe que criara dera àquelas criaturinhas... uma personalidade exclusiva, cada uma única que ele identificava tão bem. Eram perfeitos, desde as singularidades das mãos, dos dedos e dos olhos. Ele os criava. Sentia-se poderoso. Poderoso não, glorioso seria a palavra mais adequada.

Todos os dias antes do nascer das manhãs saia para verificar as armadilhas e elas sempre lhe garantiam alimento farto. Eram coelhos, castores, esquilos, lobos e até alguns animais mais exóticos. Dependia muito da estação do ano em que estavam e, com certeza, da sorte que tinha. Era exímio com uma besta e capaz de andar tão silencioso quanto uma sombra.

Não podia reclamar, vivia a vida que sabia viver. Os dias passavam mansos, transformando-se em meses e os meses em anos. A mesma rotina num ciclo infinito do tempo. A parte que ele mais gostava era quando algum desavisado invadia seu território e o fazia de refúgio. Abalava sua estrutura de dias iguais, esses eram dias de glória. Ele tentava aprender o que podia sobre a vida dessas pessoas. Era um bom anfitrião, era o que eles diziam. Todos eles. Sabia acolher e contar histórias à beira do fogo à noite. Eles sempre riam delas e as chamavam de lendas. Ele sorria e olhava para a lua. “Como eram ingênuos e crédulos os seres civilizados”. Chegara a conhecer um jovem escritor que ficara encantado com sua tagarelice, sua vida e a capacidade que tinha em criar. Dissera que quando voltasse à cidade escreveria sobre sua vida, seus fantoches, sua arte, chamaria o livro de "a materialização da arte". Gostara de verdade daquele rapaz. Ele admirara sua arte com sinceridade, mas nunca escrevera nada sobre ela.

Assim passaram os anos. A vida brutal e isolada cobrava cada sopro de sua vida e de sua existência. Suas mãos sempre tão hábeis já estavam endurecidas e rígidas não conseguia costurar a pele como antes, os pontos antes invisíveis agora aqui e ali apareciam. Às vezes rasgava a delicada pele por um descuido, sentia-se frustrado diante dessas adversidades. A perfeição já não era mais possível e ficara matutando por muito tempo como poderia remediar esse mal. Até que a resposta veio a ele sem precisar procurá-la.

Ela apareceu num final de tarde. Ele jantava seu ensopado de coelho quando escutara os gritos ali perto. Gritos de uma mulher.

Saiu no encalço do som e como caçador experiente logo achou seus rastros e a encontrou. Deixou-se ficar nas sombras por um tempo como se estivessem jogando um jogo de gato e rato. Queria sondar a estranha antes de ser sondado. Observar sempre fez parte de sua vida. Ela estava suja e parecia mancar, usava um pedaço de madeira como bengala para se apoiar. Antes de aparecer ele fez barulho e chamou ao longe.

- Ei, está perdida? Precisa de ajuda?

Ela virou-se em direção de sua voz e seu rosto até então tenso conseguiu relaxar.

- Olá, estou aqui! Estou salva pensou com alegria.

- Está sozinha?

- Parece que não estou mais.

De inicio assustara-se do enorme homem a sua frente que mais parecia um urso com aquela roupa feita de pelos e barba e cabelos tão compridos. Mas ele fora gentil, disse que morava ali perto e poderia ajudá-la, teria o que comer e onde se abrigar.

Na beira da fogueira ela lhe dissera que costumava sair em excursões para tirar fotos, mas na primeira vez em que resolvera sair sozinha, se perdera. Rira de si mesma e ele gostou daquela musicalidade. O tom melodioso o fez sentir vivo novamente.

- Nunca tivemos fotógrafos por aqui antes.

- Acho que não deve ter muitas visitas.

- Ficaria admirada se soubesse.

Conversaram, riram e terminaram de comer. Como homem abrutalhado que era nestes momentos se mostrava terno, interessado no que ouvia e atento a seus movimentos. Dentro da cabana a escuridão era quase total e ele mostrou-lhe um nicho que chamava de cama e disse que ela poderia passar aquela noite ali. Ela não era uma mulher de luxos ou frescuras. Estava acostumada a dormir em barracas e ao ar livre. Tinha uma vida onde a natureza fazia parte de seu cotidiano, mas aquele lugar, mesmo que um abrigo lhe dava arrepios. E o cheiro! O que seria aquele cheiro? Não adiantava especular na escuridão. Teria que esperar a luz do dia para descobrir.

Foi o que aconteceu... Quando o sol finalmente resolveu aparecer pelas frestas entre as toras, entrando cabana adentro, acordou de modo leve e descansado. O pé doía menos. Certificou-se depois de fazer alguns movimentos. Então sentiu o cheiro e lembrou de onde estava. Ao percorrer os olhos pelo lugar não conseguiu acreditar no que via. Segurou com as duas mãos o grito que queria saltar de sua garganta. Não podia ficar histérica. Precisava manter o sangue frio. Era uma mulher prática e de pensamentos rápidos. Precisaria se manter assim se quisesse escapar daquele horror. Olhando para ela de todos os lugares possíveis naquele pequeno espaço havia bonecos monstruosos. Constatou, depois de analisar com um certo receio alguns deles, que eram feitos de pele humana. Os olhos injetados pareciam vivos a seguir seus movimentos e para seu horror percebera quer eram cabelos humanos.

Ao ouvi-lo entrar ela levou um susto e deixou cair a boneca que segurava. A boca ficou aberta num esgar de sorriso e os olhos a fitavam, parados e acusadores.

- Vejo que acabou de conhecer minha esposa.

Ela recuou até suas costas encostarem à parede... estava encurralada. Não tinha mais para onde ir.

Ele foi apresentando os bonecos pelos nomes e o que faziam: a filha, o casal de excursionistas, um caçador, uma família desavisada que acampara por ali e finalizou com o escritor.

Ela emudeceu. Seu terror era tanto que apenas seu instinto de sobrevivência a mantinha com forças para não desmaiar.

- Você é a solução que pedi, é a resposta que esperava. Vou passar a você meu dom e você me ajudará a perpetuar a arte que comecei.

- Por quê? Ela perguntou com voz firme. Por que matou sua esposa, sua filha, todos eles?

- Não os matei... lhes dei a imortalidade!

Ele acreditava que aquelas caricaturas de rostos, de alguma forma, ainda viviam. Era medonho. Não havia chance para ela de escapar, mas tentaria argumentar, ganhar tempo, pensar num plano. Deveria haver um jeito.

- Não posso ajudá-lo. Preciso voltar. Estão me esperando em casa, sentirão minha falta, me procurarão.

Ele a olhou incrédulo. Como ela poderia recusar a generosidade dele de ensiná-la uma arte que passara a vida toda para aprender e aprimorar sozinho? Definitivamente estava enganado. Não era a resposta que esperava. Não tinha a mesma sensibilidade que ele pela arte.

- Que pena! Você não é a pessoa certa. O dom não habitaria em você.

Ela começou a arrastar as costas até perto da porta. Quando a alcançou saiu em disparada floresta a dentro. Ele deixou que fosse, que corresse. Sentou com as mãos no rosto. Estava tão certo que seria ela. “Que desperdício!” Esperaria...Cedo ou tarde a pessoa certa apareceria. Enquanto isso pegou sua besta e partiu lentamente para a floresta. Tinha uma caçada para fazer.

- Esperem aqui, logo voltarei e trarei uma amiga para a nossa companhia. A porta da cabana fechou e os olhos vidrados ficaram novamente na semiescuridão.

Aguardando...

Tânia Mara Paula
Enviado por Tânia Mara Paula em 21/05/2017
Reeditado em 26/12/2017
Código do texto: T6005398
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