Ruído no Corredor #0

Não quero ir ao trabalho amanhã. Sei que é um sentimento comum e que todo ser que participa ativamente da sociedade convive com tal pesar dominical, mas, sinto este frio na espinha todos os finais de semana. Já deixou de ser normal há algum tempo. Hoje, por exemplo, é domingo e cá estou eu, deleitando-me com o pesar, enquanto preparo uma xícara de café fraco e morno, alguns pães com geléia de uva e a bandeja que comportará tudo até meu excelentíssimo quarto. Não posso esquecer do carregador do celular que está na sala. A única surpresa boa do dia é meu total desconhecimento em relação a grade de programação dos canais que assisto. Ah, claro, hoje será exibido um episódio novo de meu seriado favorito: como pude esquecer. Certamente atrasará a velocidade com que a segunda-feira chega.

Não faço a menor ideia de quando caí no sono, mas, acordei no meio da madrugada para ir ao banheiro e chegando no corredor, ao lado da porta a qual me separa do destino final, ouvi o ruído de um inseto. Cem patas de um inseto. Mil patas de um inseto. E estão próximas. A segunda-feira que aproxima-se já não é mais a culpada pelo nível elevado de pavor que ronda meu corpo. Quando os olhos se acostumaram à escuridão, pude notar que não era algo pequeno. Ali, parada feito uma tola, estiquei a mão em uma tentativa vã de descobrir o que era. Erro meu.

Minha mão agora arde e eu retornei para o quarto. Tranquei a porta e não sei bem quando poderei sair. Tentei ligar para a polícia, porém, acabou a bateria do celular e o carregador ficou na sala. Resolvi trazer o pote inteiro de geléia e esqueci do carregador. Ótimo. Ainda estou em meu pijama e não sei que horas são, pois não tenho relógios no quarto além do celular. Se não tivesse escolhido tomar meu café noturno na cama, nada disso teria acontecido. Mal lembro se o episódio estava bom. Talvez não teria nem levantado para ir ao banheiro no meio da noite, assim, deixando de encarar aquilo no corredor. Consigo ouví-lo passeando ali fora. Arrastando seu corpo, esbarrando em tudo o que encontra. Ou é uma centopéia ou uma taturana. Só pode ser uma taturana, afinal, fez minha mão queimar. A dor persiste, mesmo após enrolar a mão até o antebraço em um lençol velho. Não possuo a coragem suficiente para ver em qual estado ficou minha mão sob o lençol. Com a outra mão seguro a faca que trouxe junto do pote de geléia. Poderia ligar a televisão: algum canal deve ter o horário afixado na tela, especialmente se for tão tarde quanto aparenta ser. Melhor, poderia ligá-la para ter alguma companhia, mas temo que ao menor sinal de luz ou de vida aquele ser seja atraído para cá. Não o quero como companhia. Suponho que consiga arrombar a porta sem muito esforço se perceber que estou aqui.

O barulho intensificou e eu não aguento mais. Já amanheceu. Logo teria que sair para ir ao trabalho. A segunda-feira chegou e eu não sei se farei parte dela. Meus vizinhos devem estar ouvindo tudo: os ruídos passaram para estrondos e a porta do quarto começou a tremer. Me pergunto sobre o que eles irão pensar. Isso tem de ser um sonho, mesmo que seja um sonho vil. Não consigo acordar, mesmo assim. Acho que irei sair, mesmo que seja meu fim. A vantagem é minha: estou com a faca.

É isso, vou sair.

Girei a maçaneta, brandindo a faca no ar e escondendo a outra mão, sob o lençol, atrás das costas. Estava escorada ali, no lado oposto da porta, aguardando para que eu a abrisse. Antes de perceber o que estava ocorrendo, a taturana gigante despencou sobre meu corpo. É viscosa e queima. Cravei a faca em algum lugar dela, mas perdi a noção de em qual mão estava a faca. Meu corpo entorpeceu. Meu peito está apertado e tudo queima. Isto definitivamente não é um sonho. Consigo ouví-la, porém não a sinto. Consigo vê-la passando por sobre meu corpo, em meio à escuridão, esfregando-se nele. A faca não é metade da circunferência dela . Há um líquido esverdeado saindo de onde a faca ficou cravada. Não quero ir ao trabalho hoje assim. O roçar do que deduzo serem seus pelos é ensurdecedor, como o esfregar de papéis em grande quantidade. Minha visão escureceu completamente. Não desmaiei: consigo sentí-la passando por minha face, bem diante de meus olhos.

Que modo horrível de começar a semana.