O retorno

Aquele ao lado da minha cama era meu irmão. O único que restara de minha família. O único elo com o passado. Apesar de tanto tempo distantes agora estávamos juntos outra vez. Era estranho olhar aquele rosto quase desconhecido para mim. Seus traços amadurecidos e estranhos depois da experiencia da guerra. Diziam que a guerra matava as pessoas, mas o que não diziam é que a pessoa morria primeiro por dentro. Assim ele parecia, já meio morto. No fundo dos seus olhos que outrora tinham luz agora se via apenas a escuridão. Era com esse irmão que eu conviveria agora. Ele estava de volta e eu tentava me recuperar de uma fratura no tornozelo. Fora um descuido que me custava semanas de repouso. O médico fora categórico quanto ao descanso até poder usar as temíveis muletas. Então viera a carta de Enan dizendo que ele estava regressando... E consequentemente sua estranha pessoa.

Nossa casa, uma antiga propriedade herdada à gerações pela família, ficava em um lugar bastante ermo, separada por longos campos e intermináveis plantações, dando por fim aos pés de uma imensa floresta. No inverno e nos tempos das chuvas infindáveis ainda nos sentíamos mais isolados, as geadas e névoas frequentes, as temperaturas insólitas não facilitavam as visitas fortuitas e as idas à cidade.

Havia muito silêncio. Um silêncio verdadeiramente opressor, que às vezes a impressão que se tinha era que podíamos até mesmo ouvir a ausência do barulho, como se ele falasse através de sons e ecos secos longínquos. Para alguém que não estivesse familiarizado com isso poderia ser algo desagradável, assim como a falta de energia elétrica o era. Estávamos longe de consegui-la.

A lenda local, sim tínhamos nossa própria lenda, dizia que se firmássemos os ouvidos com atenção podíamos ouvir os lamentos dos perdidos ou mortos na floresta. Lembro de que ainda bem pequena ficava deitada por horas no capim com os olhos fechados e ouvidos apurados esperando os murmúrios dos condenados, mas nunca os ouvi.

Meu irmão definitivamente, não era mais o mesmo, mostrou-se bastante apreensivo e sua introspecção era quase um transe nos primeiros dias de convívio, mas era solícito em ajudar no que podia. A colheita já havia sido feita neste ano e tínhamos poucos animais, então o que mais havia era tempo ocioso. Enam preparava todas as manhãs uma refeição parca e sem atrativo, mas que na minha atual situação me deixava agradecida, era bom te-lo por perto, mesmo que fosse alguém tão acanhado quanto meu irmão. As noites, sentados de frente a lareira acessa, cada um se ocupava com seus interesses. Eu bordava algo a muito começado, com movimentos completamente automáticos ou lia livros que não me prendiam a atenção, meu irmão por sua vez fumava um cachimbo fedorento perdido sabe-se lá em que pensamentos. Nossa convivência era tensa mas descomplicada, não eramos como bons amigos e nem havia laços estreitos entre nós mas nenhum dificultava a vida do outro, e assim os dias foram passando e tornando-se semanas. Quando estava quase recuperada e já conseguia andar sem muletas comecei a subir ao andar superior que ficara abandonado da limpeza por algum tempo. Precisava ir com calma pois as dores no tornozelo o faziam inchar e a última coisa que eu pretendia era ter que ficar em repouso por mais tempo. Isso me trazia um sentimento de fragilidade, e eu abominava qualquer sinal por mais inócuo que fosse de fraqueza. Foi então, que certa tarde em que resolvera buscar a roupa de Enam e lavá-la antes das próximas chuvas que uma sensação de completa insegurança me perturbou. Ele não estava em casa e eu pretendia não incomodá-lo com detalhes de arrumação. A porta de seu quarto estava entreaberta e por isso não bati. Estava tudo impecável e a roupa por lavar esperava nas costas de uma cadeira. Coloquei-as no braço e já me virava para sair quando algo havia me chamado a atenção. Saindo por baixo do travesseiro havia um recorte de jornal. Talvez isso por si só, não merecesse um segundo olhar, se a foto estampada ali não fosse a minha.

Esse fato não me era estranho, pois numa cidade pequena qualquer coisa é motivo de notícia e meu acidente fora motivo de mexericos e falatórios por falta de noticia maior. Mas o que deixara meus joelhos bambos não fora isso, mas o fato de se tratar de uma notícia que havia acontecido a mais de dez anos atrás. A notícia com destaque em letras garrafais "Acidente estranho onde filha sobrevive" fora no mínimo inquietante. Por esta época acreditávamos que Enam estivesse morto, pois nunca respondera a uma única carta se quer, mesmo depois de ter sido ferido em campo de batalha e transferido para outra unidade. Deste momento em diante havíamos perdido contato completamente com ele. Aquilo abalara terrivelmente nossos pais.

Então de uma hora para outra, meu irmão egoísta e egocêntrico estava de volta. O filho pródigo desaparecido voltava ao lar, e com dados um tanto quanto curiosos. Encostei delicadamente a porta e sai.

Não havia no momento nada mais podia fazer.

Mesmo com a camaradagem tênue que existia entre nossa convivência a atitude taciturna de meu irmão não mudou. Seus olhos pareciam sempre estarem me observando e eu já não me sentia assim tão a vontade com ele debaixo do mesmo teto. Sempre que levantava o semblante de alguma tarefa que estava fazendo notava que ele disfarçava o olhar fixo que tinha em mim. Era algo um tanto quanto desconcertante. Queria abordar o assunto sobre o recorte de jornal, mas não havia como fazê-lo sem me sentir desconfortável. Havia perguntas que precisavam ser feitas mas tinha medo que isso o levasse a ficar em guarda contra mim. Mas a pergunta que rondava minha cabeça todo o tempo era: - Por que voltara depois de tanto tempo? Haveria um objetivo obscuro por trás disso? Comecei a sentir medo. A lembrança do acidente de meus pais voltava a me assaltar durante o dia e a noite tinha sonhos com ele. Sonhos não, pesadelos onde via seu vulto parado na cena do incêndio, observando. Aquele sentimento estranho que estava voltando a sentir era o mesmo que já tinha deixado para trás a tantos anos! Agora estava sempre em alerta e o mais pequeno barulho, me fazia pular. Era algo muito perturbador.

Sua presença me seguia, seus olhos me espreitavam. Comecei a suspeitar do motivo de sua volta com mais temor. Comecei mesmo a temer por minha vida e pela solidez que conquistara.

Certo dia, abalada telefonara para o xerife da cidade que era amigo de longa data de meus pais, e depois de algum rodeio de amenidades, perguntei se havia a mais remota possibilidade que fosse, de que meus pais não tivessem sofrido um acidente naquele dia, o dia que mudara o resto de minha vida.

- O que você quer dizer com isso, Maia?

- Não sei bem xerife. Eles poderiam ter sido... assassinados?

Ouve um muxoxo e uma tosse seca do outro lado da linha. Remexer em feridas era sempre doloroso.

- De onde tirou essa ideia?

Ao responder tentei por um sorriso em minhas palavras, para que elas saíssem menos preocupadas do que eu estava.

- Estou sendo boba, claro! É que tenho sonhado com eles. Esqueça estou ficando meio paranoica com essa chuva e esse nevoeiro que insiste em não nos deixar enxergar um palmo diante do nariz, isso deve estar afetando meus nervos.

Ele desligou. E eu voltara às minhas meditações.

Finalmente as monções se foram e a primavera estava despontando nos campos e nos brotos das árvores. O inverno definitivamente estava ficando para trás. Enam continuava reservado e passara a andar meio curvado como se carregasse um grande peso nas costas, seu cabelo crescera consideravelmente e sua barba estava muito mais cerrada. Era uma visão no mínimo deprimente, com a qual eu precisava aprender a conviver. Apensar desses percalços, parecia tranquilo e conseguíamos conviver com a reserva esperada entre duas pessoas sem grandes afinidades. Tentava me achegar a ele, ganhar sua confiança, sondar suas verdadeiras intenções, me esforçava para manter uma conversa interessada e casual, foi então que surgiu a ideia do licor.

- Cara irmã o que estamos comemorando?

Perguntei se precisávamos de um motivo e sorri-lhe abertamente para incutir-lhe segurança. Aquele era meu irmão e nada mudaria isso, nem sua ausência, nem a guerra, ou a morte dos nossos pais e nem o que quer que seja, que ele tivesse vindo fazer novamente em minha vida.

- Vamos brindar à vida.

Bebemos calados por algum tempo e então sugeri que olhássemos o álbum de fotos. Aquelas páginas amareladas contavam a vida da familia em diferentes espaços de tempo.

Fui buscar o álbum e ele mais querosene para o lampião. Ao retornarmos sentamos no tapete no chão, com nossos copos pela metade, aos poucos a noite foi adentrando pela janela e formando grandes sombras pelo aposento. Havia um cheiro bom de madeira queimando, o crepitar monótono do fogo e o calor. Calor que crescia e enchia o ambiente, que passou a ficar insuportável, como fogo queimando minhas entranhas, sentia meus olhos arregalando e a garganta fechando num sufoco agoniante por ar, uma dor pungente subia pelo estômago até minhas narinas. Havia algo errado. Algo muito errado estava acontecendo. Olhei para o copo em minha mão. Eu fora envenenada. O veneno estava em meu copo. Meu irmão parecia ausente à minha agonia e folheava placidamente o álbum. Comecei a engasgar e ele olhou-me então demoradamente, em seus olhos havia o lampeja da dúvida. Em desespero tentei segurar seu braço mas ele afastou-se e eu cai de bruços no tapete. Era tudo tão inusitado, e eu surpreendentemente via tudo acontecer em câmera lenta. Em meu pensamento apenas repetia freneticamente a mesma frase: - Estou morrendo, estou morrendo! Não podia crer naquele momento. Fixei os olhos quase sem foco já, em meu irmão e não havia em seu semblante qualquer vestígio de surpresa ou comoção. Pensei que seria o fim quando senti que me erguia do chão e colocava os dedos em minha garganta.

Vomitei febrilmente. Depois desmaiei.

Não sei por quanto tempo fiquei sem sentidos, mas quando acordei ele estava aos pés do meu leito, como uma reprise de como o havia visto pela primeira vez, a algum tempo atrás. Enam tinha a tez pálida suas mãos seguravam o rosto meio escondido, o cabelo estava em completo desalinho, havia uma expressão de derrota em seu semblante triste, era a personificação da derrota. O que estaria passando por sua cabeça? Por que fizera aquilo? Regressara ao lar com esse intuito? Por que retornara? Que direito achava que tinha? Ele percebera o leve movimento que eu fizera ao tentar falar e me fitara, seus olhos estavam embaçados, não parecia um homem que queria vingança ou que envenenara a própria irmã, parecia apenas um homem morto. Eu queria falar, tinha tantas perguntas! Mas minha garganta doía e minha cabeça parecia vazia. Precisaria fazer um esforço descomunal mas tinha que saber. Não podia mais esperar.

- Enam... você...

- Maia, minha irmã...

A voz dele estava empastada, parecia que era ele que havia bebido o maldito veneno. Pensei num jeito de dobrá-lo, de instigar-lhe piedade, mostrar-lhe minha vulnerabilidade. Não reconheci minha voz ao falar.

- Por que Enam? Por que voltou?

Ele chorava agora. Chorava copiosamente. Havia vergonha em seu rosto e total desconsolo em sua voz.

- Você sabe o porquê. Você sempre soube que eu voltaria um dia.

- Você nos abandonou. Não retornou, nem ligou para nenhum de nós. Você nunca merecia o amor de nossos pais.

- Agora estou aqui Maia.

- Mas não estava quando eles precisaram de você.

- Não, não estava.

Ele balançou a cabeça como um louco. Agora em seus olhos havia apenas o vazio. Escuro e frio.

- Por que me envenenou Enam? Você nunca mereceu nada de nossos pais, você não os defendeu nem estava aqui para salvá-los. Você não ficará com a herança, eu a mereço. Eu nunca os deixei, nem mesmo quando o fogo os consumia. Eu permaneci ali em pé ao lado deles, até o último momento. Até seus corpos tombarem e suas vozes por fim se calarem, foi a mim que eles viram no último segundo de vida. Foi à mim que eles suplicaram por misericórdia.

- Maia! Ah! Maia o que você fez? Como pode? Matou nossos pais e tentou me envenenar! Se eu não tivesse trocado os copos, estaria morto neste momento.

- Como você soube? Como descobriu?

- Eu sempre soube. Seu comportamento desde pequena, seus surtos. Não suportei ver você crescendo doente. Nossos pais a amavam tanto, nunca quiseram me dar ouvidos ou acreditar no que seus próprios olhos viam, não queriam ver o que estava diante deles. Quando soube que haviam morrido, tive certeza de que não fora um acidente. E ao vê-la quando voltei, soube imediatamente que seria o próximo. A observei todo esse tempo e soube que o recorte do jornal apenas a faria agir com mais rapidez.

- Ninguém acreditará em você, nunca acreditaram, e o xerife...

- Ele também sabe, só não haviam provas. Até o momento. Foi previsível o veneno na bebida e trocar os copos foi fácil.

- Ninguém acreditará em você, a culpa foi sua, você nos abandonou...

Neste momento o xerife adentrou o aposento escuro e frio e então senti que estava tudo acabado para mim, perdido definitivamente. Agora realmente ficaria sozinha para sempre.

Tânia Mara Paula
Enviado por Tânia Mara Paula em 15/07/2017
Reeditado em 26/12/2017
Código do texto: T6055324
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