As noites sem Cassandra

Os braços do marido a envolveram pela cintura.

De costas pôde entrever o orgulho refletido nos olhos azuis do homem com quem compartia uma vida convencional e luxuosa.

Quando se virou, deparou-se com um esposo grato e apaixonado.

Perguntou-se como era possível após mais de vinte anos de casamento, ainda ser amada tão intensamente.

Em seguida, admitiu sem vaidade, que novamente se superara. A recepção organizada para homenagear o sucesso do pai de seus filhos no ramo empresarial destacava-se pela perfeição.

Ela cuidara de cada detalhe. Comida, bebida. Convidados elegantes e agradáveis. Música de qualidade. A decoração, aclamada como impecável.

Ele merecia, pensou enternecida.

Antes de se desvencilhar dos braços acalorados , sob o pretexto de atender os convidados, acariciou o homem na face,deixando-o atônito diante daquele gesto de afeto espontâneo.

Foi passando pelos convivas, se dirigindo ao andar superior da suntuosa residência.

No trajeto pôde ouvir fragmentos de conversas com temas variados, entretanto a abertura política no país, após o período de repressão, era o assunto mais recorrente. Algumas pessoas comemoravam os novos tempos e a retomada da democracia, outras se mostravam inseguras ante as ameaças que a liberdade representaria.

Ao longe, avistou os filhos. Dois rapazes e uma jovem que alegres, exibiam num círculo de amigos da mesma idade, a autoestima que a riqueza do pai alimentava.

Ao entrar na suíte de casal teve o cuidado de trancar a porta.

No armário do banheiro encontrou aquilo que precisava.

A navalha, utilizada horas antes para fazer a barba do esposo, estava lá.

Quando se feriu mortalmente nos pulso já tinha retornado ao quarto.

Reclinada na poltrona revestida de couro macio, fechou os olhos e desejou que a morte fosse rápida.

Nos minutos que antecederam o fim não pensou no marido ou nos filhos, tampouco na vida requintada que deixava para trás.

Lembrou-se apenas de Cassandra.

Indiferente ao sangue que começava a escorrer, tingindo o vestido de festa e manchando o tapete adquirido numa loja de preciosidades, suspirou.

A prima jamais deixara de ocupar seus pensamentos e nem as mágoas que resistiam afastavam as lembranças dos dias e noites felizes que vivenciara.

Eram adolescentes quando se viram pela primeira vez.

Ambas tristes e feridas por tragédias familiares.

A prima perdera os pais num acidente automobilístico.

Ela vivia mergulhada na mais completa solidão. Negligenciada pela mãe. Desprezada pelo pai e pelos irmãos.

Antes da chegada de Cassandra, esgueirava-se pelos cômodos do majestoso sobrado em que residia com a família, habituada a todo tipo de esquecimento, rezando mesmo para ser invisível e assim, poupada da crueldade.

No primeiro momento, não imaginou que pudessem ser amigas.

A prima era bonita e graciosa. Ela não sabia se possuía alguma beleza, pois na casa todos faziam questão de ressaltar o quanto era desajeitada.

Logo, ela e Cassandra juntaram suas tristezas e se tornaram inseparáveis.

A música em volume mais alto a resgatou, por alguns instantes, de seu devaneio.

Abriu os olhos e, pela janela entreaberta, contemplou a noite que se estendia, iluminada por lanternas coloridas instaladas no jardim.

A escuridão em que vivia parecia infinitamente maior do que aquela que divisava em seus minutos finais.

Voltou-se para o porta retrato que, sobre o criado mudo, revelava a imagem de uma família feliz.

Na fotografia, o marido e os filhos sorriam e ela aparentava estar perfeitamente adaptada aos padrões e conveniências, defendidos por sua mãe e todos aqueles que especulavam com desconfiança o que a liberdade poderia significar.

Retornando ao passado, lembrou a primeira vez em que ela e Cassandra se beijaram.

Dormiam abraçadas por causa dos constantes pesadelos que atormentavam a prima e não demorou a trocarem mais do que confidências.

Quando sua mãe descobriu os encontros noturnos, encarregou-se de enviar a órfã para a casa de parentes distantes.

Ela, consumida por uma paixão proibida, teve de ser reinserida imediatamente à sociedade que não permitia “desajustados e pervertidos”.

Poucos meses, depois da separação, se casara.

A visão começava a ficar turva quando ouviu as primeiras batidas na porta.

Não sentia dor, apenas uma profunda tristeza e mal estar.

As lembranças da última vez em que estivera com a prima continuavam a machucá-la.

Tinha sido há poucos anos.

A outra também se casara e, em nenhum momento tentou disfarçar o quanto era feliz, sem pudores se referiu aos encontros noturnos como “brincadeiras de adolescentes.”

Não para ela, discordou novamente, sem importar-se com os apelos do lado de fora da bela suíte.

A esperança de um dia viver a paixão que as regras sociais condenavam se encerrou quando Cassandra, subestimando todo o sentimento que tinham experimentado , definira a paixão que viveram como uma aventura pueril.

Ao contrário da prima,ela sabia que apesar do ressentimento,a paixão jamais deixara de persistir.

As batidas na porta, entremeadas por gritos desesperados, tornaram-se mais fortes.

Olhou outra vez na direção da janela e viu tudo se apagando.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 25/07/2017
Reeditado em 30/07/2017
Código do texto: T6064055
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