Rainha dos Mares

O apito insistente despertou Elisa do cochilo vespertino. Abriu os olhos e ficou escutando, tentando decifrar os mistérios do barco que àquela hora descia o rio. O que era ele? Para onde seguia? Percebeu que realmente não se tratava de uma das costumeiras embarcações que cortavam aquelas águas duas vezes ao dia. Por algum tempo permaneceu ali, ensimesmada, relutante em sair da cama, pequena armação de madeira, coberta com um colchão de palha, dividida entre o desejo de dormir para sempre ou desvendar com seus próprios olhos aquele enigma. Entretanto, quando a música que se seguiu ao apito começou a tocar, a menina foi resgatada de seu estado de quase morte, juntou a força que ainda retinha e se levantou.

Seduzida pela animada melodia que penetrava seus sentidos em volume cada vez maior, Elisa arrastou-se até a porta. As dores no corpo, provocadas pelo peso do padrinho, não refrearam sua curiosidade feliz. Saiu descalça mesmo, descuidada de que a qualquer momento seu carrasco retornaria e se não a encontrasse, a castigaria com o cinturão de couro. Levaria outra surra por não ter cumprido as tarefas domésticas e também pela fuga esporádica. A punição, porém, não impediria que ao cair da noite, ele novamente a jogasse sobre a cama de palha e exercesse sobre a menina, sua tirania.

Ela foi. Os passos tímidos logo substituídos por outros mais rápidos. A música que vinha do rio estimulava sua pressa. Quando se deu conta, tinha deixado para trás os limites do sítio. Estava no meio do mato, o vestido de chita enroscando em galhos ,os carrapichos se prendendo ao tecido de algodão barato. Só bem mais tarde é que reparou os arranhões no rosto e braços e os ferimentos nos pés. Chegou à encosta e teve de subir. As pedras lisas provocaram uma sequencia de tombos. Elisa não se intimidou, insistiu até alcançar o topo, esquecida já da morte que vinha desejando há tanto tempo. Lá no alto teve a visão que mudaria para sempre seu destino.

Deparou-se com ele. O enorme barco de dois andares. As letras que mais pareciam desenhos se destacando na proa. “Rainha dos Mares”, leu emocionada, grata à professora que a libertara da completa ignorância. Muitas luzes coloridas o enfeitavam, iluminando a tarde. Fascinada, Elisa viu passageiros de todas as idades sorrindo e dançando. Acenavam. Eram diferentes das pessoas feias, sofridas e tristes que conhecia. Na inocência de seus doze anos a menina indagou a si mesma a origem e destino da embarcação. Rainha dos Mares. Seria um barco desviado de seu curso? Nova ideia extravagante dos políticos da cidade?

Desconcertada ante uma felicidade que ela desconhecia Elisa ficou paralisada. As remotas lembranças do pai humilhado pela bebida, a saudade dos irmãos apartados e a mágoa que sentia da mãe, que a abandonara aos cuidados do padrinho, ocuparam por alguns segundos sua cabecinha triste. Depois, também ela começou a rir e acenar. Só não dançou porque teve medo de deslizar no solo úmido.Naquele momento se libertou de toda dor.

Um homem de roupa azul, aparentando idade avançada, fazia sinais. ”Vem”, ele convidava . Ficou tentada, qualquer lugar seria melhor do que o sítio do padrinho. Partir com aquela gente desconhecida e contente poderia representar o começo de uma nova vida, ponderou. Seus dedos quase enlaçavam as mãos flácidas do homem de vestes no tom anil, pronta que estava para ir. Entretanto , por alguma razão, titubeou. A felicidade abundante a amedrontou. Estática, viu o “Rainha” se afastar com suas luzes, musica animada e pessoas repletas de alegria.

Elisa voltou para o sítio. Curou as feridas do corpo com uma solução de ervas. Naquele dia não apanhou do padrinho. Quando falou às pessoas sobre o o misterioso barco que vira cruzar o rio, tornou-se motivo de zombaria e desconfiança. Ninguém tinha visto ou ouvido o tal barco. Sem compreender, prometeu que da próxima vez que o “Rainha dos Mares” voltasse não hesitaria, seguiria com ele para qualquer destino.

Muitos anos se passaram. O padrinho antes de morrer a entregara em casamento para um homem igualmente cruel e ela sobreviveu à maldade do marido na esperança do retorno do misterioso barco. Esperou por quase duas décadas. Uma manhã ouviu o apito. Era “ele”, reconheceu imediatamente. Esboçou o riso triste que a acompanhava desde os tempos de menina. “Ele” estava de volta. Parou o que estava fazendo e ficou escutando a música animada. Deixou a louça sobre o jirau e partiu em direção ao rio. A música em volume cada vez mais alto.estimulava sua disparada. Ao longo do caminho, perdeu o chinelo de tiras. Não se deu conta da roupa rasgada. Só o receio de que pudesse estar enganada, a incomodava. E se não fosse “ele”?

Quando alcançou a margem do rio, teve a certeza de nunca se iludira. Lá estava , com suas luzes e pessoas bonitas que continuavam dançando e gesticulavam alegremente. O Rainha dos Mares descia o rio, como da outra vez. O homem da roupa azul ainda acenava para ela, a convidando a embarcar.

À principio, sentiu vergonha.Afagou os cabelos desalinhados e a pele maltratada do rosto. Esforçou-se em encobrir o vestido esfarrapado.Quando teve coragem esticou os braços marcados por hematomas até que as mãos tocassem o viajante de roupa azulada."Vem". Subiu no barco radiante e liberta. Não ouviu o grito dos pescadores que da outra margem do rio tentavam impedi-la de mergulhar e assistiram comovidos o desaparecimento da mulher nas águas do Parnaíba .

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 30/09/2017
Reeditado em 30/09/2017
Código do texto: T6129250
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.