Água para o Santo

O povoado de uma comunidade se reunia todos os domingos na igreja. O padre, o mais velho dos habitantes, ouvia a confissão de seus fiéis e aconselhava piedosamente.

As missas iniciavam sempre às 7 da noite e terminavam às 9 horas com o sermão do padre. A igreja nunca estava lotada, só um pingado de gente aqui e ali, porém no banco da frente sempre sentava uma senhora de cabelos grisalhos e pele enrugada por nome Cléia. Pelo que o padre ficou sabendo a velha ficou viúva recentemente. Ele agradeceu aos céus que o luto não venceu a pobre mulher e ela fosse frequente na casa do senhor.

À tarde, o padre realizava visitas, andando de casa em casa, fazendo orações pelos doentes, distribuindo novos terços, conversando com os demais; mas aquele dia ele ficou no gabinete da igreja. Como a comunidade era tranquila e não havia histórico de violência, ele deixou a porta da igreja aberta caso alguém quisesse entrar, fazer suas preces ou solicitar sua orientação.

Dona Cleia, de quase 70 anos, entrou, aproximou-se da enorme imagem de Cristo crucificado e fez reverência. Ainda lúcida, olhos fundos e brilhantes, ela se ajoelhou em um dos bancos. O padre foi checar o salão e achou aquela senhora ajoelhada. Voltou para o gabinete e esperou Dona Cleia chegar, mas para sua surpresa ela não veio, tinha ido embora.

Passado as semanas, o padre constatou a estranha ausência de Dona Cleia. Perguntou para as pessoas que tinha mais afinidade, mais conhecidas, se tinham notícias da senhora viúva recém chegada, porém ninguém soube dizer.

Uma moça chamada Mara falou que conhecia aquela senhora.

- Então, quer dizer que Dona Cleia está com problema de saúde? Você poderia me fazer um favor?

- Sim, senhor - respondeu Mara.

- Eu gostaria de visitá-la, mas antes ela precisa de alguns cuidados; você pode fazer isso?

- É claro.

Mara chegou em frente a uma casa de muro baixo de cor amarela e portão de ferro. Ela empurrou o portão que só estava encostado; uma pequena passarela de pedra de mármore ladeada por um bonito e bem cuidado jardim com aroeiras, graviolas, goiabeira, jambo, ypê roxo e amarelo.

A moça bateu palmas.

Nada.

Ela chamou por Dona Cleia.

Nenhuma resposta.

Mara ia dar as costas e ir embora quando a senhora apareceu na porta.

- Olá Dona Cleia, eu vim ver como a senhora está.

- Estou um pouco ruim, pode entrar.

Cleia mancava a perna direita.

Mara estranhou.

- E o que foi na sua perna?

- A diabete deve estar alta e sinto muita dor para andar.

A casa tinha quatro cômodos: a sala de estar, o banheiro social e dois quartos e havia mais uma porta que dava para o porão onde era ligado a bomba de água. Dona Cleia podia estar doente mas não era negligente quanto a limpeza da casa que por sinal estava muito cheirosa.

- Sinto falta do irmão padre; como ele está? - perguntou Cleia.

- Está bem e ficou preocupado com seu sumiço - Mara sorriu.

- Estou ligeiramente impedida de andar, passo mais tempo deitada na cama ou sentada na poltrona.

- É uma pena, dona Cleia, mas eu vim ajudar a senhora.

- Em quê? - a velha deu uma risada - Estou muito bem cuidada.

- Mas a senhora não consegue andar direito.

- Mas ainda não morri! - A senhora deu uma gargalhada.

Dona Cleia parecia de bom humor. Enquanto Mara esteve na casa, ela ainda andou mais do que o habitual, aproveitou e fez chá de plantas medicinais e apresentou seu falecido marido numa foto do porta retrato na parede.

- Ele era muito bom para mim, tão bom que sua presença no céu foi requisitada e ele partiu. - disse saudosa.

- Eu insisto em lhe fazer companhia até anoitecer e ajudar no que for necessário.

Mara não queria decepcionar o padre e começava a sentir afeição pela senhora.

- Está bem. - concordou Cleia.

No dia seguinte, da segunda visita, Mara começou a notar copos de água espalhados pela casa. Um ela achou em cima da velha televisão, outro na mesa da cozinha, no batente da escada do porão e até na janela que dava para o jardim. Ela pensou que além do diabete Dona Cleia pudesse estar sofrendo de lapsos na memória, uma possível amnésia ou alzheimer. Mara passou pela porta do quarto quando ia regar as plantinhas no jardim quando viu Dona Cleia de joelhos ao lado da cama. Ela a admirou ainda mais: aquela senhora era fiel mesmo na enfermidade.

A jovem ficou encantada com a beleza das flores de ypê, eram radiantes com o brilho do sol. Passeou por entre elas e achou abelhas, besouros, borboletas e um magnífico beija-flor. Ela raciocinou que a viúva não estava de todo sozinha, tinha a companhia das criaturas de Deus. Ela acompanhou com o olhar o voo perfeito da pequena ave até se deparar com outro copo na janela. Ela se aproximou, viu que o copo estava vazio e Dona Cleia dormia profundamente na poltrona.

Certa tarde depois de servir um chá de camomila, Dona Cleia interrompeu Mara.

- Sabe do meu procedimento: primeiro tomo o chá e depois o remédio, senão pode cortar o efeito.

Mara sorriu.

- E como está se sentindo esses dias?

- Estou me sentindo muito bem mas, às vezes, sinto minha perna formigar e encontrei algumas feridas no dedão do pé.

- Não era melhor chamar um médico?

- Cristo é o meu médico. - ela fez uma pausa - Fico muito feliz que tenha vindo aqui, embora eu não me sinta sozinha. Logo eu vou ficar boa e me juntar ao meu velho.

E Dona Cleia seguiu mancando para o quarto e com um copo de água na mão. Mara repreendeu aquele jeito de falar da senhora e pegou algodão, gases, água, um pouco de vinagre e limpou seu ferimento do pé.

Todos os dias se sucederam assim, e como sempre, Mara chegava e ia recolhendo os copos pela casa. Fazia a limpeza da sala, do banheiro, da cozinha e dos dois quartos da casa, porém dificilmente achava casas de aranhas, poeira em cima dos móveis e no lugar do fedor de mofo e umidade, cheirava a perfume de rosas.

De repente, o clima na comunidade mudou drasticamente, do ensolarado para o nublado e ameaçando chover. O vento balançava as plantinhas do jardim e, neste dia, a chuva pegou Mara em cheio.

A porta da casa costumava ficar encostada e a moça entrou completamente molhada. Ela foi até o banheiro, se enxugou e trocou de roupa; lamentou não ter trazido um guarda-chuva. Notou um silêncio incomum e deu uma espiada no quarto da senhora, que dormia tremendo de frio. Cautelosamente, Mara andou nas pontas dos pés, puxou o cobertor e cobriu dona Cleia. Não sendo suficiente fechou as janelas, trancou a porta e desceu até o porão para ligar a bomba. No último degrau, tinha um copo d'água em cima do corrimão. Mara suspirou: Dona Cleia não tinha jeito! Ignorou e ligou a bomba acionando a válvula para cima. Então ela teve a sensação esquisita de estar sendo observada. Sentiu um frio nas mãos e nos pés, curiosa e ao mesmo tempo receosa, de virar e encontrar algo ou alguém atrás de si.

Ninguém.

Ela respirou fundo.

Escutou o barulho da bomba e voltou as escadas, mas um detalhe chamou sua atenção: a água do copo, que estava em cima do corrimão, havia sumido. Mara jurava que ele estava cheio alguns minutos atrás. Correu e fechou rapidamente a porta do porão. Com o coração acelerado, ela olhou para frente e viu a imagem do falecido marido da senhora no porta retrato da parede. Um relâmpago que atravessou a janela fez a fotografia brilhar. Chovia e trovejava.

Com uma sensação de nó no estômago, ela foi para a cozinha onde pegou o primeiro copo de água que viu e bebeu. Depois que bebeu distraída, notou que era mais um copo d’água que dona Cleia deixava por aí e jogou no chão. Chateada por ter quebrado uma coisa que não era sua, Mara pegou a vassoura para limpar a sujeira quando escutou passos na sala. Será que o barulho tinha despertado a dona Cleia? Ela pensou ser a senhora querendo esticar as pernas. O curioso é que não eram passos de uma pessoa que mancava, tratava-se de alguém passeando na sala.

- Dona Cleia? ela falou baixinho.

Nenhuma resposta.

Ela olhou para os dois quartos, um estava fechado e outro com a porta aberta.

Deu uma espiada na sala mas não tinha ninguém.

Seja lá o que fosse aquilo, parou e continuou andando.

Tremendo, Mara foi para debaixo da mesa.

Um raio atingiu uma árvore próxima e o clarão atravessou a janela, quase cegando a moça. Ela esfregou os olhos e ficou piscando um pouco para voltar a lucidez quando escutou novamente passos e viu um pedaço de roupa branca reluzente entrando no quarto de Dona Cleia. Mara arregalou mais os olhos quando percebeu a porta do segundo quarto aberta.

Mara não gritou porque a voz sumiu, mas correu até a porta da sala. Entrou em desespero quando lembrou que tinha trancado mas não se lembrava onde tinha colocado as chaves. Dona Cleia acordou com o ruído da maçaneta, levantou mancando e se deparou com Mara, completamente pálida, com as mãos na porta.

- Mara, o que houve, minha filha? Você está bem? - Dona Cleia agarrou suas mãos, que estavam geladas como as de um defunto.

- Eu vi...- a jovem gaguejava - Não foi um raio... Eu vi… Tinha alguém ali...

- Acalme-se!

- Perdoe-me mas eu preciso ir embora! Quero sair daqui! Vou pedir ao padre para vir visitá-la! E que ele mande outra pessoa.

Mara estava em choque. Por mais que dona Cleia quisesse lhe explicar o fenômeno não iria adiantar, então deixou ela ir embora.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 14/12/2017
Reeditado em 31/01/2021
Código do texto: T6199109
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.