A APARIÇÃO NA COZINHA

Quando nos mudamos para esta cidade, meu pai tinha acabado de chegar do estrangeiro, conhecia duas línguas: o espanhol e o dialeto africano. Com mais ou menos cinco anos, conseguimos uma boa casa. Morávamos no andar de cima e a garagem ocupava todo espaço embaixo. Devagar, pegamos amizade com a vizinhança; a vizinha do lado direito tinha um quintal enorme e seu pé de seriguela alcançava a janela da nossa cozinha no primeiro andar. Eu tinha feito amizade com a filha dela e minha irmã, com a vizinha da casa da frente. Tempos depois, esta última engravidou e naquela época, uma moça engravidar fora do casamento e não ter um marido era muito mal vista. Minha irmã foi a única que a ajudou e deu total apoio.

No final do ano de dois mil, todo mundo corria para a igreja católica matriz porque diziam que era o fim do mundo. Presenciei o pânico da população daquela cidade, no entanto, em mim não surtiu efeito porque talvez eu fosse apenas uma criança. Lembro de uma noite em que estávamos indo para uma pizzaria no centro e um bêbado apareceu no meio da pista. Meu pai buzinou e freou bruscamente. Aquele homem completamente alterado e com fedor de álcool se aproximou da janela do motorista, estava chorando, e pedia para meu pai orar por ele para que Deus perdoasse seus pecados. A cidade era pequena, todos sabiam que meu pai era evangélico.

Neste período também, meu irmão se apaixonou por uma moça loira que frequentava a igreja. Então, todos nós nos apegamos à amizade dela. Logo, virou rotina irmos para a casa dela. A mãe da moça era gentil, tinha uma aparência jovem que escondia sua verdadeira idade e gostava de usar vestidos que combinavam com os tons grisalhos dos seus cabelos. A família era formada por quatro mulheres e o seu Mundico. Fazia pouco tempo que ele havia falecido. E mesmo sendo viúva, tia Ema, como eu a chamava, continuava com um sorriso doce e calmo.

Com apenas quatro anos de idade, meus pais diziam que minha altura estava adiantada. E além de ser muito curiosa, agitada, esperta e atiçada, eu tinha muita alergia, estava passando pelo processo de secagem das bolhas de catapora e, de repente, pneumonia. Minha mãe via minha dificuldade de dormir e respirar à noite. Estudava pela manhã porque o preço da mensalidade era mais barato do que a tarde, porém sempre me atrasava para aula; era chamada atenção por cochilar entre as matérias, mas por motivo de força maior, eu conseguia ótimas notas. Entretanto, às vezes, eu era atingida por um pico de energia ou exaustão repentina.

Dormia no mesmo quarto dos meus pais, num berço que virou cama. Era uma noite de tempestade, e eu tinha levantado para ir ao banheiro, na volta eu caí de frente para a quina pontiaguda da cama e rasguei meu queixo de uma extremidade a outra, saindo muito sangue. Meus pais ouviram a batida e o choro em seguida. Acordaram rapidamente e me levaram para a cozinha, constatando um corte de dez centímetros pouco profundo entre o queixo e o pescoço. Meu pai, preocupado, usava uma toalha de mesa embebida em vinagre no ferimento. Eu não escorreguei porque não havia poça d'água, eu não tropecei, algo me empurrou.

Tudo começou quando certo dia, eu estava brincando no pequeno quintal da minha casa; minha mãe lavava as roupas no tanquinho. Eu olhei para cima: o céu estava azul com algumas nuvens brancas que eu costumava dar nomes de bichos, e do nada, um homem de branco apareceu sentado numa nuvem, olhava para mim e acenava lá de cima. Inocentemente, eu acenei de volta sorrindo e gritando achando que ele estava me ouvindo.

Que gritaria é essa?! - dizia minha mãe.

Chamei minha mãe, sem tirar meus olhos daquele homem. Primeiro, ela recusou dizendo que era coisa da minha imaginação. Tive que arrastá-la pelo braço e apontei naquela direção da nuvem, porém ele tinha sumido. Procurei em todas as nuvens do céu mas nenhum sinal do homem de branco. Contei ao meu tio, que gostava de pesquisar e comentar o caso de Ubatuba; ele ficou convencido que eu tinha tido um contato extraterrestre.

Quando meus pais perceberam que eu estava tendo muitos pesadelos e comportamentos noturnos pouco comuns para uma criança, resolveram consultar uma psicóloga para obter um diagnóstico, que disse se tratar apenas de uma fase evolutiva da infância. Minha mãe sempre foi uma mulher cinéfila, e entre os filmes que tinha assistido, um deles chamou sua atenção: era sobre um garotinho que via gente morta.

6 meses antes, eu estava brincando na casa da dona Ema. Seu Mundico era um homem grande, barriga roliça, usava um bigode e era muito simpático; tinha acabado de chegar do trabalho. O tempo havia passado tão rápido que eu não notei que escurecia. Meus pais chegaram para me buscar e fui me despedir; no momento que iria dizer 'tchau' ao seu Mundico, algo me disse para dizer 'adeus'. Ele se sentou pesadamente na cadeira e acenou para mim sorrindo.

- Adeus seu Mundico!

- Que conversa é essa, menina? - repreendeu meu pai - Diga tchau!

Atravessei o corredor da sala segurando na mão do meu pai, e quando virei novamente para acenar, uma sombra negra do tamanho de uma pessoa atravessou de uma extremidade a outra e se desfez. No dia seguinte, meus pais tinham recebido a notícia de que seu Mundico tinha acabado de morrer de ataque cardíaco fulminante.

A casa da dona Ema era um pouco igual à minha, mas no lugar da garagem tinha uma loja e ela morava no andar de cima. E se tinha um local que eu gostava de ficar era numa espécie de pequeno paraíso verde numa extremidade a céu aberto, que ela tinha transformado em horta. As filhas não estavam em casa, eu fiquei esperando por elas, então dona Ema me convidou para comermos panquecas com geleia na hora do lanche da tarde. De repente, a manhã se tornou nublada e um clarão precedido por um estrondo. Ela correu para fechar as janelas e a porta da cozinha. O telefone tocou e a dona Ema saiu para atender. Quando voltou, as panquecas que tinha feito estavam grudadas no teto, o café derramado no fogão e o pote de geleia quebrado no chão. Um segundo clarão iluminou a cozinha, que parecia flash de câmera fotográfica. Novamente, um terceiro clarão mas este se transformou numa bola de energia que começou a dar formas humanas e finalmente numa aparição: seu falecido marido Mundico. O feixe de luz que atingiu sua visão foi tão intenso que a cegou totalmente. Eu escutei um barulho e corri: eu encontrei dona Ema caída no chão, chorando, branca de medo e com os olhos brancos.

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 28/12/2017
Reeditado em 31/01/2021
Código do texto: T6210788
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