Anúbis

Da última vez que estive com minha irmã, ela não estava muito bem; estava deitada com os olhos fechados, o pulso virado com uma agulha enfiada na sua pele por onde saía um liquido transparente. Ela dependia daquilo para se manter viva. Tinha uma enfermeira de costas para ela e anotava numa prancheta. Era fim de tarde e o brilho do sol extinguia-se no horizonte. Fiquei ali sentado observando minha irmã, sem poder fazer nada para ajudar, só torcer por sua saúde enquanto anoitecia. Uma lua cheia radiante e bonita se ergueu no céu. Lembrei de nossa casa no rio, a essas horas as serpentes ficavam irritadas e saiam de suas tocas e nossa mãe tapava cada fresta com cebolas para espantá-las. E no calor das fogueiras, nosso pai contava a lenda da Grande Serpente da Ilha ou As aventuras de Sinuhe. De repente a mulher largou a prancheta que caiu no chão e virou na minha direção, com os olhos arregalados de pavor. Ela não estava com medo de mim, fora outra coisa que chamou sua atenção. Neste instante eu escutei um uivo agudo. A enfermeira foi até a porta do quarto e olhou para os lados, mas no corredor não havia ninguém. O silêncio que se seguiu depois do uivo tornou-se perturbador para a pobre mulher.

- Você ouviu? - ela indagou.

Minutos depois outro uivo e parecia estar mais perto do quarto, então reconheci o que era, na verdade, quem era. Apareceu um chacal de quase dois metros de altura na porta, de pelagem negra andando só com as duas patas traseiras, exibindo caninos afiados e orelhas pontudas. A enfermeira deu um grito ensurdecedor e pulou da janela. Cheguei perto da janela e olhei uma cena bizarra: a mulher havia quebrado as duas pernas e estava numa desfigurada posição.

- Você a assustou Anubis! - falei.

O deus chacal olhou-me constrangido.

- E você não vai levá-la.

- O coração de sua irmã está muito fraco. - Anubis respondeu. - Por acaso está esquecido que eu sou O que guarda o coração dos vivos e dos mortos?

- Não é nada grave; minha irmã só sentiu uma fraqueza.

- A hora dela chegou.

- Não!

Como por um milagre, minha irmã abriu os olhos e esboçou um sorriso ao me ver, mas seus olhos custaram a distinguir a outra silhueta animalesca.

- Anúbis?!? - ela indagou.

- Que sua saúde seja satisfatória - respondeu ele com voz grave.

- Não fique desapontado em não me levar para o Além mas fico muito feliz em vê-lo, grande e belo Guardião.

Anubis baixou a cabeça desconcertado; acostumado a somente obedecer ordens e resguardar a cova de Ammut, o monstro híbrido, o grande chacal ficou tão alegre em receber um elogio que não conseguiu esconder o entusiasmo e balançou a cauda.

Minha irmã estendeu a mão e ele se aproximou, ela lhe fez carinho no seu peito peludo.

- Você parece um cão mimado. - falei.

- Cadê o respeito com um deus? - vociferou Anúbis, que se levantou e seu tamanho desdobrou-se, mas eu não me intimidei e continuei encarando seu rosto negro e olhos vermelhos brilhantes.

Um barulho no corredor interrompeu nossa conversa, quando uma maca passou pela porta levando o corpo torto da enfermeira que gritava em pânico "Lobisomem! Era um Lobisomem!"

- O que aconteceu com ela? - minha irmã perguntou.

Sem perceber, Anúbis já tinha partido.

- Ah, não acredito que confundiram Anúbis com um Lobisomem? - ela caiu na risada - Só porque ele é metade homem e metade lobo, são um bando de ignorantes!

Nefer Khemet
Enviado por Nefer Khemet em 22/01/2018
Código do texto: T6233305
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