A Provação

Eram sete e meia da noite e a escuridão já principiava a cair sobre a pequena Cans. Os meninos, como de costume, estavam jogando bola na rua. Havia agora um coleguinha novo na turma – um coleguinha que deveria ser posto em prova, como todos os outros um dia o foram.

A bola corria de mão em mão, saltitando alegre e graciosamente, fazendo de cada rosto de menino uma só expressão de contentamento. Isso pelo menos até passarem em frente ao cemitério, quando todos os rostos ganharam traços de apreensão – todos menos um: o de Rainer.

Em Cans, aquele lugar era proibido para as crianças e temido por adultos. Ninguém ousava enfrentar os seus mortos. Ninguém tinha forças ou coragem para tanto. Há muito que nem o coveiro era da cidade, tinha de ser sempre alguém de fora, alguém que não conhecesse, nem acreditasse nos fatos. Assim como Rainer não conhecia, assim como Rainer não acreditaria.

Os meninos se entreolharam; havia chegado a hora. A bola foi então lançada para dentro da ampla sala de mortos. Todos olharam para a figura magrela e branca de Rainer. Como poderia aquela coisinha miúda e frágil passar àquela provação tão temida pelos mais corajosos homens? Não se sabia, mas ele teria que fazê-lo. Para morar em Cans e ser aceito perante a sociedade tinha-se primeiro que passar por aquele teste. Muitos dos que entraram por aquela fenda não saíram. Muitos ficaram para sempre junto dos seus próprios mortos; junto dos mortos que lhe tiraram a vida.

Rainer não percebeu a mudança que ocorrera nos garotos e entrou dono de si naquele lugar mal-cheiroso. Tinha se encontrar a bola o mais depressa possível. Só seria aceito no grupo se conseguisse não perder a bola, se fosse rápido o bastante.

O lugar estava muito escuro, além de úmido. Seus passos pareciam ecoar longe e ao mesmo tempo estranhamente perto. Aquele ambiente lhe proporcionava uma sensação desconhecida. O mundo resumia-se àquele lugar gelado, formigador. A sensação, com o tempo, só aumentava e o beijo mórbido da morte parecia aproximar-se cada vez mais. “Preciso sair logo daqui! Meu Deus, me ajuda... Estou com medo...” Rainer virou-se e, quando viu a luz que vinha da rua, perdeu o chão. Sentiu-se caindo num lago de gelo, o qual lhe esfaqueava impiedosamente todo o corpo: rosto, braços, pernas, coração. Era tudo tão gelado, tão distante. Era tudo tão angustiante... Rainer sentiu-se caindo... E caiu.

DATA TEXTO: 10/03/2005