A morte de João Galião... Ou quem matou Doly?

I

Sete cães desciam a ladeira fazendo arruaça em plena madrugada. Agora era assim toda noite desde que Juju, a cadela de Dona Iracema entrou no cio.

Ninguém tinha paz até as três horas da manhã, no mínimo. Maior que a algazarra dos cachorros endiabrados, só mesmo a gritaria dos moradores ameaçando e ralhando contra o mundo animal inteiro.

Deitado em sua cama, Adamastor ouvia a gritaria e olhava para o teto pensativo. Uma goteira pingava bem em cima de seu pé esquerdo, mas o frio da água lhe tirava a concentração. Adamastor estava juntando os fatos. Finalmente conseguira a prova que tanto queria.

Ele pensava na morte de João Galião, uma morte misteriosa. O pobre homem fora encontrado numa vala de esgoto, morto há dias e ninguém dera por sua falta.

Mas o que intrigava mesmo Adamastor, era a coincidência. Desde que João Galião morrera, os cães vadios proliferavam como praga. Aquela cachorrada era a evidência definitiva.

Todos na vizinhança sabiam, sem ter muita certeza, mas sabiam que era ele quem dava sumiço nos cães vadios do bairro.

Para a insônia de Adamastor naquela noite, isso agora estava mais que evidente.

O pensamento de Adamastor passeava nesse mistério.

Mistério maior, porém era a própria morte de João, até hoje não explicada. Mas bem que o inquérito já havia sido arquivado. Concluiu-se que o pobre havia se afogado. O fato da perícia informar que ele já estava morto antes de cair no esgoto não implicou em muita coisa diante do maior problema da polícia. A pura e completa falta de suspeitos.

Suspeitos, oras, eram todos. Mas ao mesmo tempo, nenhum.

Pelo que se sabia, João Galião não tinha família, nem amigos, nem inimigos declarados. Vivia trancado em casa e só saia a noite para ir ao armazém comprar pinga, queijo, pão e sardinha.

O que Adamastor, nem a polícia nem ninguém no bairro sabia é que João Galião tinha sim, dois inimigos mais do que declarados.

Um deles era seu Pitágoras.

O velho Pitágoras veio da mesma cidade de João Galião, Nazaré das farinhas, no interior da Bahia, e era o único que sabia de suas origens.

João Galião, era Galião só no nome, por que de nascença era João Batista Bonarges, filho de Coronel, dono de engenho, muita terra e até uma praia lá pros lados da ilha do Patí.

Acontece que João Batista, hoje Galião, era estudado da capital, tinha consultório para advogar lá pros lados de Feira de Santana e tava de casamento marcado com Marizete, filha de dona Edileuza, dona da pensão.

Acontecia também, que todo mundo na região sabia que a menina Marizete não estava contente com aquele arranjo por que desde a meninice ela gostava mesmo era de Pitágoras.

João Batista era doido por Marizete mas não ia obrigar ninguém a casar. Por isso, liberou a moça do compromisso e veio para a capital.

Problema é que aqui o dinheiro escasseou, e a desilusão jogou o pobre homem na bebida e no vício da jogatina.

Daí, para ir parar num casebre do subúrbio bêbado e sozinho, foi um pulo.

Mas pelo menos o homem ficou em paz. Não por muito tempo, por que quis o destino que Pitágoras e Marizete viessem morar justamente na casa ao lado da sua.

Quando seu Pitágoras chegou, não reconheceu muito bem o velho acabado que tinha se tornado João Batista. Aqui conheceu ele como Galião, mas aos poucos lembrou do moço garboso de quem ele havia roubado a noiva.

João Galião parecia não lembrar de nada disso e nunca disse uma palavra a Pitágoras sobre qualquer coisa que fosse.

Pitágoras manteve o mesmo silêncio, não por respeito. Era despeito mesmo, queria desprezá-lo mais do que era desprezado.

E a essa altura era desprezado também por sua querida Marizete, há muito tempo arrependida de ter trocado um casamento cheio de heranças por um marido nômade que mal conseguia sustentar a casa.

Isso causava raiva em Pitágoras e por algum motivo ele culpava Galão por sua má sorte. Vivia dizendo que só podia ser praga de corno.

Os dois não se falavam, mas Galião não falava mesmo era com ninguém. Porém a Marizete respondia-lhe o “bom dia”, e fazia questão de tirar o chapéu quando ela passava acompanhada por Pitágoras. João sabia que aquilo o enfurecia e fazia de birra mesmo, mantendo uma guerra fria e sem palavras.

O que João não sabia é que tinha um outro inimigo tão traiçoeiro quanto Pitágoras.

Seu Isaltino era visinho de fundo de João Galião. O bairro era realmente uma bagunça de casas amontoadas, mas havia ali um principio de ordem. Cada um tinha o seu pedacinho de terra para fazer o que quisesse, e nos fundos de sua casa, galião gostava de manter algumas galinhas e um pé de jamelão.

Fato é que isso irritava profundamente seu Isaltino, que em seu quintal mantinha uma horta e varal.

Para alimentar as galinhas, Galião jogava todas as manhãs punhados e mais punhados de milho. Porém isso não alimentava só galinhas, e não demorava muito a terra batida se encher de pezinhos ciscantes de pombos.

As aves, é claro, depois de se fartar no milho, pulavam para o quintal do vizinho para ciscar mais na horta e cagar na roupa limpa.

Seu Isaltino engolia calado sua raiva, preferia manter a discrição aconselhada por Maquiavel. E sim, ele lia muito Maquiavel.

Ironicamente João Galião estava cercado de inimigos, mas não dava lá qualquer importância ao fato achando que tudo ficaria assim, como estava, só no campo das provocações e xingamentos em pensamento.

Tudo mudou quando seu Isaltino, cansado de perder a couve-flor, decidiu agir.

Correu até o armazém e de lá saiu com uma caixinha. Chegou em casa sorridente, sentindo-se “O astuto” dizendo a esposa que iria acabar com todos os problemas.

Quando anoiteceu, ele saiu sorrateiro em direção à casa do vizinho.

Na mesma noite Pitágoras e Marizete discutiram novamente por falta de dinheiro. Marizete foi cruel em suas palavras e deixou claro que estava arrependida de ter trocado um Doutor por um borra-botas. Também fez questão de insinuar que ainda estava em tempo de voltar atrás.

Irado e espumando, Pitágoras saiu batendo a porta e foi ter com o vizinho.

II

Doly era uma pastora alemã cega do olho esquerdo e bem velhinha. Era um animal dócil e apesar de seus 9 anos, ainda dava cria a cada cio.

Doly, por assim dizer era a matriarca e amante de tudo quanto é cachorro vadio que aparecia naquele bairro.

Os outros cães, apenas desapareciam, misteriosamente, mas naquela manhã, Doly apareceu morta, envenenada na frente da casa de João galião.

A partir daí, os vizinhos atinaram para que seria o matador de cães vadios do bairro.

Pena que a pobre Doly, apesar de ser a fonte, não era exatamente uma cachorra abandonada. Andava livre pelo bairro, sem coleira e cheia de carrapatos. Mas tinha um dono sim, uma espécie de protetor que alimentava e dava abrigo quando chovia. E esse era Adamastor, que chorou três dias a morte da cachorra e até enterrou ela nos fundos de cemitério.

João Galião acordou com a gritaria. Havia dormido tarde por causa da discussão da noite passada com o velho Pitágoras. Achava que fiaria em paz finalmente depois que deixou bem claro que não tinha mais nenhum interesse em Marizete.

Quando abriu a porta de seu quintal é que teve o primeiro susto do dia. Havia trinta, não, cinqüenta pombos tesos, mortos no chão de terra batida. Além dos pombos, também suas galinhas jaziam petrificadas pelo meso veneno que matou a pobre Doly.

Galião sabia exatamente a quem reclamar suas perdas, mas era de sua natureza manter fora de confusões maiores.

Todos comentavam, mas ninguém disse uma palavra sobre a morte de Doly e as suspeitas que caiam sobre ele.

De noite, fora até o armazém comprar sua pinga, queijo, pão, sardinha e um saco de milho para aves.

Galião não disse nada ao vizinho do fundo mas sabia exatamente como se vingar.

No dia seguinte, mesmo sem galinhas, jogou vários punhados de milho no solo e esperou. Não demorou muito e uma revoada de novos pombos apareceu para ciscar. Era questão de tempo até conhecerem o quintal vizinho e fartarem da couve-flor para depois se aliviar nos bancos lençóis estendidos no varal.

Três meses se passaram e tudo estava normal. Os cães continuavam sumindo misteriosamente. Pitágoras e Marizete não se entendiam, os pombos fartavam-se na horta do velho Isaltino e Adamastor comia seu rancor pela morte de Doly em silêncio.

Ele era um dos poucos que arriscava cumprimentar João Galião na rua, mas desde o acontecimento, não lhe dirigia a palavra.

Estava certo mais do que todos de que João Galião era a assassino de Doly e matava também os outros cães que apareciam.

Sem saber da raiva que despertara em Adamastor, João Galião vivia sua rotina silenciosa e solitária e isso nem o incomodava tanto.

Dentro de casa, lia seus livros de advocacia, sonhando com seu passado glorioso. Comia pão com sardinha, montava armadilhas com o queijo para os ratos e dormia bêbado de pinga.

Naquela noite porém algo aconteceria, mas o pobre João nem fazia idéia de que morreria.

III

Isaltino saiu na calada da noite, quase que na mesma hora que Adamastor.

Marizete e Pitágoras tiveram outra briga, uma briga feia definitiva. Marizete arrumou suas trouxas e disse que ia embora. Pitágoras nem viu quando ela saiu. Achou uma vergonha olhar-se no espelho naquela noite. Um homem naquela idade, chorando.. que lastima, que lastima, pensou. Saiu, sem rumo.

IV

Três dias depois o corpo inchado de João foi encontrado, bem lá nos limites do bairro, numa vala de esgoto que cerca a região.

Alguns vizinhos sentiram até um pouco de culpa por não terem dado falta do pobre João. Na verdade, ninguém percebeu que ele não ia mais ao armazém, nem dava mais comida aos pombos.

Em menos de uma semana o inquérito foi arquivado. Em cada porta que a polícia batia, a resposta era a mesma. Ele não falava com ninguém, não tinha amigos, nem que inimigos que se saiba.

O que ninguém sabia, é que inimigos, João tinha vários e um deles era Adamastor que estava com os nervos à flor da pela para receber o policial em sua casa. Por sorte, ninguém lembrou da morte da cachorra Doly, então para a polícia, ele não era mais suspeito do que o moço do armazém.

O mistério, a morte, o solitário João Galião foi rapidamente esquecido e todos voltaram a suas vidas de sempre.

Seu Isaltino, não tinha mais problemas com os pombos, matou-os todos novamente e agora eles custavam a rondar sua couve-flor. Até aproveitou que a casa da frente estava fechada para invadir um pouquinho o terreno e começar uma pequena plantação de ervas. Também se apossou do pé de jamelão e se fartou das frutinhas quanto o verão entrou.

Marizete, voltou para casa no dia seguinte a sua partida. Chegou a conclusão de ruim com Pitágoras, pior estava sem ele. Sem eira nem beira na beira de uma estrada.

Agora até pensavam em filhos e ela inventou de cozinhar para fora.

Ficou decidido que eles não falariam a ninguém sobre seu passado com João Batista, para evitar qualquer intriga ou mexerico.

E até eles esqueceram-se de tudo.

O único que não esquecia a morte de Galião era Adamastor. Depois de sua morte, não havia qualquer vestígio de como ele poderia provar que era ele mesmo o assassino de cães.

Aquela dúvida tornou-se uma obsessão.

Ninguém nem tocava no nome de João Galião até aquela noite.

Os cães cercaram a casa de dona Iracema atrás do cheiro de fêmea de Juju. Eles latiam, uivavam e brigavam entre si.

Dona Iracema jogava água, seu Clovis saiu com uma espingarda e a balburdia estava formada.

Num instante de silêncio, quase que um assobio do céu, algum vizinho levantou a voz e despertou a lembrança de todos.

- Quem faz falta é seu João Galião, se ele tivesse vivo, essa cachorrada já tinha levado jeito.

O que ninguém, absolutamente ninguém sabia é que a única coisa que a polícia conseguiu descobrir sobre a vida do João Galião, era que ele mantinha um abrigo de animais e ainda tinha alguma renda cedida pelo governo por seu filho de coronel.

No abrigo, ele mantinha mais de 200 cachorros vadios, que ele mesmo recolhia no bairro e levava pra lá.

Porém ninguém sabia disso, e essa tenha sido talvez a única vez que João Galião foi lembrado com um certo saudosismo.

V

Outra coisa que ninguém sabia, era o que aconteceu na noite em que João morreu.

Seu Isaltino, saiu na calada noite para espalhar chumbinho no quintal do vizinho e se livrar dos pombos outras vez. Enquanto espalhava o veneno no chão, pensava que bem que resolveria melhor aquele problema se ao invés de matar os pombos, matasse logo o vizinho.

Teve o cuidado de observar dessa vez se havia algum animal por perto, para que não tivesse o mesmo fim da pobre Doly, que bebeu da água que ele envenenou.

Assim que terminou o serviço, voltou para casa e seu meteu debaixo dos lençóis brancos, manchados de merda de pombo.

Adamastor, viu quando seu Isaltino saiu sorrateiro, pois também rondava a casa de Galião a procura de provas de que ele era quem matava os cachorros. Ele vasculhou a lixeira, o quintal, mas não achou nada.

Mesmo insatisfeito, assustou-se com um gato e voltou pra casa.

Também Pitágoras esteve rondando a casa do vizinho. Dessa pensou em procurá-lo como um velho homem amargurado. Queria pedir alguns conselhos, estava tão perdido sem sua Marizete.

Mas conteve-se, deu meia volta e foi beber pinga num bar da Orla.

O que ninguém sabia, nem nunca saberá, é que enquanto isso, dentro da casa, Marizete e João Galião tinham uma conversa definitiva.

Há tempos a esposa infiel tentava mais que seduzir, convencer João Galião a voltar a querê-la. O homem mantinha-se em silêncio e tentava a todo custo livrar-se das investidas da assanhada mulher.

Naquela noite, porém, João estava disposto a falar e disse para Marizete tudo que havia guardado em seu coração magoado durante todos aqueles anos de silêncio e solidão.

O desprezo no olhar de João, deixou Marizete enfurecida. Ela não entendia.

Sentia raiva, uma névoa púrpura de raiva e dor.

João deu as costas para Marizete e a expulsou friamente. Ela avistou em cima da mesa o peso de papel em forma de pirâmide que segurava processos antigos.

Em menos de um segundo estava feito. João estava morto. Marizete horroriza e aflita.

Saiu correndo e sem destino, limpando o sangue se seu rosto e da blusa azul decotada.

Quando amanheceu voltou para casa. Para os braços de seu marido. Chorou. Contou-lhe o que aconteceu e foi Pitágoras quem teve a idéia de sumir com o corpo naquela noite.

Arrastaram João na calada da noite até a vala e o lançaram lá para o esquecimento.