Sem Retorno

SEM RETORNO

Apesar de ser o herdeiro de uma pequena fortuna, Percyval Gomes Burton nunca tivera uma vida realmente fácil, mas agora que chegara aos 47 anos, encontrava-se numa encruzilhada que fazia de sua existência um verdadeiro inferno. Indeciso entre buscar a própria felicidade, ainda que tardiamente, e honrar uma promessa que fizera a seu pai, ele encontrava-se na penumbra de seu quarto, onde entre goles de whisky, meditava pesando os prós e os contras dos dois caminhos que ora tinha pela frente.

Sir Raymond Spencer Burton, o pai de Percyval, havia sido um conceituado historiador e arqueólogo especializado em mundo árabe e que devido a suas relevantes contribuições para o estudo da história, recebera o título de Sir. Mais tarde no entanto, quando já não mais tinha condições para o trabalho de campo, foi nomeado curador do British Museum, onde trabalhou até se aposentar.

Como durante grande parte de sua vida Raymond vivera em climas quentes - os quais muito apreciava - resolvera que para desfrutar de sua aposentadoria, nada melhor que um país tropical. Por causa disso é que ele reuniu tudo o que tinha e foi viver no Rio de Janeiro, cidade que conhecera num carnaval da década de 40 e pela qual se apaixonara.

Então, uma vez estabelecido no Rio ele conheceu Janaína uma deslumbrante mulata com a qual veio a contrair matrimônio. Da união entre Raymond e Janaína nasceu Percyval, único filho do casal que nos dez anos subseqüentes gerou cinco natimortos e uma menina que ainda chegou a ser registrada com o nome de Christine Gomes Burton, mas que morreu com 16 dias de vida. Assim, filho único, Percyval foi criado com todas as regalias e luxos imagináveis, freqüentou bons colégios, os melhores cursos e sua vida foi um mar de rosas.

Pelo menos até a adolescência.

Ao completar 14 anos, Percyval constatou que não era como os outros rapazes de sua idade, cujos maiores interesses eram os namoros ou futebol. Diferentemente de seus colegas não tinha grande interesse nem por garotas nem por futebol, de fato o que ele realmente gostaria era de ser uma garota e a grande verdade era que ele se sentia como se fosse um espírito feminino aprisionado num corpo de homem e mais, seu maior sonho era de um dia se casar, de véu e grinalda, com um belo e galante rapaz, ter filhos e cuidar da casa, enfim ser uma mulher completa.

Desnecessário dizer que tal sonho era no mínimo um completo absurdo. O máximo que ele poderia conseguir era, com o uso de hormônios e, quem sabe cirurgias plásticas se tornar um tran-sexual.

Tal hipótese, no entanto era impensável, pois caso o fizesse, seu pai morreria de desgosto ou o que poderia ser pior: mata-lo-ia de pancada. Além desses, no entanto, ainda havia um outro motivo para que ele não enveredasse por tal linha de ação: ele era feio, não era nenhum Quasímodo mas era suficientemente mal feito e deselegante para que como mulher fosse um verdadeiro desastre. Seus traços eram grosseiros, tinha um nariz largo demais os olhos exageradamente separados, tinha tendência a engordar, uma bunda achatada e suas pernas eram arqueadas como as de um cowboy.

Não, definitivamente não seria possível fazer dele uma mulher aceitável e muito menos uma linda e sensual como ele gostaria de ser, ainda mais com as técnicas de cirurgia disponíveis no início da década de 70. Por causa disto ele buscou ajuda de psicólogos e de psiquiatras na esperança de que eles o curassem, mas foi em vão e o máximo que conseguiu foi passar a imitar com perfeição o comportamento de um rapaz dito normal.

Assim, Percyval passou pela adolescência representando um papel que não acreditava ser o seu, namorou algumas moças o que se revelou surpreendentemente mais agradá-vel do que ele imaginava - talvez devido a alguma inclinação do espírito feminino que havia nele para o lesbianismo -, tornou-se um jogador de futebol passável, tomando gosto pelo esporte bretão e integrou-se de forma bastante satisfatória aos outros rapazes de sua turma. E foi entre estes rapa-zes que Percyval conheceu Armando, um jovem alto, de cabelos negros e olhos verdes pelo qual se apaixonou perdidamente.

Como não ousava revelar-se a Armando - que por sinal não tinha nenhuma tendência homossexual - o atormentado Percyval contentou-se em ser seu amigo e, de fato, ambos se tornaram grandes amigos, freqüentavam a casa um do outro, iam a festas juntos, jogavam futebol nos fins de semana e mesmo depois que saíram da escola e entraram para faculdades diferentes, Armando arquitetura e Percyval história, ainda continuaram a se ver com freqüência.

As vidas de Percyval e Armando foram bastante normais, completaram os estudos, se casa-ram, tiveram filhos, Armando, dois e Percyval, um e se tornaram profissionais bem sucedidos em suas áreas.

E foi então que começaram os infortúnios.

Aos 35 anos Percyval perdeu seu pai, fato que o abalou profundamente, afinal, ele sempre se espelhara no pai, adotara-o como ídolo e moldara a sua vida praticamente toda em função deste.

Entre outras coisas, a morte de seu pai fizera com que Percyval finalmente começasse a pensar em sua própria mortalidade e a ver que sua vida estava sendo desperdiçada. Finalmente ele se apercebia de que era um homem frustrado, um homem infeliz que nunca iria poder levar a vida que gostaria de levar, a começar pelo fato de que nem mesmo estava satisfeito com o sexo que tinha.

E foi assim que ele começou a buscar refúgio para o seu sofrimento no álcool e nos braços, de travestis que mais tarde deram lugar a garotos de programa. Com estes últimos é que ele final-mente conseguiu chegar mais próximo de se realizar e justamente por causa disto passou a procurá-los com cada vez mais freqüência.

Finalmente Percyval estava feliz.

Mas foi aí que os seus problemas tiveram realmente início. Desconfiada de que ele a estava traindo com outras mulheres, Zulmira, a sua amantíssima esposa contratou os serviços de um investigador particular para segui-lo e quando ficou constatado que Percyval vinha constantemente se utilizando os serviços de garotos de programa, veio a separação.

Aquele fora um duro golpe para Percyval que amava seu filho e não queria dar a este o des-gosto de saber que seu pai era um homossexual. Tal preocupação, entretanto, se mostrou infundada pois, em benefício do próprio filho, que estudava numa escola na Suíça, Zulmira se comprometeu a manter segredo a respeito da conduta sexual de seu atormentado marido. E assim, o episódio, aca-bou tendo o seu lado favorável, pois agora Percyval não precisava mais fingir.

A partir daí ele passou a se entregar aos prazeres da sodomia sem maiores preocupações, restando apenas a frustração de nunca haver se realizado como mulher, já que o mais próximo que chegara disto fora se travestindo tanto para ir a bailes carnavalescos como para receber algum garoto de programa.

Apesar de tudo, havia a satisfação de poder contar com a amizade de Armando, que nunca ficara sabendo dos reais motivos da sua separação e pelo qual Percyval ainda nutria o mais profundo e sincero amor.

O destino entretanto foi cruel com o atormentado historiador e meses atrás este viera a saber através de um amigo, que Armando era portador do vírus da AIDS.

E era por causa disto que agora Percyval se encontrava no maior dilema de sua vida, por mais bizarro que pudesse parecer, ele tinha como salvar o amor de sua vida e ainda por cima viver ao lado deste... como mulher! Para que isto pudesse acontecer no entanto, ele teria de trair o jura-mento que fizera a seu pai em seu leito de morte.

Tudo se passara havia vários anos quando numa tarde triste e chuvosa sir Raymond Burton o chamara a seus aposentos, Percyval ainda se lembrava bem da aparência do seu pai, que corroído pelo câncer encontrava-se magro e ostentando uma palidez cadavérica. Apesar disso, foi com firmeza que este lhe falou.

- Percy, meu filho - dissera o velho Raymond - agora que se aproxima a minha hora se faz necessário que eu te revele um segredo que guardei por toda a minha vida, ou pelo menos por mais da metade dela.

- Não fale assim, pai, você ainda vai durar muitos anos mais.

- Bobagem - disse Raymond com um gesto de repúdio - sei que não vou durar muito, por isso escuta, filho, escuta com atenção. Está vendo aquela caixa de prata ali? - perguntou Raymond apontando para um aparador de mogno sobre a qual havia uma finamente lavrada caixa de prata.

- Sim, pai - respondeu Percyval.

- Pega ela para mim, por favor.

Percyval pegou a caixa e a trouxe a seu pai, que a abriu começando a vasculhar seu interior até que de lá tirou uma chave.

- Esta chave, meu filho, é de um cofre que mantenho no Banco do Brasil. O que você irá encontrar nele é algo que, devido a perigo que representa, resolvi manter em segredo. Um segredo que só agora irei te revelar.

- Você está me deixando com medo, pai.

- E é para ter medo mesmo, mas vamos lá. O que há no cofre cuja chave estou te dando agora, foi algo que encontrei nas ruínas da cidade perdida de Abu Kârnach.

-Aquela na fronteira da Arábia Saudita com o Yêmen?

- Isso, a primeira exploração que chefiei para o British Museum.

- Certo, mas e quanto ao cofre, o que há nele?

- Uma coisa digna de um conto das mil e uma noites - disse Raymond com um sorriso. - Uma garrafa contendo um djinn, um gênio.

- Papai! Eu aqui pensando que você estava falando sério e você me vem com essa.

- É sério meu filho. Eu realmente tenho em meu poder uma garrafa contendo um djinn. Mais exatamente uma ghoul, que é uma espécie feminina de djinn.

- Agora só falta você me dizer que a ghoul vai atender a três pedidos de quem abrir a garrafa.

- Exato.

- My God! - Exclamou Percyval levando as mãos à cabeça.

- Você deve estar achando que estou louco. E não tiro sua razão, na verdade acho até me-lhor que você não leve mesmo esta história muito a sério pois o que vou te pedir é que mantenha a garrafa onde está e cuide para que ela nunca saia de sua guarda.

- Bom, isso não será muito difícil a começar pelo fato de que não vão deixar que eu mexa no seu cofre.

- Engano seu, filho. Com o meu advogado, o Adenaílsson de Sá Peixoto, há uma procuração te autorizando a ter acesso a ele. E o que vou querer que você faça quando eu morrer é tirar a garrafa de lá e passá-la para um cofre seu. É claro que vou deixar dinheiro para isso. Só que antes vou querer que você me jure que nunca, em hipótese alguma irá abrir a garrafa.

- Você fala realmente à sério?

- Nunca falei tão sério em minha vida, filho.

- Pai, se isto é mesmo verdade, porque você não pede a ghoul para te curar?

- Sua mãe me fez esta mesma pergunta.

- Ah, então ela também sabe da garrafa.

- Claro, só que como você ela também não me leva a sério.

- Tá, mas então me diz, por que você não pede a ghoul para te curar?

- Simples, porque isso seria contrário as leis da natureza e principalmente por que eu sou um homem cristão e temente a Deus e acredito que buscar ajuda de um demônio seria não apenas uma traição a minhas crenças como uma violação as leis do criador. Além do mais, mesmo que eu não fosse cristão, djinns e ghouls são notoriamente traiçoeiros e eu com toda a certeza ir buscar lã e sair tosquiado. Mas agora, meu filho, o que quero que você faça é que levante a mão direita e jure por Deus e pela Rainha que jamais irá abrir a garrafa que contém a ghoul.

- Jurar pela rainha? Mas eu não sou um súdito do império Britânico nem nada.

- Você tem dupla nacionalidade, esqueceu?

- É mesmo. Mas antes me diga uma coisa: você disse que a garrafa representa um perigo. Que perigo é este?

- O perigo, meu filho reside no poder da ghoul. Imagina só se um maluco como um Osama bin Laden ou um Adolf Hitler põe a mão nesta garrafa. Imagina a desgraça que eles não iriam desencadear.

- É verdade. Mas então por que não jogá-la no meio do oceano, em uma fossa bem profunda?

- E perder um artefato tão valioso? Nunca! Eu quero ter o prazer de possuir uma garrafa com uma ghoul, ter o prazer de olhá-la sempre que tiver vontade, afinal, eu tive de dar um duro danado para poder tê-la.

- Entendo - disse Percyval que também possuía aquele tipo de mentalidade de colecionador, - creio que em seu lugar eu teria feito a mesma coisa.

- Well, vamos ao juramento então.

Percyval levantou então a mão direita e disse: - Eu Percyval Burton... juro jamais abrir a garrafa da ghoul... - e desatou a rir.

- Percyval! - Rosnou Raymond - isto é sério. É do último desejo de seu pai que você está fazendo pouco.

- Desculpe, pai, se isto é tão importante assim para você, eu, Percyval Gomes Burton juro por Deus e pela rainha que jamais irei abrir a garrafa.

- Espero que você saiba honrar este juramento - Disse Raymond com expressão grave.

- Por Deus, pela rainha e principalmente por você, eu honrarei.

E de fato Percyval honrara o juramento que fizera, após a morte de seu pai ele transferira a garrafa para um cofre em seu nome e nunca pensara em abri-la, mas agora, no entanto, já não tinha mais tanta certeza quanto a continuar a honrá-lo ou não. Era bem verdade que seu pai o advertira de que o preço a pagar pela realização dos três desejos poderia ser alto, apesar disto ele se sentia tentado a correr o risco, afinal, o que poderia ser pior do que desperdiçar a vida como desperdiçara? O que poderia ser pior do que ver Armando, o homem a quem amava morrer de maneira cruel e indigna?

- Nada! - Decidiu ele respondendo em voz alta a suas indagações interiores ao mesmo tempo em que batia com o copo vazio sobre o tampo de sua mesinha de cabeceira.

Ele então se levantou e caminhou até a janela e enquanto olhava as ondas a se chocarem contra as areias da praia de Copacabana, pensou: “Me desculpa, pai, mas vou quebrar meu juramento. Qualquer que seja o preço que eu tenha de pagar por fazê-lo, ele não será alto o bastante.” Apesar de já ser tarde da noite, ele não retornou à cama, estava excitado demais para fazê-lo e na verdade mal podia esperar para que o dia seguinte chegasse e pudesse ir ao banco.

Como sabia que não iria conseguir dormir, Percyval resolveu que já que iria embarcar naquela aventura mesmo contra os conselhos seu pai, deveria pelo menos se informar melhor a respeito de djinns a fim de saber melhor no que estava se metendo e se os riscos compensavam a empreitada, afinal seu pai lhe dissera que ao fazer pedidos a uma ghoul ele poderia ir buscar lã e sair tosquiado e como não estava nem um pouco ansioso por isso, resolveu que o melhor a fazer era lançar mão da vasta coleção de livros que herdara de seu pai e da qual não conseguira folhear nem a metade.

Caminhou então até um quarto de seu apartamento que usava como escritório e biblioteca e começou a procurar nas inúmeras prateleiras que forravam as paredes do aposento até que encontrou um livro que continha a matéria que o interessava. Era um grosso volume encadernado em couro em cuja lombada se lia Traité Général de Mythologie Arabique de Mansour et la Planche.

Passando uma vista d’olhos pelo índice, Percyval constatou que haviam dois longos capítulos dedicados a djinns, ghouls e efrites. Satisfeito com o achado, serviu-se de uma dose de um Glenlivet, acomodou-se a uma bérgere de couro e descansando os pés numa banqueta do mesmo material, começou a devorar os capítulos que o haviam atraído.

Duas horas e tanto depois, Percyval achou que já podia se considerar um conhecedor do assunto mas não satisfeito buscou por mais livros que corroborassem o que lera ou que lhe trouxessem mais conhecimentos e só encontrou mais um, que se chamava Pré-Islamic Myths de um tal de professor John Merrick, onde encontrou um prefácio escrito por um Mulah de nome Sulaiman ibn-Umar atestando a fidelidade do trabalho e vários capítulos que citavam djinns e efrites. E assim quando o dia já estava quase raiando e sua leitura terminada, Percyval fechou o livro e com um largo sorriso nos lábios pensou: É, papai realmente estava certo. Mas não completamente.

Pelo que concluíra da leitura, o perigo de se apelar para djinns, ghouls ou efrites era realmente grande e a pessoa que fosse recorrer a um destes podia ao invés de se beneficiar, acabar por se meter em problemas que fariam com que a morte parecesse uma benção. Apesar disto sua leitura fora esclarecedora o bastante para levá-lo a conclusão de que se fosse suficientemente inteligente a pessoa poderia lançar mão de contramedidas que anulariam totalmente o perigo, e como ele se achava suficientemente dotado para tal, teve a absoluta certeza de que, caso a ghoul realmente existisse, poderia lançar mão do poder desta sem correr qualquer perigo pois tinha agora um trunfo que lhe permitiria manipulá-la como a um marionete.

E assim, satisfeito com as conclusões a que chegara e certo de que seus planos teriam sucesso, o historiador deitou-se para um descanso tardio. Mais tarde, telefonou para a universidade onde dirigia o departamento de história e avisou que não poderia ir trabalhar naquele dia. Depois disso, pegou as chaves de seu carro, desceu à garagem e partiu para o banco.

Apesar de ter se sentido tentado a abrir a garrafa no reservado mesmo onde a tirara da caixa de aço em que ficava guardada, Percyval preferiu retornar a seu apartamento, onde agora se encon-trava sentado no sofá da sala a admirar a garrafa que colocara sobre a mesa de centro bem ao lado de uma foto de seu filho.

A garrafa era linda, devia ter mais ou menos uns setenta centímetros de altura, um bojo largo adornado por apliques de ouro, marfim e pedras semipreciosas e preciosas, o gargalo era longo e delgado terminando numa forma afunilada onde se destacava uma tampa de cristal.

Agora que resolvera abri-la e que a tinha diante de si, ele sentia-se hesitante, ficou assim por um tempo até que num arroubo pegou-a e com o coração aos pulos, puxou a tampa.

De início nada aconteceu, mas pouco a pouco uma fumaça azulada foi saindo pelo gargalo. De início pouca e tênue, ela foi se tornando mais encorpada ao mesmo tempo em que a garrafa começava a tremer. A fumaça começou então a revolutear pelo ar adensando-se cada vez mais até se transformar num rodamoinho de aproximadamente um metro e meio. A esta altura nada mais saia da garrafa, que Percyval colocou de volta sobre a mesa.

Então, ao mesmo tempo em que a soltava ele viu em meio a fumaça uma etérea figura feminina que acabara de tomar forma. A figura foi aumentando mais e mais de nitidez até que ele mais sentiu do que ouviu quando ela falou: - Eu me chamo Hasna e tu, mortal, que abriste esta garrafa és agora meu mestre e tens direito a formular três desejos que irei atender sejam eles quais forem.

Agora que tinha a ghoul diante de si o que ele pensara em pedir lhe escapava e ele perguntou: - Você se importa se eu demorar um pouco?

- Até que formules teus três desejos és meu amo, posso esperar pelo tempo que quiseres.

Percyval pensou por algum tempo para em seguida falar: - Você pode me transformar em uma mulher?

- Posso, amo.

Medindo criteriosamente as palavras, já que segundo lera djinns e ghouls costuma-vam interpretar tudo de maneira perversa, ele perguntou: - Pode fazer com que essa mulher em que irá me transformar seja eternamente jovem e imortal?

- Sim, amo.

- Você pode me tornar capaz de transferir... não, transferir não. Compartilhar minha imortalidade com quem eu bem entenda?

A mulher sorriu e respondeu: - Sim, amo, eu posso. Não será uma tarefa fácil e eu irei precisar que tu consigas três objetos sem os quais nada poderá ser feito.

- E que objetos são estes?

Hasna explicou.

- Isto pode ser facilmente conseguido, mas há um problema: eu não tenho como te explicar como é a mulher em que eu quero que me transforme, creio que vou precisar fazer alguns desenhos para que você entenda com perfeição.

- Sim, amo faça como melhor te aprouver.

- Certo, mas além disso eu vou precisar de tempo pois há uns problemas que tenho de resolver antes que eu passe a ser uma mulher.

- Eu posso retornar à garrafa e aguardar até que me invoques novamente.

- Certo, está dispensada então.

Ele viu quando a imagem em meio às brumas tremeluziu e novamente formou-se um rodamoinho de fumaça, que se elevou do chão e retornou a garrafa, que Percyval tampou.

Abismado ele continuou a contemplar o artefato sobre a mesa sem saber direito o que pensar. Era afinal verdade o que seu pai lhe falara sobre a ghoul, e com os desejos que ela iria realizar seus problemas estariam resolvidos num estalar de dedos. Seu único problema era que também num estalar de dedos ele iria conseguir sérios problemas.

Uma vez que se transformasse em mulher, ele não teria documentos nem nada que o identificasse, até mesmo para entrar no edifício onde morava iria ser uma complicação e como só tinha a possibilidade de realizar três desejos, não poderia pedir a ghoul que resolvesse tais problemas ou estaria ultrapassando a sua quota.

Foi apenas depois de muito pensar que Percyval chegou à uma conclusão sobre como resolver seus problemas e satisfeito pegou o telefone e ligou para sua mãe.

- Alo - disse a velha Janaína do outro lado da linha.

- Mãe, aqui é Percyval, tudo bem com você?

- Tudo bem, filhinho, que bom que você ligou.

- Mãe, eu preciso de um favor seu.

- Se eu puder ajudar.

- Eu acho que vai sim. Você ainda tem as certidões de óbito e de nascimento daquela minha irmã que morreu pouco depois de nascer?

- Claro, por que?

- É que eu vou precisar delas.

- Para que?

- Para preencher umas exigências da universidade. É que eles estão oferecendo um seguro de vida e eu preciso provar que não tenho parentes vivos além de você.

- Certo, pode passar aqui que eu te entrego. Ah a propósito você não vai precisar também de algum documento meu ou da certidão de óbito de seu pai?

Ele pensou então por um momento antes de responder: - Eu tenho uma cópia de sua identidade e da certidão de óbito de papai, não vai ser preciso. Posso passar aí daqui a pouco?

- Claro, filho, pode sim.

- Bom, até logo então, mãe.

Para o que Percyval tinha em mente seria necessário tempo e dinheiro, tempo não seria problema pois assim que se tornasse imortal, ele ou melhor, ela teria todo o tempo do mundo. Quanto a dinheiro, tinha uma boa reserva, aproximadamente R$ 300.000,00 resultantes da venda de um lote de ações que seu pai lhe deixara e que seria mais do que suficiente para sustentar a mulher em que iria se tornar pelo tempo que fosse necessário para que esta se estabelecesse em alguma profissão.

Assim, antes de passar na casa de sua mãe ele foi até o banco e avisou ao gerente que dali a dois dias iria passar por lá para sacar uns cinco mil reais, dinheiro que gostaria de ter à mão para as necessidades mais imediatas.

Algum tempo depois, na casa de sua mãe, ele passou uma tarde agradável a conversar até que bem mais tarde, tirou um envelope de dentro de sua pasta e o entregou a Janaína dizendo: - Mãe, dentro de mais alguns dias vai vir aqui uma moça alta de cabelos louros e pele clara te procurar, o nome dela é Cristina e ela significa muito para mim, por isso vou te pedir para que a receba bem...

- É alguma namorada nova? - interrompeu Janaína que apesar da saber das preferências sexuais de seu filho, as ignorava.

- Digamos que é uma pessoa que eu considero muito. Mas como eu ia dizendo, ela vai vir aqui e vai te falar sobre este envelope, vou te pedir então que o traga e o entregue a ela. Uma outra coisa importante, mãe é que tudo o que ela te disser será a mais absoluta verdade e por isso você deve acreditar nela.

- Certo, filho, mas ela vai falar a verdade sobre o que?

Percyval riu e respondeu: - Isto, mamãe você só vai ficar sabendo na hora.

- Isto é alguma espécie de brincadeira?

- Não, mãe - sorriu Percyval.

- Tá bom - disse Janaína pegando o envelope - e o que é que tem escrito aqui?

- Nada de especial. Apenas um presentinho para Cristina, por favor não abra ou vou ficar zangado com você.

- Está bom, filhinho pode deixar que não vou fuçar o presentinho de sua namorada. Mas, me diz uma coisa: por que é que você não entrega isso a ela você mesmo?

- Porque ela está fora do Brasil e quando chegar aí eu vou estar viajando. A serviço.

- Viajando a serviço? Isso tem alguma coisa a ver com o seguro de vida de que você me falou?

- Não, mãe - disse Percyval achando graça na preocupação de sua mãe -, fica tranqüila - disse pousando a mão sobre o ombro dela.

• •

No dia seguinte, pela manhã bem cedo, Percyval resolveu começar a trabalhar na elaboração dos desenhos do corpo e do rosto da mulher em que ele iria se transformar, ele queria algo bonito, sensual e elegante, algo que despertasse o desejo dos homens e a inveja das mulheres. Mas além disso, ele queria algo que o agradasse, um corpo que satisfizesse também a suas exigências estéticas.

Para o que tinha em mente, ele passou num sebo no centro da cidade e fez uma enorme compra de revistas masculinas, eróticas e até femininas onde pretendia procurar por fotos de mulheres interessantes nas quais pudesse se basear para, com suas habilidades de desenhista, criar a mulher em que gostaria de se transformar.

Quando chegou em casa, lançou então mãos a obra e se instalou num quarto onde espa-lhou suas revistas. Apesar da razoável quantidade de revistas que adquirira, Percyval não encontrara nada que achasse realmente interessante, era verdade que havia mulheres lindas e dos mais variados tipos, mas o que o interessou realmente foi a foto de uma modelo que encontrou numa revista de cunho informativo, mais voltada para o jornalismo propriamente dito, uma revista que nada tinha de erótica.

A modelo em questão tinha um metro e oitenta e cinco de altura, seios médios, cintura estreita e quadris largos. Apesar da magreza era um mulherão e ele resolveu que era aquela ali que serviria de base para a sua Christine. Ele se lembrou então de que tinha em casa outras revistas com fotos dela. Revistas que justamente por causa dela, que sempre fora o tipo de mulher que gostaria de ser, ele mantivera guardadas, começou então a procurá-las até que finalmente conseguiu todo o material de que dispunha. Havia revistas femininas, de moda e sobre forma física, fotos de corpo inteiro, de frente, de costas, closes do rosto, nudez parcial, campanhas de lingerie, roupas de banho etc... não bastando isso ele ainda descobriu que ela tinha um site na Internet e uma vez que o acessou, encontrou farto material fotográfico que copiou e imprimiu.

Apesar da beleza estonteante da modelo em questão ele ainda achava que alguma coisa poderia ser modificada o que não seria problema já que com suas habilidades de desenhista poderia fazer as alterações que bem entendesse. Para o que tinha em mente, no entanto, ele precisava de fotos grandes e por causa disso juntou todas aquelas que gostaria de ter em tamanho maior e foi ter a um bureau de cópias onde mandou ampliá-las até formato A3, depois disso passou numa papelaria onde comprou material de desenho e voltou para casa.

De volta à casa ele começou o trabalho que tinha em mente, cobriu as fotos com papel vegetal e copiou com o máximo de exatidão os traços da modelo, em seguida começou a modificá-la. As pernas eram longas e elegantes mas ele as engrossou discretamente, a bunda era bem feita mas ele a achou um tanto pequena e a fez um pouco maior o que a tornou um tipo mais sensual, quanto aos seios, dos quais ele só podia ter uma idéia através de uma foto em que ela usava uma roupa transparente, e que aparentemente eram lindos, apenas completou as formas fazendo-os firmes empinados e com bicos protuberantes.

com essa parte consumada, ele passou a algo que o interessava mais particularmente, o púbis, para tanto lançou mão de uma foto em que ela aparecia de biquíni. Depois de copiá-la para o papel vegetal ele apagou o biquíni e começou a trabalhar na construção de uma vulva delicada, de lábios bem unidos e totalmente sem pêlos. Percyval não queria que Christine tivesse um único pêlo pubiano, não apenas pelo fato de que os homens iriam gostar, como também para poupar o trabalho e o incomodo de uma depilação, além do que, ele próprio achava linda uma vulva sem pêlos.

Quando achou que já tinha o suficiente para dar uma idéia bem clara do corpo que gostaria de ter, interrompeu o trabalho para um rápido lanche e pouco depois voltou a ele com toda a disposição, aí foi a vez de passar os traços do papel vegetal para um papel especial de dese-nho e começar com o sombreado a fim de definir os volumes. O trabalho lhe consumiu a tarde toda e parte da noite e valeu a pena pois os desenhos ficaram excelentes, ele interrompeu então o traba-lho para um descanso e para comer uma pizza que pedira por telefone.

Enquanto comia ele contemplava satisfeito os desenhos da sublime criatura que idealizara. Ela havia ficado linda, sensual elegante, bem proporcionada.

Quando terminou a pizza Percyval achou que estava na hora de detalhar o rosto e embora o tivesse feito nos desenhos de corpo inteiro, o rosto aparecia menor e as alterações que desejava não ficavam bem claras, por isso ele pegou um close do rosto da garota e começou a trabalhar nele. Era verdade que os traços desta eram belíssimos mas ele os achava um tanto frios.

Percyval começou então suas modificações pelos olhos, que manteve com o mesmo formato mas aumentou para lhe dar um ar mais de garota, o nariz estava perfeito e ele não tocou nele, quanto a boca, ele a achava perfeita mas de lábios um tanto finos e lhes deu um pouco mais de volume sem, no entanto aumentar o tamanho da boca, que era pequena e acabou ficando ainda mais linda.

Percyval passou então o desenho para o papel especial e atirou-se furiosamente ao trabalho. Foi somente quando já eram três e meia da manhã que o deu por encerrado e olhando para a sua obra ordenou:

- Parla!

Ficara um trabalho perfeito, agora ele poderia, valendo-se dos desenhos que fizera e das fotos da modelo, mostrar a Ghoul no que queria ser transformado. E assim, cansado e satisfeito ele foi finalmente deitar-se e dormiu o sono dos justos.

No dia seguinte, Percyval acordou tarde e depois de tomar o café da manhã resolveu convocar a ghoul para lhe perguntar se baseado nos desenhos que fizera ela poderia formar o corpo que ele desejava, para tanto, mais uma vez pegou a garrafa e abriu-a. Quando a Ghoul surgiu a sua frente ele falou: - Para de te dar uma idéia de como deve ser a mulher em que quero me transformar fiz alguns desenhos. Eu gostaria que você olhasse e me dissesse se dá para entender o que pretendo que você faça. Desde que isso não conte como um desejo.

- Sim, amo, eu olharei e isso não será considerado como um dos três desejos.

- Obrigado. Os desenhos estão aqui - disse Percyval mostrando-os sobre a mesa.

Hasna, estudou-os então com atenção e perguntou: - Com que altura irás querer ficar?

- Com um metro e oitenta. Quer dizer, a mesma que tenho e com o mesmo tamanho de pés - Disse Percyval que assim poderia aproveitar sapatos e botas femininos com que se travestia e que não eram muito grandes já que calçava nº 38.

Então, diante dos olhos de Percyval Hasna começou a se transformar na mulher que ele desenhara e da figura etérea que era, ela pareceu tornar-se de carne e osso.

- É isto o que queres?

- Dá uma volta, por favor.

Hasna rodou lentamente exibindo o corpo e Percyval se aproximou e tocou-a. Ela era sólida e ao perceber isso ele teve uma idéia.

- Você pode se manter assim por mais um tempo?

- Pelo tempo que desejares.

- Bom, então, se isso não contar como um dos três desejos, eu vou te pedir que espere para eu tirar umas medidas pois vou precisar delas para comprar roupas.

- Pode tirar as suas medidas, não vou contar este pedido como um dos três desejos.

- Ótimo, então espera só um pouquinho que volto já.

Como não tinha uma fita métrica, Percyval pegou um pedaço de barbante e uma trena que abriu e travou com 2 metros e deixou no chão da sala. Usando o barbante ele mediu os quadris, que com auxílio da trena constatou terem 100 centímetros, a cintura que apresentou 61 centímetros e o busto, que tinha 90 centímetros.

- Perfeito - comemorou Percyval. - Agora, só falta eu te mostrar como é a voz que vou querer ter.

- A voz? - Perguntou ela sem saber como ele pretendia lhe “mostrar” a voz já que não havia mais ninguém ali que pudesse falar para que ela ouvisse a voz que Percyval gostaria de ter quando se tornasse uma mulher.

- Sim - disse Percyval se aproximando de um aparelho de som no qual havia um CD do Garbage que ele colocou a tocar.

O ar então se encheu com o som da voz de Shirley Manson e após escutar por alguns segundos Percyval perguntou: - Você pode fazer com que eu tenha uma voz assim?

- Claro, isto é fácil - respondeu Hasna sem demonstrar o quão impressionada ficara com aquela música que saia de um objeto inanimado.

- Ótimo. Agora então creio que é melhor você voltar a garrafa, para que eu saia e providencie as roupas, e o material que voccê pediu.

- Sim, amo - disse ela. E retornou à garrafa numa nuvem de fumaça.

Percyval guardou a garrafa num cofre de parede que havia em seu quarto, pegou as chaves do carro e foi para a rua.

Foi até o banco, onde sacou o dinheiro de que iria precisar e depois foi até um supermercado onde comprou alguns mantimentos e dois dos objetos que Hasna lhe pedira, já que o outro ele tinha em casa. Uma vez resolvida esta parte, ele foi até um shopping a fim de comprar roupas e sapatos para a mulher em que tencionava se transformar.

De posse das medidas que tomara na própria Djinn, ele podia comprar as roupas de que iria precisar com certa facilidade, comprou então dois pares de calça jeans, várias camisetas, blusas, saias e finalmente três mini-vestidos colantes pretos em tamanhos pequeno, médio e grande, só para garantir que não iria errar na escolha. Só de se imaginar dentro de um daqueles vestidinhos ele já ficou todo excitado e por isso pagou rapidamente por eles e foi ter a uma sapataria, onde comprou inúmeros sapatos, sandálias, botas com diversos comprimentos de cano e salto e uns dois pares de tênis.

Então, com o carro atopetado de embrulhos ele foi ter ao escritório de Peixoto, Pinto, Galindo e Japiaçú, advogados associados, onde passou uma procuração autorizando Adenaílsson de Sá Peixoto, o seu advogado canhoto, a transferir o apartamento onde morava, uma casa que tinha em Saquarema e seu carro para o nome de sua irmã, Christine Gomes Burton, que deveria procurá-lo dali a alguns dias e que iria arcar com as despesas referentes a imposto de transmissão, taxas cartorárias e honorários advocatícios.

Com esta parte resolvida ele voltou para casa e procurou o síndico do prédio onde morava, um tipo cujas feições Percyval nunca conseguira decidir se lembravam um mormon ou um bode e que atendia pelo bizarro nome de Michérlon de Flores. Quando o encontrou, Percyval avisou-o de que no seguinte dia viajaria para o exterior e que sua irmã Christine, a qual se identificaria mediante apresentação da carteira de identidade, iria procurá-lo posteriormente e ficaria residindo em seu apartamento, por cuja taxa de condomínio ficaria responsável.

Assim, tendo cuidado de todos os detalhes, ele subiu a seu apartamento, pegou a garrafa, uma fita de vídeo virgem e uma câmara de vídeo e desceu à garagem, de onde saiu em seu Ford Ecosport para nunca mais ser visto.

Uma vez que chegou à sua casa em Saquarema, Percyval descarregou o carro e levou todos os embrulhos com as roupas e calçados que comprara e deixou-os amontoados no chão de seu quarto. Em seguida pegou a câmara de vídeo, inseriu nela o cassete de fita virgem e montou-a sobre um tripé em um canto da sala.

Feito isso, ele voltou ao carro, pegou a garrafa e duas bacias plásticas, que eram dois dos objetos que a ghoul lhe pedira e as levou também para a sala. Depois de deixar a garrafa sobre uma mesa de centro e as bacias no chão, ele foi até a cozinha, onde de um armário tirou o terceiro objeto que Hasna lhe pedira: uma faca bem afiada, no caso uma Tramontina Century com empunhadura em aço que como bom gourmet amador, Percyval fazia questão de manter sempre muito bem afiada. Mesmo assim, ele testou a lâmina, cortando uma folha de papel no sentido da largura, apenas para constatar que estava muito bem afiada.

Tomado por uma ansiedade desmedida ele foi até a sala, colocou a faca sobre a mesa de centro e pegou a garrafa. Agora seu desejo mais intenso iria se realizar, dentro de instantes ele iria se transformar numa linda, esguia e curvilínea mulher.

Apesar da ânsia que sentia por começar logo, ele se deteve por um longo momento antes de desarrolhar a garrafa, como se quisesse prolongar aquela excitação. Foi quando um pensamento ridículo lhe veio a cabeça: daquele dia em diante ele iria ter muito mais trabalho quando quisesse urinar e o que era pior: haveria também o problema da menstruação.

“Mas que se fôda!” Pensou ele, e desarrolhou a garrafa.

Uma vez que se viu fora de sua prisão, Hasna perguntou.

- É chegado o momento de realizar vossos desejos, amo?

- Sim. Podemos começar.

Hasna então sorriu e falou: - tu deverás agora pegar as bacias e colocá-las no chão, com uma separação que te permita sentar entre elas.

Depois que Percyval fez o que Hasna lhe dissera ela perguntou.

- A faca está bem afiada?

- Afiadíssima - disse ele com uma entonação bem feminina.

- Ótimo, vou precisar que tu te dispas e que te sentes no chão entre as bacias.

- Certo, mas antes há uma coisa que é bom eu te lembrar, só para não haver dúvidas.

- Sim, amo.

- Eu vou querer que tudo no corpo que irei ter funcione perfeitamente, tudo dentro do figurino, cada função fisiológica deverá ser absolutamente perfeita.

- Pois será exatamente assim. Na verdade, até mesmo melhor.

- Como melhor?

- Tu não queres ser imortal? Para isso terei de fazer melhorias e garanto que elas não irão interferir com o funcionamento normal de teu corpo. Tu serás uma mulher perfeita nos mínimos detalhes. Serás bela, forte, saudável, inteligente além de imortal e eternamente jovem.

- E de poder compartilhar com minha imortalidade e eterna juventude com quem eu quiser.

- Isso mesmo - concordou Hasna.

- Ótimo. Então, vamos lá

Ele colocou a faca ao lado de uma das bacias, caminhou até a câmara de vídeo, apontou-a na direção onde iria ficar e olhou pelo visor para ver se o enquadramento estava bom. Após alguns ajustes ele se deu por satisfeito e ligou a câmara. Retornou para o lugar onde deveria ficar e se sentou sobre os calcanhares entre as bacias.

- Assim está bom? - perguntou Percyval.

- Está. Vamos então recapitular teus desejos. Tu desejas que teu corpo seja transformado num corpo de mulher, uma mulher imortal e que terá esta aparência - disse ela assumindo a forma que o corpo de Percyval iria tomar -, desejas também que esta mulher, que deverá ser perfeita nos mínimos detalhes, possa viver eternamente jovem e finalmente que ela possa compartilhar sua imortalidade e eterna juventude com quem bem entender, é realmente isso?

- Exatamente.

- Pois bem, pega então a faca.

Percyval a pegou.

- E agora, amo, vou ser forçada a pedir uma coisa que certamente acharás estranha mas sem a qual não poderei te transformar numa mulher completa.

- Peça o que quiser.

- Ótimo, corta então teus punhos e coloca-os nas bacias para que o sangue flua para dentro delas.

- O que?!

- Eu falei que irias estranhar o meu pedido.

- E estou estranhando mesmo!

- Calma, meu bom homem, se não quiseres não precisas fazê-lo, só que infelizmente não poderei te transformar numa mulher que seja perfeita nos mínimos detalhes. Não é isso que queres, te tornares uma mulher que seja perfeita nos mínimos detalhes?

- Sim, mas se eu cortar meus pulsos, vou morrer.

- Isso é algo que jamais irei permitir. Tu não irás morrer. Eu juro!

- Posso confiar em você?

- Claro, além do mais a qualquer momento tu poderás parar e estancar o sangue se ficar com medo.

- É verdade. Vou fazer como está me pedindo então.

Assim, Percyval empunhou a faca e reunindo coragem, cortou primeiro o punho esquerdo de onde o sangue começou a fluir espesso pingando no chão. Ele passou então a faca para a outra mão e cortou punho direito. Pousou então a faca ao chão à sua frente e colocou as mãos dentro das bacias.

- Olha para mim - comandou Hasna.

Percyval obedeceu e viu quando os olhos da Ghoul começaram a brilhar ao mesmo tempo em que uma luz azul esverdeada começava a luzir em torno dela e pequenos relâmpagos começavam a percorrer seu corpo. Então, enquanto ele contemplava tal espetáculo, Hasna levantou as mãos e dirigiu-as a ele.

Das pontas dos dedos de Hasna partiram raios que o atingiram. Percyval sentiu então um intenso formigamento tomando conta de seu corpo a medida que os raios o envolviam como uma teia que tremeluzia e estalava ao mesmo tempo em que um cheiro de ozônio lhe assaltava as narinas.

E assim em meio ao impressionante espetáculo luminoso, as transformações pelas quais Percyval tanto ansiava começaram. A primeira coisa que aconteceu foi uma reformulação em sua espiral de DNA que começou a sofrer acréscimos visando a manutenção de seu corpo, que retrocedia até a idade de 22 anos para jamais avançar além dela. O passo seguinte foi a modificação do seu sistema imunológico que ia se tornando capaz de reagir de maneira fulminante a qualquer tipo de doença.

Isso, no entanto, não era tudo, com as modificações que iam se processando ele seria capaz de resistir ao fogo, regenerar seus tecidos imediatamente em caso de ferimentos, Seus pulmões de ex-trair oxigênio da água. E cada órgão de que Hasna se ia ocupando tinha os cromossomos sistematicamente cambiados de XY, masculinos, para XX, femininos, o que ia fazendo dele uma mulher de fato.

Ao mesmo tempo em que estas mudanças iam se processando a pigmentação da pele de Percyval ia se alterando, ficando pouco a pouco mais clara, suas feições se suavizando até que seu rosto ficasse irreconhecível.

Assim, o rosto redondo, largo e de olhos exageradamente separados, além de um nariz achatado e uma boca larga demais, era agora oval, com maçãs salientes e ostentava um lindo par de olhos grandes e azuis, um nariz delicado e arrebitado e uma boca pequena de lábios cheios, as feições de um princesa. E acompanhando tais mudanças, o corpo de Percyval também foi se modificando.

A gordura foi sofrendo alterações a nível atômico e transformando-se em água que se evaporava envolvendo Percyval em uma nuvem de vapor, até que o que restou foi um corpo esbelto de cintura estreita, quadris largos, bunda arrebitada, pernas longas e bem torneadas além de um par se seios lindíssimo, nem grandes nem pequenos, mas rijos e pontudos e com mamilos rosados e protuberantes. Quanto a genitália, esta foi se modificando, o pênis negro se atrofiando até tornar-se um clitóris rosado, a bolsa escrotal se retraindo e fendendo para formar uma vulva bela e delicada.

E assim o que havia sido um homem de cor parda, feio, gordo e desengonçado era agora uma mulher branca, esbelta e de formas sensuais e elegantes, uma mulher bela como uma deusa.

Se externamente o corpo havia mudado drasticamente, internamente as modificações, eram ainda mais impressionantes, no ventre da mulher que havia tomado forma, um útero e um par de ovários surgiram assim como todo o aparato glandular inerente a uma mulher. O mais fantástico, no entanto, eram as modificações que estavam se processando no sangue de Percyval, eram mudanças drásticas que o tornariam imune a qualquer doença e capaz de dotar com sua imortalidade e eterna juventude a quem ele bem entendesse.

Todo o processo de transformação tomou em torno de uma hora, apesar disto, Percyval, que agora era não mais um homem, mas uma bela mulher, não tomou conhecimento da passagem do tempo, entretanto, o sangue que vertia de seu corpo numa velocidade acelerada que nada tinha de natural, ocupava um considerável volume nas bacias que o recolhiam. E desta forma, muito pouco restava em seu corpo, tão pouco que seu coração já não conseguia mais bombeá-lo, assim, a medida que o estado de choque hipovolêmico ia se instalando ele sentia a consciência abandoná-lo e também uma sêde como nunca experimentara antes.

Percyval achava que aquilo pudesse ser efeito da magia de Hasna mas o que ele nunca poderia imaginar era que fosse o efeito da perfídia dela, que até o momento não havia dotado o cérebro daquele corpo com qualquer melhoramento ou alteração. Assim sem sangue para irrigá-lo, Percyval ia pouco a pouco se aproximando de um estado em que a morte cerebral seria inevitável.

Quando o pior já estava a ponto de acontecer, Percyval começou a se sentir como se estivesse abandonando o corpo, o que de fato estava acontecendo e uma vez que seu espírito o abandonou, ele pode ver a bela jovem em que se transformara envolta numa bruxuleante aura luminosa.

Neste momento, Hasna olhou para ele, sorriu e pronunciou algumas palavras numa língua ininteligível. Ele sentiu-se então sendo puxado por uma força absolutamente irresistível e no estado etéreo em que se encontrava não havia resistência possível. Ele sentia-se como se fosse constituído de fumaça e foi somente quando pensou nisto que um lampejo do que estava acontecendo passou por seu espírito. Ele estava sendo atraído para a garrafa.

Completamente atônito, Percyval se esforçava por entender o que estava se passando sem no entanto, o conseguir. De acordo com o que lera nos livros de seu pai, o maior perigo das ghouls consistia no fato de que estas, assim como os efrites bem poderiam ser descritos como espíritos de advogados, pois costumavam se valer de qualquer deslize de seus amos na forma de formular seus desejos para usá-los em proveito próprio ou prejudicá-los.

Baseado nisto, Percyval entendera que, sendo ele extremamente hábil no uso da palavra e possuidor de um raciocínio verbal privilegiado, poderia formular seus desejos, expressando-os de tal modo, que não restasse a Hasna qualquer alternativa que não atendê-los ao pé da letra, mas apesar de haver sido extremamente claro, obsessivamente detalhista, alguma coisa que ele não conseguia imaginar o que pudesse ter sido, dera errado e agora, em meio as revoluções gasosas, seu espírito ia sendo tragado pela garrafa.

Enquanto isso acontecia, Percyval sequer podia perceber que o sangue que saíra de seu corpo a este ia retornando num movimento impossível e a uma velocidade vertiginosa, devolvendo-lhe a vida que por pouco não havia sido roubada.

Ao mesmo tempo em que o sangue voltava a circular, as funções cerebrais do corpo que havia abrigado o espírito de Percyval, iam sendo não apenas restauradas mas levadas a um estado de perfeição como ele jamais havia experimentado. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, Hasna se esvaecia, tornando-se invisível e ia entrando pelo nariz e pela boca daquela que viria a ser chamada de Christine Burton.

Ao mesmo tempo que a última gota de sangue retornou ao corpo de Christine, o espírito de Hasna nele penetrou e o de Percyval foi totalmente engolfado pela garrafa.

Neste momento, a magia desencadeada por Hasna retornou à garrafa, onde se fundiu ao espírito de Percyval.

Antes que ele pudesse se dar conta disso, no entanto, Hasna, já de posse de seu novo corpo, abriu os olhos e movendo-se a uma velocidade impossível para um ser humano normal, saltou para perto da mesa onde se encontrava a garrafa, pegou a tampa e arrolhou-a firmemente.

Com um sorriso nos lábios a curvilínea garota olhou para a garrafa e colocou-a de volta sobre a mesa. Estava feito, Hasna que havia sido uma ghoul, um espírito feminino, aprisionado numa garrafa, era agora um espírito feminino num corpo - e que corpo! - de mulher, o que a tornava perfeita nos mínimos detalhes como queria Percyval; e quanto a ele, que era um espírito feminino aprisionado num corpo de homem, era agora um espírito feminino aprisionado em um lugar... Além da imaginação!

Hyerônimus Maximus
Enviado por Hyerônimus Maximus em 14/09/2007
Reeditado em 05/04/2009
Código do texto: T652860
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